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A morte de Pancrácio.

A morte de Pancrácio, nos tempos que ainda são.


Quinta feira, dia 28 de julho de 2011. Meu coração hoje bateu de um modo diferente do costume. Pancrácio, apelido carinhoso que déramos a nosso amigo, já não existe. Morreu. Foi morto de forma caridosa, mas foi morto. Eu vi, e não pude fazer nada. Não sei o que esta humanidade tem de tão natural ou de tão perverso, mas mesmo sendo natural, não deixa de ser perverso. Pancrácio era realmente um ser bonito, bem apresentado, forte, de gênero bem definido como poucos. Não sou de apreciar o gênero que represento, mas admito que Pancrácio fosse... Exuberante. Exuberante é o termo que melhor pode definir um sujeito como aquele, sempre rodeado de fêmeas que, mesmo não implorando o seu amor, ou nem mesmo o admirando, o deixavam que as montasse de forma descarada, ali, na frente de todo o mundo. Era um frenesi, um escândalo. E não é que fizessem o seu tipo de amor de forma discreta, não. Qualquer fêmea que Pancrácio amasse, era em altos gritos, como se fosse o último gozo. Neste dia, para Pancrácio foi. Foi irremediavelmente, o último de seus dias.

Quando cheguei a casa de minha amiga, no Peró, ainda o vi com vida. Estava descansando à sombra de uma pitangueira que ora, por estas andanças de clima inconstante e surpreendente, florescem de forma precoce. A pitangueira estava coalhada de flores, prontas para brotar. A pitangueira era a vida desabrochando logo após a fecundação. Senti pena da pitangueira, porque a sua forma de ser fecundada não lhe permite o gozo, sendo o gozo, para nós humanos, o que incita à fecundação, como uma das grandes armadilhas da natureza. Natureza! Quantas armadilhas nos arma a natureza, cheia de truques, de sutilezas, como essa que nos pregou de termos de caçar para comer. Não existe ser vivo que não tenha que matar para comer, mesmo que encomende a morte a outro ser vivo, que se dispõe a matar, exorcizando os nossos remorsos . Mata-se até o nosso semelhante...
Quando olhei a pitangueira, amei a natureza. Quando pensei que lhe iria colher os frutos tão logo amadurecessem, ainda mais amei a natureza, mas quando pensei que um dia a humanidade já foi presa de outros seres acima dela, então no topo da cadeia alimentar, eu a odiei. A odiei porque mato, matas, matam, matamos, matais, matam. Como foi possível que Deus nos tenha  mandado a um mundo onde se é obrigado a matar para sobreviver? Não poderia ter Deus  permitido que cada ser se alimentasse quimicamente do solo ignóbil e neutro, parado, estático, inerte, sem o mínimo sentimento, o mínimo respirar? Mas não... Deus me mandou para um lugar em que se mata e se morre. Talvez, apenas talvez, Deus esteja certo se olhou apenas para sua Obra que se mantém a si mesma, sem querer saber que Pancrácios ou eu, ou pitangueiras morrem para alimentar outros seres. Se a definição de Deus estiver correta, ele está certo. Mas... E se nossa concepção de Deus não estiver correta? Então, Pancrácio teria morrido em vão... Ainda vislumbrei o meu amigo Pancrácio, irmão do Horácio, no meio de suas meninas, ali pelo meio do campo, arrastando-lhes a asa. Depois de uns arrufos, transava com elas, uma a seguir á outra, sem descanso, a próstata vermelha, um portento de macho... Forte, esbelto, bonito, brilhante, voz grossa.

Todos nós, que freqüentávamos aquela grande casa com jardim no Peró, amávamos Pancrácio e seu irmão Horácio, irmãos certamente, embora um tendesse para uma cor mais escura e Horácio fosse branco. Mas lá estava a lei da natureza esperando impiedosa. Quando minha amiga disse que pretendia fazer o almoço mas que não  tinha comprado frango, ninguém pensou duas vezes e olharam para Pancrácio, o vermelho. Ele tentou fugir, mas encurralado, como costumava encurralar as galinhas do terreiro, não conseguiu escapar. Em meia hora, jazia na panela de pressão com alho ,cebola, louro, tomate, um copo de vinho branco seco, sal, pimenta do reino, e um toque sutil de Rosemary.

Minha amiga não sabia se ria se chorava, porque a morte de Horácio tinha se transformado num prato delicioso que se dissipava em nuvens culinárias pelas esquinas do bairro.

Que jaza em paz. Vou sentir saudades dele. Grande sujeito!
Ergo sum.
Rui Rodrigues