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sexta-feira, 27 de julho de 2012

Uma receita de ambrosia e saudades de Susana








De vez em quando me lembro de pessoas que passaram pela minha vida e de outras cujas vidas se cruzaram com a minha. De todos sempre carregamos lembranças, umas boas, outras nem tanto. Algumas só com esforço conseguimos lembrar e mesmo assim só quando nos perguntam por elas ou lhes fazem referência.

Suzana é uma das que me lembro com muito carinho. Era uma mulher como as outras, mas nenhuma mulher era como Suzana. Depois que entrou em minha vida nunca mais saiu. Até hoje!



                                                                  A vida na Campanha gaúcha




Professora primária tinha os conhecimentos básicos e o perfil psicológico para tomar conta de uma família constituída de marido e três filhos, em meio ao vento, ao calor e às geadas do Rio Grande do Sul, em plena campanha. Dava toda a atenção á enorme família que vivia entre o segundo distrito de Piratini, Pelotas e Porto Alegre. Tinha família também no Rio de Janeiro e no Estado de Alagoas - em Maceió. Na estância da Coronilha onde vivia com o marido e os filhos, cuidava também dos peões que por vezes em numero maior de quarenta invadiam a estância para cuidar do gado, da tosquia de ovelhas. Não era trabalho fácil. O progresso faz com que o trabalho se simplifique e hoje a estância não tem mais do que um ou dois empregados, quando tem. Pertence ao filho dela. Nos arquivos da enorme família havia condecorações dos Imperadores do Brasil, lembranças dos tempos dos Farrapos.

A história de Suzana poderia ser contada desde o tempo das sesmarias, quando o governo português decidiu distribuir terras para aumentar a produção através de uma lei de 1375. Com a descoberta do Brasil a partir de 1.500, essa lei entrou em vigor na nova nação. Naquela oportunidade a família de Suzana, mais particularmente através do marido, herdou cerca de 80 km de terras de ambos os lados da estrada que une a cidade de Pedro Osório a um lugar chamado Ferraria. A distribuição de heranças foi dividindo a sesmaria em estâncias de maior ou menor porte. A de Suzana e do marido, a da Coronilha, tinha cerca de 650 hectares de terra boa para pasto e cultura. A estância sede ainda existe. É a estância da Arvorezinha, onde ainda hoje se cavoucarmos nas terras ao redor ainda se poderão encontrar colheres de prata perdidas nos bons tempos. A arquitetura é imponente. Seria um longo caminho contar a sua história desde essa época. Bastam alguns aspectos de Suzana que a tornaram uma das mulheres mais humanas que conheci.



Com 19 anos tornou-se independente e saiu de casa para exercer o cargo de professora numa cidade. Foi em Torres, uma cidade balneário do Rio Grande do Sul, mas não vejo que importância teria se tivesse sido em cidade diferente, noutro Estado ou país. Casou e teve os três filhos. Viu-os crescer. Cuidou deles dividindo-se entre a fazenda e a cidade de Pelotas onde estudavam. Uma crise na pecuária fez com que as finanças da família não corressem muito bem durante alguns anos. Quando a conheci já era viúva precoce. Estava vestida com uma camisola de lã negra, uma calça de lã. Foi no                                 inverno de 1972 em Porto Alegre. Fora ao escritório para conhecer o namorado da filha.

No final do ano era costume a família se reunir na estância da arvorezinha, a estância mãe. Vinha gente de todos os lados. Fazia-se um churrasco à gaúcha, como não podia deixar de ser, com a carne espetada à volta de uma vala retangular aberta no solo. Enquanto a carne assava era espargida com ramos de salsa e coentro molhados numa bacia com sal grosso meio dissolvido. As costelas de carneiro eram famosas, a carne divina criada ao ar livre sem agrotóxicos comendo capim nativo.

A receita de ambrosia de Suzana

Na cozinha, Suzana preparava a sobremesa: Ambrosia feita com leite gordo de vaca criada com mimos e todos os cuidados. Usou para cada litro de leite, 8 colheres de sopa de açúcar, dois paus de canela e quatro gemas de ovos vermelhos, grandes, de boas galinhas poedeiras. Para preparar, levou a fogo brando em panela larga, o leite, o açúcar e a canela até chegar ao “ponto de fio”. Enquanto isso bateu as gemas até ficarem consistentes. Juntou à panela e continuou o aquecimento por cerca de cinco minutos mais sem mexer, soltando as gemas das laterais da panela. Ao fim dos cinco minutos virou a massa com uma escumadeira e fez um furo bem no centro da massa. Conforme o leite ia subindo, mexia com muita delicadeza até a massa adquirir a consistência de doce de leite mole. A partir deste ponto, deixou cozinhar por mais cerca de 15 minutos. A ambrosia estava pronta e o churrasco começava a ser servido.

