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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O tecido das lembranças.

O tecido das lembranças.

Deve ser mesmo algum tipo de tecido, aquele em que guardamos nossas lembranças no mais recôndito de nosso cérebro. Por vezes nos lembramos de coisas de uma época, encadeadas ou não, em seqüência, relacionadas, ou soltas, sem nexo, recolhidas, catadas, aprofundadas num tema, ou simplesmente tão soltas como grãos de areia soprados pelo vento do deserto. Nenhuma tem cheiro. São apenas imagens coloridas ou a preto e branco, raras em três dimensões, muitas parecem filmes sem pretensão a Oscar. Os sons não se escutam, apenas se entendem e traduzem. Sentem-se! Nem sempre nos lembramos das melhores ou piores lembranças. Elas aparecem soltas, segundo uma falta de lógica que só Freud poderia explicar se fossem produto de algum tipo de demência sob análise, mas sendo produto apenas de reflexões do passado antes que ele passe do tecido das lembranças, não são causa de efeitos, mas apenas circunstâncias não relacionadas.



Nunca soube ao certo se alguém apertava um botão para ativar a campainha do recreio ou se eram automáticas. Nunca me preocupei se as aulas eram exatamente de cinqüenta minutos cravados ou se alguma vez demoraram mais ou menos. Eu não tinha relógio. Quando tive, preocupei-me em checar se meu relógio estava “certo” com os dos colégios por que passei, ou se faltava muito para a aula ou o tempo de recreio acabarem. Havia aulas que era uma pena terminarem, recreios que nunca deveriam terminar. A vida é assim, se as aulas forem substituídas por trabalho e o recreio por momentos de prazer e descanso. O tempo é nosso parceiro inconstante por mais apurado e constante que seja o nosso relógio. Com 30 anos de idade aposentei meus relógios. O tempo estava já incorporado em meu modo de ser, sabia que eu era seu escravo, mas não escravo do mecanismo de um relógio por mais fiel e caro que fosse. Aposentei também o anel e o cordão pendurado no pescoço. Há 14 anos que o único relógio que tenho está pendurado na parede da cozinha. O tempo é uma medida de dimensão da qual podemos prescindir. O tempo não deveria ter a mínima importância em nossas vidas. Toda a vida animal ou vegetal deste planeta prescinde de relógios e vive muito bem. Nunca vi uma galinha consultar um aparato desses para botar ovo, nem galo olhar para um relógio para soltar seu canto. Naquele dia não esperei ouvir a campainha gritante dar sinal para o fim da aula, que nem era a última do dia. Minha avó tinha passado mal durante a madrugada. Saí mais cedo do colégio e fui para casa. Ao chegar, o que ouvi foram choros. Ninguém precisava me dizer nada, mas me pediram para não entrar logo em casa. Disseram-me que ficasse no jardim e que voltasse em meia hora. Ela tinha acabado de falecer. Não me importei em pensar se me queriam poupar da cena, ou se haveria algum outro motivo. O que me importava naquele momento era que já não tinha avó. Naquela época do tempo, naquele lugar do mundo a que se chama Europa, os filhos não eram amados como hoje, nem os netos. Não era uma questão propriamente de amor, mas de forma de amar. Filhos e netos eram propriedades. Pais e avós tinham as suas propriedades vivas que preservavam. A vida, essa, continua sendo uma campainha que toca sem relógio ou cronômetro em qualquer reino animal ou vegetal. Tanto vem de repente, como se vai sem sequer tocar para avisar, independentemente de espírito, alma ou religião. Podemos, sob esse aspecto, sermos diferentes em qualquer circunstância, mas não perante a natureza. Aqueles meus onze anos se foram com o tempo. Nunca mais voltaram.



Pelos anos sessenta a juventude usava ternos, calças compridas e paletós, com camisa de gola rolê ou social com gravata ou lenço de seda. Em ocasiões especiais, um cravo branco ou vermelho na lapela. Vaidades para “dar a impressão”. Sextas feiras e sábados à tarde e á noite, eram dias de festa. Sempre havia uma. Naquele sábado ao entardecer numa vila em São Cristóvão minha prima fazia aniversário. Eram tempos em que os aniversariantes davam, isto é, pagavam a festa inteira. Os convidados davam presentes. Durante anos a fio ganhei coleções de colônia pós-barba da Bozzano. Cheguei a pensar em abrir uma loja especializada nesse tipo de presente, mas sempre os agradeci por pura educação como se fosse um grande presente. Também agradeci a meu pai o lindo cobertor que me deu de presente no dia do meu casamento. Deve ter tido algum significado oculto ao decidir que seria um cobertor que me daria de presente de casamento, mas nunca lhe perguntei nem tive vontade de perguntar, porque importante mesmo foi o meu casamento, os dois filhos que nele tiveram origem, e quanto a cobertores comprei muitos com meu próprio dinheiro. Não me lembro do presente que levei para minha prima, mas deve ter sido um perfume bom. Uma prima linda que casou com um cadete da Marinha, irmã de outra prima minha, igualmente linda que casou com um médico nissei que talvez não por acaso também era da marinha. Fui com meu terno azul claro, louco para beijar a prima. A vila estava abarrotada de convidados, músicas atuais saiam da vitrola convidando para dançar, mas a dança não saiu. Era um aniversário de família e não uma soiré dançante, por que assim se dividiam as “diversões”. Dançava-se em gafieiras, em boates, ou em casa quando os pais passavam o fim de semana fora. Carinho de leve beijo na boca entre mãe e filho era “libidinoso”, beijo de pai para filho não era coisa de “homens”. Humanidade burra e preconceituosa há-a em todos os lugares e civilizações, a aprendizagem é lenta como passo de tartaruga sonolenta. O planeta gira á velocidade de milhares de quilômetros por hora, mas nele tudo é vagaroso. Quem corre muito se arrisca a tropeçar nas células da humanidade mais próximas, ou a que lhe passem uma rasteira. Áquela festa  fui com meu pai, minha madrasta e minha pequena meia-irmã. Pela primeira vez provei uísque com guaraná e pedras de gelo que já saiu de moda sem que uma campainha tocasse para avisar. Quando acabou a festa eu estava no meu segundo copo e começava a gostar da mistura, mas as ordens eram ordens. Larguei o copo pela metade e acompanhei a minha nova família até em casa. Nenhuma campainha tocou para avisar que a festa tinha acabado para mim. Voltei a encontrar a prima, recém casada, em Santos. Ainda não tinham filhos por essa altura, mas eu já estava casado e tinha dois. O pai dela era irmão de minha avó, de quem não herdei os olhos azuis claros quase transparentes.


O tecido das lembranças rasga-se muito facilmente por que elas servem como suportes para decisões no futuro, quer para evitar momentos desagradáveis, quer para repetir as condições de momentos de prazer. Lembranças são como gavetas de arquivo que se resgatam quase à velocidade da luz. Elas podem ser verdes de esperança, brancas de pureza, negras de maldades, vermelhas de raivas, de todas as cores e matizes. Se alguém de quem você se lembra, passados anos não se lembrar de você, não dê nenhuma importância. A lembrança desses finalmente ficou transparente.


® Rui Rodrigues

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