Se pudéssemos ver o mundo
que não veremos... Ou “minha galinha merece uma medalha de honra ao mérito”
Este mundo que vemos é
produto da evolução e seleção naturais. Entenda-se como “natural” o que é
produto apenas das leis da natureza e sua aparente aleatoriedade... O que vemos
é um céu cheio de espaços aparentemente vazios palmilhado de astros. Uns raros
caem sobre nós, a maioria esmagadora fica lá em cima rodando, girando, “voando”
a velocidades fantásticas que não percebemos. Para nós parecem estar todos
parados. Por “nós”, entenda-se toda a espécie viva de qualquer dos reinos da
natureza, mesmo que aparentemente nos pareça não terem qualquer laivo de
inteligência que possa competir com a nossa, a dos humanos. Talvez um dia se
chegue à conclusão que “inteligência” é algo que ainda não entendemos muito bem
e que os vírus são muito mais inteligentes do que os humanos. Estamos em plena
guerra contra eles e pelo que parece, não estamos ganhando. O Ebola é um
exemplo e há muitos mais exemplos.
Um dia morreremos e
deixaremos de “ver” este mundo, mas ele continuará evoluindo, espécies mais
adaptáveis às transformações do ambiente proliferarão mais do que outras, novas
espécies surgirão e outras serão extintas ou se extinguirão por falta de
condições de adaptabilidade ao meio. Mas...
... Mas se pudéssemos
ressuscitar daqui a um milhão de anos, talvez desejássemos voltar para a cova:
O planeta Terra ficará irreconhecível, o comportamento humano será muito
diferente, os valores sociais, morais, a moda, os hábitos, nosso próprio corpo
sofrerá alterações significativas principalmente devido ao uso de “partes”
físicas a que hoje chamamos “próteses” para dar a nosso corpo capacidades
extras que naturalmente não conseguimos obter. Por outro lado, as modificações
genéticas que já iniciamos em vegetais e animais não são fruto de uma “evolução
natural”, mas de nossas próprias necessidades. Um ou outro gene escapa para a
natureza e de repente nos iremos deparar com novas espécies transgênicas
desenvolvidas (agora já naturalmente a partir de alterações que induzimos e que
fugiram ao nosso controle) que surgirão da noite para o dia. Passaremos a
estudá-las, a reaproveitar seus genes para novas alterações genéticas... E
alguns desses genes nos atingirão. Poderemos passar a ser uma espécie
“azulada”, esverdeada ou amarelada.
Minha galinha – tanto quanto
parece – não tem genes alterados. É uma no meio de quatro que comprei como
sendo “caipiras”, e que se juntaram a outras duas e a um galo que eu já tinha.
Uma fugiu! Nunca vi galinha voar, mas estas quatro caipiras voavam –
literalmente voavam – pulando muros de mais de três metros de altura. Tive que
lhes cortar as asas. No segundo mês era-me fácil recolher dois a três ovos por
dia, depois escassearam... Vi que comiam os ovos, menos uma, a única branquinha
do lote das quatro novas. Quando certo dia a vi deitada no chão por bom tempo,
e no dia seguinte também, percebi que estava chocando ovos. Chocava apenas dois
ovos. Apanhei então mais cinco ovos dos que havia guardado, e coloquei-os no
ninho improvisado. Por umas duas vezes a ouvi gritar: As outras galinhas
tentavam comer-lhe os ovos, seus filhotes. Separei então as galinhas. Certa
noite veio o gambá por uma fenda na malha de cobertura do galinheiro. Eu tomei
conhecimento quando a meio da noite ouvi seu grito lancinante que parecia de
gente. Era um grito de dor, mas não apenas de dor. Era um apelo a um “deus”, á
natureza, a algo para que a salvasse da morte... Ela tinha uma missão a cumprir
e essa missão estava sendo interrompida pela nulidade da inexistência
antecipada. Era um pedido de socorro. Levantei-me desperto a meio da noite e
abati o gambá. Lamento até hoje a morte prematura do gambá, mas não tive
alternativa. A galinha era minha amiga, o gambá um simpático intruso que sempre
via passar em cima do muro, tranqüilamente, que vinha comer os restos de frutas
que eu lhe deixava. A ele e a seus parentes que vivem algures no condomínio e
que nunca procurei saber onde!
Naquela noite, sete dias
atrás, o gambá a mordeu de morte. Tem uma mancha sanguinolenta do lado. Está
seriamente ferida. Não sei onde arranjou forças, mas se alimenta, bebe água e
impressionantemente continuou chocando seus sete ovos. Vi que o gambá estava
comendo um ovo quando o abati. Então, ela não só estava chocando os ovos que
pusera, como os que coloquei e mais
alguns que as outras galinhas haviam posto antes que as apartasse.
É esta maternidade da
natureza que me impressiona e admiro: Nenhuma mãe tem filho feio, nenhum pai se
incomoda em criar filhos de genes alheios. Mãe ou pai que se incomodam com
genes alheios não são da natureza embora pertençam a ela... São natureza
desnaturada.
E se pudéssemos ressuscitar
daqui a um milhão de anos, veríamos que “nosso” planeta estará deveras
diferenciado. Sinto, porém, que o termo “nosso” está completamente equivocado.
O planeta não é nosso, não nos pertence... Nós é que lhe pertencemos enquanto
vivemos. E para lhe pertencermos de fato é necessário senti-lo. Quem vive
alheio ao meio em que habita não pertence a nada. É um monte de sentimentos
desperdiçados. Minha galinha merece uma medalha de honra ao mérito.
PS- Quase 15 dias decorridos desde que foi mordida pelo gambá, a galinha continua chocando os ovos. Não me atrevi a verificar como está a sua ferida. Não deve ter sido letal e provavelmente ela se irá recuperar.
PS- Quase 15 dias decorridos desde que foi mordida pelo gambá, a galinha continua chocando os ovos. Não me atrevi a verificar como está a sua ferida. Não deve ter sido letal e provavelmente ela se irá recuperar.
® Rui Rodrigues