O homem, o copo e a percepção.
Tinha acabado de lavar
alguma louça. Afastou-se da banca da cozinha e foi até o computador que ainda o
aguardava numa página aberta esperando comunicação. Era impressionante como um
computador é um servo útil, bem mandado, que a um toque nosso faz o que
queremos, ou melhor, o que sabemos que podemos querer. Experts em computador
podem fazer muito mais do que quem apenas o usa para meia dúzia de funções.
Quando acabou a comunicação no computador voltou à cozinha. Ia preparar uma
caneca de leite com açúcar e três colheres de sopa de aveia em flocos.
Fazia-lhe bem à saúde e era saboroso. Principalmente o final, quando o leite
estava no fim, e comia a aveia com uma pequena colher de sobremesa. Reparou
então que no escorredor estava um copo de vidro de tal forma posicionado que
qualquer distração poderia fazê-lo cair do escorredor e certamente quebrar-se.
Retirou o copo com toda a atenção e o colocou em seu lugar de costume,
devidamente protegido contra tombos. Então, voltou-se para o copo e disse:
- Não precisa agradecer, mas
acabo de te salvar a vida!
E deu-se conta de que tinha
falado com um simples copo. Estaria louco? Seria uma possibilidade se isso
fosse um costume, mas não se lembrava de ter feito algo semelhante nos últimos
cinqüenta anos. Aventou então uma outra
possibilidade. A de que por um momento tivesse colocado uma parte de sua alma
no copo, o que significaria que estava falando consigo mesmo. Mas também
significava que não era muito normal essa coisa de falar consigo mesmo. Pensou
ainda em algo mais. A física quântica diz que partículas se podem comunicar
instantaneamente mesmo à distância. Talvez por algum fato não conhecido da
Física pudesse ter acontecido o mesmo com o copo e este tivesse pedido para ser
salvo. Mas não. Isso não poderia ser. A probabilidade era tão pequena que era o
mesmo que ser impossível. Ainda lhe ocorreu que um espírito tivesse “entrado”
no copo, mas essa possibilidade era tão remota como aquela da física quântica
que só se aplicava a partículas e não a corpos maiores. A hipótese de o copo
ter aprendido a falar e ter ouvidos também, tinha sido a primeira a ser
descartada. Finalmente entendeu.
A morte não se aplica apenas
a corpos vivos. Mesmo corpos mortos, quando cremados, por exemplo, geram
cinzas. Depois que as cinzas desaparecem jogadas no mar ou aos ventos,
desaparece por completo: Finalmente, o corpo morto morreu verdadeiramente. Mas
ainda não, totalmente, porque fica na memória de amigos e inimigos que ainda
não morreram. Por pouco tempo mais, é certo, mas de certa forma ainda continuam
vivos. Finalmente, quando o ultimo ser vivo que conhecia o defunto se vai, não resta nada mais daquele
corpo morto que tinha sido cremado e “voltara a morrer” quando as cinzas foram
espalhadas. Só então, sem ninguém que se lembre dele, pode ser considerado
definitiva e irremediavelmente morto!
Lembrou-se então que achava
a morte um desperdício. Um desperdício útil porque permite que o planeta não se
encha de seres vivos em menos de meia dúzia de bilhões de anos. Mas o copo,
não... Ele nem se reproduz nem pode causar tamanha catástrofe de inundar de
copos este mísero planeta. E enquanto pudesse servir para tomar sua água, seu
vinho, o copo estaria vivo porque servia. E concluiu que viver é “servir”. Tudo
o que serve, vive.
E ficou feliz. O copo ainda
estava vivo e seria o de sua estimação!
Rui Rodrigues
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