Naquele ano certo dia estávamos duros, sem dinheiro pra cigarros, eu o Simões e o Boavida (era o nome dele, João Boavida Pedro). O Simões disse que as pessoas eram boas, que bastava pedir. E como ia passando uma senhora, foi na direção dela e disse que estávamos sem dinheiro para o "autocarro" e para o metrô, se ela poderia nos ajudar que eu e o outro éramos muito tímidos e tínhamos vergonha de pedir... A senhora ergueu os olhos como quem faz contas mentalmente, e deu-nos, fazendo nós as próprias contas, pra dois maços de cigarros. Despediu-se a senhora com um sorriso maternal e um sábio e ingênuo conselho:
- O resto peçam a outra que não tenho mais. Desculpem, mas acabaram-se-me os trocos...
Nós tínhamos credibilidade, com nossas roupas sempre limpas e não havia outras hipóteses para faltar dinheiro justamente para os três... Naqueles tempos eu fumava um maço a cada duas semanas.
Agora no início de março de 2018 terão decorrido dois anos sem uma única tragada de cigarro. Falta um mês. Não odeio cigarro... Lamento sim o tempo perdido em que fumei e sinceramente, não me deu tanto prazer assim... Creio até que era bom quando não me "obrigava a".... A dependência é que nos torna umas coisas deploravelmente fracas... qualquer vício, até o do amor, é um sinal de fraqueza....
Aprendi graças a minha netinha que amo de paixão e me deu a maior força na base de muito tapa na minha bunda. Eu nunca levantei a mão pra ela, nunca! Mas ela pra mim já me bateu várias vezes na bunda por causa do cigarro... Ela é muito especial.
Dois anos!!!! Quanto mais velho fico, melhor me sinto... Deve haver alguma coisa demasiado certa comigo...
Mas me lembrei hoje dos velhos tempos em Lisboa, 1960, eu e mais dois amigos sem dinheiro pra cigarros... Que eu saiba, O Boavida morreu de ataque cardíaco antes dos 20 anos e o Simões nas guerras de África. Eu tinha 22 amigos que via regularmente e que se foram despedir de mim no navio Aragon em 18 de abril de 1962 acenando lenços, e uma namorada que nunca mais vi. Dos 22, 20 morreram em África.
Nas fotos:
- Varinas, vendedoras ambulantes de peixe... Coitadas... Andavam com cestos na cabeça pelos bairros da cidade...
- No Bonde, "elétrico", há um cara muito parecido comigo em pé, no estrado, de gabardine clara logo atrás do Fiscal...
- A vida nos empurra. Há sempre grandes amores que deixamos para trás.
- Os "autocarros" de dois andares que nos faziam esquecer onde deveríamos saltar...
Rui Rodrigues
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