Amanhã não valerá a pena lembrar-me ...
Não costumo sair muito de
casa. Minha vida foi de muito trabalho, sacrifício, viagens constantes,
tensões, angústias no trabalho. A paz e a tranqüilidade são hoje o meu reino,
talvez como uma forma de compensação. Ontem saí como de costume em início de
mês para fazer as “minhas coisas” em Cabo Frio, resolver minhas preocupações
mensais. Saí bem disposto, tranqüilo, em dia quente, esperando a todo o momento
receber notícia de que, no Congresso Nacional, a nova lei isentando a
presidência de suas responsabilidades para com a nação, não fosse aprovada. Fui
primeiro à sede da Ampla, a concessionária de energia elétrica, que antigamente
fazia muita propaganda sobre suas “qualidades”, como se fosse uma mãe genérica
da população cabo-friense. Madrasta seria, que de mãe nunca teve nada e podemos
provar. Fui lá para apanhar uma segunda via da conta porque, apesar de o
relógio se situar no muro do prédio, a escassos quatro passos da caixinha de
correio, quem faz a medição não tem a paciência nem cumpre o dever de colocar o
papel da conta na caixa. Deixa-o preso em interstícios do relógio, à mercê de
chuvas, ventos, e cachorros de duas pernas que os jogam ao vento só pelo
prazer. A Ampla não tinha fila para idosos nesse dia, e em outros dias também.
Depois fui à VIVO, apanhar
segunda via da conta de meu celular. Os correios não entregam correspondência a
domicílio onde vivo, apesar de termos um CEP. Conseguiram convencer a
associação de moradores – não os moradores – que entregariam correio apenas na
portaria do loteamento. A portaria só existe para coibir a desova de veículos
roubados e ladrões de residências. Quando cheguei á imponente sede da Vivo,
pedi duas caipirinhas. O balcão parece de bar, e o sistema estava “lento”. Ainda
perguntei se era o sistema ou o sinal da Vivo que estava lento, porque até meu
telefone celular só funciona fora da casa, em algum lugar da rua que não é
sempre o mesmo: O sinal depende de milimétricos desvios da torre de repetição
de sinal. Depois de meia hora, o sinal da vivo voltou. O sistema nunca saiu do
ar, porque parte dos computadores estava sendo utilizada por funcionários que
certamente não estavam jogando joguinhos do Windows.
Como disse, acordei bem
disposto. Depois da visita á Vivo fui ao banco receber o meu salário
bolsa-aposentado. Uma ninharia deflacionada a cada ano, a cada mês, em meio a
inflação desalmada e corrupção por todos os cantos, lados, ângulos e
superfícies desta minha nação, enchendo o volume de minha indignação. Com o
bolso quente, comprei meu presentinho bolsa-presente para minha netinha. Uma
dádiva dos céus que comprei pela metade do preço, por pura sorte numa loja às
moscas no comércio natalino de Cabo Frio. Depois comprei um novo copo para
liquidificador. Uma das pás metálicas do meu quebrara. Este é um ritual que
tenho que fazer uma vez por ano, porque nossa indústria chinesa produz peças
que quebram sem avisar, sempre, para que tenhamos que comprar duas, três vezes
a mesma peça, como que uma ajuda para a manutenção da incompetência, da falta
de qualidade, da degradação industrial nacional chinesa.
Foi então que o vi. Estava
lá, sentado na soleira de uma porta, quase na esquina da avenida, cabeça baixa.
Num breve instante em que a levantou, vi-lhe a barba não cuidada em rosto de
idade bem avançada, os olhos miúdos de desamparado, as roupas surradas. Pensei
que estivesse bêbado ou sofresse de Alzheimer, porque seu corpo se balançava
levemente. Desviei meu caminho e passei-lhe a um passo de distância, olhou-me e
não pediu nada. Tentou levantar-se, e com visível esforço usou a parede como
apoio. Estava cansando e voltou a sentar-se na soleira da porta ao lado. Então
tirei uma nota de vinte reais da minha mochila e a empalmei para que ninguém
visse o que se passaria a seguir. Dirigi-me a ele e disse-lhe:
- Bom dia... Quer apertar a
minha mão?
- Porquê? Porquê? Por que
iria apertar a sua mão? – Seu olhar era de inquirição desafiadora de pessoa à
qual tivessem agredido sua inteligência. Entendi... Quantas pessoas passavam por dia em
sua frente, e quantas lhe pediam para apertar a sua mão mesmo sendo mês
natalino? Então virei a mão e deixei que ele visse a nota. Seu sorriso se abriu
e me apertou a mão. Não me lembro se me agradeceu ou não, porque não tem a
mínima importância. Deixei-lhe um sorriso, estou ainda com o sorriso dele bem
guardado.
A caminho do supermercado
sentei num murinho do jardim para ligar para minha filha. Ali o sinal da Vivo
funcionava bem. Falei com ela por uns minutos. Depois segui caminho para o
supermercado para assistir a um show mensal: O Show da subida de preços. É
fenomenal. Principalmente no Extra aonde vou quase que obrigatoriamente por
questões de logística. Dali pego um táxi e volto para casa um pouco mais pobre
que no mês anterior. Se não fosse por meu
trabalho obrigatório pós-aposentadoria, morreria de fome, sem serviços de saúde
que me cuidem, talvez vítima da descontrolada violência, morto por bandido mal
educado por deficiente educação. Preocupa-me que tenha que trabalha depois de
chegar aos noventa anos, com um salário depreciado que beire o valor de um
sanduíche por mês.
Que mundo construímos e que
vontade temos de mudá-lo?
® Rui Rodrigues
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