Filhos casados

Sabia dosar as visitas aos três filhos, amava os netos e além das boas conversas, havia sempre um espírito da concórdia pairando nos lares. Dava razão a quem, no seu entender, a tinha, independente de graus de parentesco. Foi um prazer vê-la viajar para a Colômbia onde passou meses em companhia da filha e dos netos, e dali para Miami para se divertirem na Disney. Sua receita de “ambrosia”, um doce feito à base de leite, era sempre recebido com sucesso como uma de suas sobremesas prediletas. Logo depois de conhecê-la em POA, fui convidado para um almoço em sua casa. Um prato de feijão com mocotó, rodelas de lingüiça calabresa, salsa picada por cima, um arroz branco e um bom vinho. Suzana sabia cozinhar, e tal como o pai das crianças conversava com elas. Não tinha respostas do tipo “é assim porque eu quero” ou “é assim porque é assim”. Tudo tinha uma explicação e deveria ser debatido. Suzana sempre foi uma pessoa que era um prazer ter sempre em casa. Passou bons dias comigo em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em S. Paulo, Barranquilla na Colômbia, mas foi impossível convidá-la para conhecer Portugal e o Chile.

Era uma mulher de argumentos, e os tinha fortes, porém não era das que buscavam e rebuscavam argumentos para ter razão. Sabia perfeitamente quando a não tinha, ou mesmo quando suas “razões” não eram tão absolutas que fossem irrepreensíveis. Mas era raro não ter razão. Sobre as “coisas” da vida, sempre a tinha. Uma mulher dessas é respeitada até pelos inimigos, se os tivesse, mas não creio que Suzana tivesse um único sequer. Construíra uma casa de madeira na praia do Laranjal com um lindo jardim de que cuidava entre idas e vindas a Porto Alegre para ver uma filha, á Estância da Coronilha para ver o filho, ao Rio de Janeiro ou no Brasil onde quer que a outra filha estivesse. Nos tempos em que passava no Rio de Janeiro dedicava a sua maior atenção aos netos. Acampava com a família naqueles bons tempos em que ainda se podia acampar na Rio Santos em confortáveis barracas. Foi lá que o neto dela aprendeu a comer e a fazer sushi com um japonês amigo do pai e que trabalhara com ele em S. Paulo.

Para Susana não havia impossíveis. Era tudo uma questão de dar um jeito ou esperar o tempo certo para ser possível. Nunca a ouvi gritar. Com ela as discussões perdiam a força, amansavam, esfumavam-se.

A memória de Susana.

A tristeza abateu-se, cheia de esperança, quando Susana recebeu a notícia de que seria melhor perder um seio, mas quando recrudesceram os sintomas, anos depois, entrou novamente em tratamento de quimioterapia, numa época em que a rejeição ao medicamento ainda não evoluíra. Fui a Pelotas onde estava internada. Sabia que ia para me despedir dela. Na verdade, mesmo em casos de minha família jamais me despedira de alguém. Meses atrás, ainda em sua casa do Laranjal, me telefonara e discutira sobre a validade de viver uma vida com qualidade ou não viver. Como confidente de algumas de suas facetas na vida, senti meu coração oprimido. Mentir-lhe de nada adiantaria. Apelar para Deus, sobre o qual ela tinha seus próprios conceitos, também não. Um dia soubemos que tinha decidido parar com a terapia, e agora eu estava em Pelotas para me despedir dela. Quando me chamaram para ir à sala da UTI onde tinha recobrado a consciência, conversamos por uns cinco minutos que me pareceram uma eternidade, o coração apertado, lágrimas irritantes, difíceis de conter, umedecendo-me os olhos, a voz traindo a minha vontade de mostrar-lhe que havia esperanças. Não se podia – nem se devia – enganar Susana. Mas mesmo assim, disse-lhe que embora ela não acreditasse em Deus como uma boa parte acreditava, deveria haver uma diferença de tratamento para as pessoas como ela. Segurei-lhe a mão esquálida por onde lhe entrava o soro. E disse-me, chamando-me pelo nome, de olhos fechados, tentando abrir-se: - Mas é muito difícil. É muito difícil.

Há um mundo de lembranças de Susana, boa esposa, boa mãe, excelente avó e por todo este mundo muita gente se lembra dela em muitos lugares. Gostaria de revê-la um dia onde certamente está.

Rui Rodrigues

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