O homem que conversou com Deus
Ouviu o estampido e nada
mais. Nada ficou do que passara, nem uma esperança de futuro. O que sentia era
apenas escuridão, frio, silêncio. Apenas sentia, nada mais, nem uma lembrança
sequer, e só uma coisa sentia: Que “ainda” existia embora tivesse perdido algo
que não sabia definir. Então uma luz se acendeu e viu um vulto. A luz era tão
forte que não lhe permitia ver se algo mais existia além do vulto e da luz. Nem
a si mesmo se via nem tinha noção de nada. Era como se existisse sem saber o
que era, como era. E ouviu sons perfeitamente entendíveis.
- Não estás entendendo nada
do que está acontecendo, não é? (Foi o que ouviu vindo do vulto. Agora via um
vulto)
- Não! Tu sabes? (e se deu
conta de que podia emitir sons como os do vulto, e podia articular idéias)
- Morreste no mundo em que
vivias...
- E o que é morrer?
- Realmente, por tuas
perguntas, estás morto e bem morto. Vou ter que te devolver um pouco de vida
para que te possas lembrar...
- Ah!... Agora me lembro...
Foi tão rápido... Eu estava em pleno assalto à casa junto com meus companheiros
quando de repente tudo parou, e veio a escuridão, o silêncio... Foi um tiro,
não foi?
- Foi!
- E agora? O que me vai
acontecer? Posso voltar a viver?
- Não há como. Regras não se
mudam. Regras e leis não se mudam. Já imaginaste o mundo, o universo, funcionar
durante uns tempos, depois parar para descanso e voltar a funcionar? A verdade
é imutável. Se for verdade, como é, que tudo o que morre morre para sempre,
então não há a mínima hipótese de se ressuscitar. O que está feito está feito,
e resta o mérito.
- Mas não posso voltar no
corpo de uma criancinha recém nascida?
- Não... A criancinha recém
nascida terá seus próprios méritos em sua vivência. Tu tiveste o teu.
- Mas nem como uma ave, uma
planta, uma vaca...
-Não... A vida é uma
oportunidade única. Na verdade, uma dádiva deste Universo.
-Então por que me falas, se
o que me espera é a escuridão, o frio, o silêncio? O que me acontece a seguir?
- Nada. Nem terás noção
dessas coisas, escuridão, frio, silêncio... É como se nunca tivesses existido
para o Universo. Assim como um átomo que desintegra. É transformado em energia
e outras partículas, e até pode voltar a ser átomo. Teu corpo, por exemplo, já
está sendo transformado até ficarem apenas os ossos e nem isso sobrará com o passar do tempo. A
Terra transforma tudo.
- Mas há algo que não está
de acordo... Eu morri e estou falando... E me lembro de toda a minha vida.
- Não há nada de errado.
Depois da “morte” física, o cérebro ainda tem energia para ficar vivo por uns
dez minutos. Nós estamos conversando nesses dez minutos. Depois te apagas
definitivamente.
- Todos os que morrem
conversam contigo?
- Claro... Mas só para o s
que têm uma noção do que é “Deus”... Cada um conversa com o seu!
- Mas eu era ateu!
- Ninguém é completamente
ateu... Só se é ateu como forma de contestação ou revolta contra o mundo no
qual se surge e do qual se tem consciência. A grande pergunta “Quem fez tudo
isso, o universo, a vida”, só tem resposta credível na ignorância de que só um
Deus poderoso o poderia ter feito. E na hora do medo, todos pensam em seu Deus.
Quem nunca pensou, pensa numa “força” invisível...
- Então... Tu não existes?
- Como não?... Não estamos
aqui conversando? Não vês o meu vulto?
- Vejo... Mas dizes que
estamos nos dez minutos em que meu cérebro ainda vive, e que há muitos deuses...
Quem é o Rei dos deuses?
- Claro... Depois de
completamente morto, com cérebro morto, querias pensar com o quê, se já não
tens nem a energia de uma pilha gasta? E quanto ao Rei dos deuses, um só Deus
basta para não ter com que se preocupar com traições, guerras... Essas
coisas...
- Quer dizer então, que
fazendo o bem ou o mal, enquanto vivemos, tanto faz, que o fim será sempre o
mesmo, isto é, a morte completa e irreversível?
- Não... Aí não... A morte
sim é completa definitiva irreversível... Quanto ao “tanto faz”, é que não...
Sociedades mais violentas tornam o mundo mais violento, menos cuidado, leva à
deterioração e posterior extinção das sociedades. Sociedades mais educadas,
mais pacatas prolongam a vida da espécie e da vida no planeta. No tempo deste universo, tudo depende do que
“já passou”.
- Entendi... Mas de que...
me... vale... s a b e r a go ra de... tuuuudo... isso?
Ouviu, mas já não conseguiu responder...
- Devias ter pensado...
® Rui Rodrigues
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