Aproximava-se o inverno no hemisfério sul. O sushiman com experiência internacional fora-se para a Noruega. Viera por instâncias maternas, mas aqui não podia ganhar o que ganhava lá fora. Um dia pegou as maletas e foi-se. Eu mesmo o havia aconselhado a não vir, porque sabia quanto lhe podiam oferecer por aqui. Mas voltou a sua terra natal. Quando partiu, senti muito. O Bar do Chopp Grátis não serve mais sushis nem sashimis. Nada de comida japonesa que me lembre o sushiman a quem cuidei como filho. Minha secretária agora era outra, muito parecida com a da foto.
Logo na admissão me disse que gostava muito de transar. Eu perguntei-lhe:
- Comigo?
- Claro... (Disse ela) mas só durante o horário de trabalho ou quando estiver em sua casa. Depois eu saio com quem quiser...
Avaliei a minha idade e situação, voltei a despi-la com o olhar e topei. Mais vale dividir filé que não comer nada. Um homem deve saber quando que pode cantar de galo e quando tem que piar como pardal...
Evidentemente que uma secretária destas atrai tudo que é tipo de cliente, desde aventureiros a homens em vias de desquite, a fantasmas de meio dia que são os piores fantasmas que existem no mercado. Tudo de ambos os gêneros e de todos os pressupostos, desde os mais flácidos aos mais empertigados... Um dia atraiu uma amiga que nos disse entre olhares de curiosidade:
- Me empresta o coroa!... (e olhou pra mim).
E minha secretaria respondeu:
- Só se eu for junto!!!
(Era ouro sobre azul, sopa no mel, azeitona na empada...)E nos perdemos por mais de hora lá no cafofo que mantenho no sótão do Bar. Depois descemos como se nunca tivéssemos subido, e fingimos não perceber que toda a tripulação do Bar nos olhava, assim como os passageiros. Sentei numa mesa.
Um sujeito mal encarado veio sentar-se sem perguntar se podia. Jogou em cima da mesa um pergaminho e fez-me sinal para olhar. Era um pergaminho genuíno do século XV, e tinha uma data: 1427. Constava nele que um tal de José Pinna Manlrique navegara com Diogo de Silves na direção Noroeste. Manlrique levava uma caravela e uma nau. Quando Diogo de Silves descobriu os Açores, voltou, mas ele continuou no rumo. A expedição de Manlrique foi dada como perdida pelo Infante D. Henrique. Ela zarpara praticamente incógnita. O que o pergaminho contava era que um marinheiro de nome João Peres de Androves, conhecido como "Zarolho mão leve", e que antes de ser garfado pelo recrutamento da marinha passava os dias no Chiado roubando turistas da Flandres e de Gênova. Segundo o pergaminho teriam chegado a uma terra muito grande, cheia de gente parecida com hindus mas de olhos um pouco esticados, cabelo liso que viviam em tendas cônicas, fumavam tabaco e comiam perus.
Um dia os hindus esquisitos (os verdadeiros eram mais morenos de cabelo liso sem enfeites e estes eram meio avermelhados e usavam penas na cabeça) invadiram a nau e lhe pegaram fogo. A tripulação que conseguiu se salvar passou-se para a caravela e saíram dali de volta para Portugal. Uma tempestade que quase os afundou, afastou a caravela dos Açores. Com tanta gente a bordo, os mantimentos eram poucos, uma epidemia de escorbuto fez uma razia na tripulação fraca. Androves, o "Zarolho Mãos Leves" e mais três homens era tudo o que tinha restado da tripulação. Incapazes de gerir o convés por serem muito poucos e estarem fracos, numa tempestade a norte das ilhas Berlengas, naufragaram, tendo sido resgatados por pescadores. Só Androves sobreviveu. Depois de muito reclamar, levaram-no à presença do Infante D. Henrique, mas não conseguiu chegar lá. Levaram-no para interrogatório, que foi quando escreveram o pergaminho. Nunca mais ninguém viu o Androves "Zarolho Mãos leves".
- Duas coisas, além de quem é você: O que aconteceu com o Androves e como conseguiu o pergaminho? Perguntei ao desconhecido...
- Meu nome é incógnito porque não quero que me conheçam e vim pra fazer negócio. O Androves foi abatido porque o tratado de Tordesilhas ainda não tinha sido feito(isso só aconteceria em 1494)e Portugal não tinha como colonizar ainda. Precisava de tempo. O pergaminho foi roubado da Torre do Trombudo em Lisboa, que fica nas fundações do Castelo de S. Jorge. Depois apareceu no Louvre e depois no Museu do Prado. Mas eu represento um cliente que quer permanecer incógnito.
- Mas nunca ouvi falar na Torre do Trombudo...
- Claro que não ouviu... Nem no pergaminho, nem no Zarolho mãos leves, nem em mim... Somos a novidade. Agora o preço. Meu cliente quer a módica quantia de 250 reais.
Aquilo era falso, evidentemente. Mas era bonito, e imaginei aquele pergaminho pendurado numa moldura no meu Bar. Barganhei:
- Não posso dar mais de 50 reais...
- 125 !...
- 75..
-100...
Fechado... Tirei uma nota de 50 e outra parecida que tinha sido rejeitada no Banco, e ele me deu o Pergaminho. Nunca mais vi o sujeito mal encarado.
Um dia, ao reler a carta do Pedro Vaz de Caminha, reparei que ele a certo ponto escreve: "... Aqui em plantando tudo dá..". Percebi logo que quando desembarcaram, a primeira coisa que os portugueses fizeram foi abraçar uns sujeitos que por lá andavam há pelo menos uns 3 anos e que lhes mostrou as hortas que tinham plantado. Por isso foram bem recebidos pelos ameríndios e puderam rezar a primeira missa, os autóctones se comportando como se já soubessem rezar. Mas então, se a expedição de uma caravela e uma nau, a do Androves, liderada pelo Pinna Manlrique, tinha acompanhado a do Diogo de Silves (este todo mundo conhecia e estava na história) como poderiam eles ter chegado ao hemisfério Sul, léguas e léguas a sul, tendo que atravessar florestas e Montanhas altíssimas, terras polvilhadas de índios?
Ou teria sido uma outra expedição, ou alguns sobreviventes resolveram pegar uma lona, fazer uma jangada e se fazerem ao mar vindo de Miami, percorrendo as costas do Golfo do México, Passar pelo Norte do Brasil... De vez em quando paravam em terra, comiam e colhiam frutos, e assim, determinados, foram parar em Porto Seguro e por terem gostado muito, por ali pararam mesmo em definitivo até ao dia em que viram chegar as naus de Cabral. Mataram logo a fome de bacalhau com grão de bico, tomaram um porre homérico, e quando acordaram, e a farra acabou, viram que Cabral tinha partido e os deixara na terra novamente.
Mas não importava. Verdadeiro ou falso, o pergaminho ficaria muito bem na parede. Dava um ar vetusto e erudito ao estabelecimento. Um dia apareceu um casal, ele um nordestino sem um dedo e ela uma gaucha sem cérebro, ambos tresandando a cachaça da braba, que quiseram fazer uma troca: O pergaminho e meu voto por um tapinha nas costas e uma selfie com eles... Tem gente que não tem a minima noção do quanto valem nem do quanto podem exigir. Acabam presos mais dia menos dia.
Rui Rodrigues