Arquivo do blog

sábado, 29 de outubro de 2011

O Vulto




O vulto

O vulto jazia na pequena sala em frente a um computador da moderna tecnologia, controlável por seu pensamento através de pequeno dispositivo disfarçado entre os seus cabelos longos e desarrumados: um aro de cabelo eletrônico que em nada lhe prejudicava a silhueta. Do outro lado da sala, uma bicicleta ergométrica lhe permitia o controle do peso. A parede da sala era o seu monitor. Por ele controlava todos os equipamentos do lar, desde o forno de micro ondas à pequena máquina de lavar a seco, regular a temperatura do chuveiro elétrico.  Sentiu um desejo incontrolável de ver neve, esquiar, sentir frio. Não buscava explicações em seus desejos. Para ele, os desejos não necessitavam de explicação. Eram vontades que podiam ou não podiam ser concretizados. Se podiam ser concretizados, ficava feliz. Caso contrário, mudava sua vontade para desejos que pudesse concretizar e continuava feliz do mesmo jeito.

Ligou o ar condicionado para o frio máximo, vestiu um abrigo quente, ligou a parede-monitor num programa de esqui na neve nos Alpes suíços, e postou-se adequadamente no meio da sala. Logo estava esquiando a toda a velocidade, seu corpo acompanhando a velocidade vertiginosa na descida da montanha... Sabia que há muito tempo atrás isso era possível fazer ao vivo, mas os turistas deixavam muito lixo desde o caminho de acesso até a sua saída do parque, e os hotéis não tinham nada de politicamente correto em meio a essa natureza, e acabaram fechando as portas. A natureza deveria ser conservada virgem... Achava em particular que era isso que se buscava na humanidade: a virgindade do planeta, a natureza pura, sem nada que a pudesse poluir. Buscavam o mesmo na consciência humana, O planeta todo clamava por pureza de sentimentos.

O vulto sentiu-se cansado. Fazia meia hora que descia uma montanha que nunca tinha fim. Faltava naquele programa o “chegar ao fim”, tirar os esquis, colocá-los dentro de um carro, subir a montanha e tomar alguma coisa no bar do hotel. Desligou o programa, despiu os agasalhos, condicionou o ar para temperatura ambiente e foi até a geladeira. Apanhou umas pedras de gelo, e colocou num copo. No liquidificador bateu um tomate com sal, pimenta do reino, hortelã e coentro. Despejou tudo no copo com o gelo e tomou o seu “Bloody Mary” sem álcool. Tomar álcool era politicamente incorreto. O vulto  não fazia isso. Nem fumava qualquer tipo de qualquer coisa fumável. Não tomava drogas em absoluto. Sexo era coisa muito rara. Por vezes confundiam sua conversa com assédio sexual, e sentia-se desconfortável. Outras vezes constatava que não se tratava de uma mulher, como desejava, mas não podia reclamar, sem ser confundido com homofobico. Não tinha muitos prazeres diferenciados na vida. Limitara-se a viver dentro de uma estreita faixa de prazeres que podia alcançar, e qualquer outro que tivesse, por inesperado, era contabilizado como lucro do mais alto valor.

Acabou de tomar o drinque sem álcool, pousou o copo na pia da mini cozinha e apanhou uma folha de papel que passou cuidadosamente pelo copo até ficar limpo. Jogou o papel numa cesta de lixo, e apanhou outro com um forte cheiro de álcool. Repetiu a mesma operação. Agora o copo estava limpo e não gastara uma só gota de água, exceto pela que fazia parte do álcool adulterado que impregnara o segundo papel. Tinha consciência que adulterar o álcool não era politicamente correto, mas o governo estava trabalhando nisso com afinco. Um dia seria possível. Pensou no que poderia fazer para se distrair de uma forma diferente. Sentiu necessidade de sair. Precisava de companhia que não fosse virtual. Até recentemente fizera parte de grupos virtuais na NET, onde todos eram amigos. No início, quase todos expuseram as suas fotos, as fotos da família, dos amigos da vida real, e depois se arrependeram porque dos amigos virtuais, uns o eram, outros não. Com tantas perseguições que ocorreram já não se encontravam perfis virtuais que correspondessem a perfis reais. Aquela virgindade e pureza tão procuradas como modelos para a natureza do planeta e do espírito humano perderam muito com a realidade. Os grupos se transformaram, a NET se transformou. O mundo todo tinha mudado. Já não era possível usar um tipo de letra para postar. Era um modelo único, que despersonalizava, como se todos “falassem” impessoalmente. A NET agora servia apenas para consultas, comércio, e comunicação entre familiares e amigos no mundo real. O mundo ficara melhor nos conceitos, mas na pratica estava ainda pior. Era o que o vulto apreciava quando assistia a filmes antigos, reportagens antigas, descrição dos hábitos de um viver que ficara muito para trás, e que nem chegara a conhecer. Precisava sair e sorver um ar diferente.

Quando abriu a porta de acesso, junto ao muro do condomínio, relutou em prosseguir. A rua estava impossível de ser freqüentada. Estava quase vazia porque eram poucos os automóveis que eram permitidos circular por usarem combustíveis fósseis e poluentes. O uso de hidrogênio como combustível tinha sido banido por obrigar á decomposição da água, cada vez mais cara. O petróleo somente era usado por forças armadas por sua potência, que dava aos motores grande torque e velocidade. O álcool era impossível de usar por ser perigoso para a saúde humana: muitos o tomavam ou cheiravam e a falta de alimentos no planeta não podia desprezar mandiocas, batatas, milho, e outros alimentos desperdiçados para produzir álcool. Nada disto era politicamente correto, e as fábricas de automóveis foram á falência. Somente transportes públicos movidos a energia elétrica de proveniência eólica, da força das marés, de hidroelétricas eram permitidos. O mundo demorara quase duzentos anos para perceber isso, e alimentara muitas guerras pela posse de combustíveis fosseis caros e poluentes. Mas mesmo com as ruas quase vazias, o território da cidade era muito diferente daquele de que dispunha em sua casa com toda a privacidade. A rua não era lugar seguro. Ir a centros de convivência cultural, para que os seres humanos pudessem desfrutar do toque, da troca de informações reais, era quase o mesmo que o da NET e em pouco tempo deveria extinguir-se: A pessoas precisavam de muito tempo para se conhecer e adquirir aquela confiança que lhes permitia o abrir do espírito e o prazer de coexistir. No mundo, todos eram estranhos, difíceis de conversar, susceptibilidades á flor da pele.

O vulto deu alguns passos pela rua, até divisar numa esquina um assalto a um casal que passava desprevenido. Cautelosamente voltou sobre os próprios passos, e voltou a passar pelo portão que se abriu automaticamente. Subiu o elevador, entrou em sua mini sala, ligou a TV na parede monitora. Hora de noticiário. Uma agradável apresentadora dava as notícias do dia. Havia passeatas em frente ao Congresso reclamando por trabalho, uma guerra no Oriente Médio e outra em África, Um governador de Estado e dois senadores envolvidos em corrupção ativa e passiva dizendo que eram inocentes, e o Movimento pelo Direito das Crianças, com integrantes entre os oito e os 12 anos de idade, pediam liberdade de expressão, direito de liberdade em seus relacionamentos, e controle do próprio horário para estudos, para dormir, e de relacionamentos com privacidade total. Exigiam ainda independência completa para decidir sobre o que fazer com a mesada financiada pelo Estado, a ser paga quando se formarem e arranjarem emprego, ou protelar a dívida até que trabalhem, uma espécie de escravatura consentida disfarçava de legal por força de contrato que violava os direitos da criança.

O vulto desligou a TV escovou os dentes, e olhou-se no espelho antes de se deitar. Vivia sozinho e tinha apenas 13 anos  


Rui Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Grato por seus comentários.