Anne G. Slomp assassinada entre a Bedale Street e a Winchester Walk
Carl Logger aluguou por cerca de quinze dias um quarto num Apart Hotel na Winchester Walk, perto da Ponte de Londres quando foi a trabalho para uma empresa norte-americana. Como o trabalho era de consultoria, limitava-se a estar disponível para acompanhar os resultados, analisar e aconselhar medidas decorrentes. Na verdade sobrava-lhe muito tempo que sempre aproveitava para caminhar pelo centro financeiro de Londres. Era final de Inverno e em plena ponte havia um protesto de artistas de rua, aqueles que desenham rostos, fazem caricaturas: Queriam a reabertura da Leicester Square para as suas atividades que não poderiam, por lógica, ficar longe da National Portrait Gallery. A praça fora re-inaugurada e estava agora coberta de milhares de lajes de granito importadas da China. Acusavam o Conselho de Westminster. Ficaram lá com cartazes por alguns dias, constatando que todos os governos são teimosos. Alguns artistas portavam desenhos de pessoas - normalmente rostos - como propaganda e prova de que eram trabalhadores úteis ao Conselho. Temos o costume em todo mundo de reclamar quando nos mudam os nossos referenciais. Carl deteve o olhar em alguns desenhos e num em particular que mostrava um casal. Ela estava sorridente, mas o sujeito parecia destoar da alegria da moça, traços que o artista captou. Era sutil mas destoava.
Como observador da cidade Carl não conseguia evitar ver os transeuntes com aquela curiosidade que todos temos: O que há de diferente nos habitantes de outros países que os tornam “diferentes”. A resposta era invariavelmente a mesma. Nada! Absolutamente nada! Nossas coisas comuns, a quaisquer seres humanos, são tantas, que o mais lógico é dizer que todos somos iguais. Gostamos do que é bom e nos é agradável ou faz bem, suportamos o que nos incomoda e detestamos o completamente oposto. Londrinos eram cariocas, nova-iorquinos ou lisboetas apenas com línguas ligeiramente diferentes, e enquanto uns tomam café outros tomavam chá, e em vez de vinho outros tomavam mais cerveja, mas todos têm excelentes times de futebol. São unidos pelo que têm em comum e não pelas diferenças. A paisagem é que é bem diferente na arquitetura, na cor e nos sons, além do trânsito que corre sempre na contramão, em Londres, com os mesmos problemas dos trânsitos que rodam na mão convencional. De resto são casas, água, ruas, policiais, serviços públicos... A lei e a ordem contra a desordem.
Ao anoitecer de 23 de dezembro de 2011 Carl estava voltando para o Apart Hotel quando foi surpreendido por uma cena insólita. Havia policiais na esquina da Winchester com a Bedale Street. A polícia tinha montado uma barreira e interrogava quem passava por ali. Alguns guardas iam de porta em porta recolhendo informação sobre a vizinhança. Havia um corpo coberto no chão. A cena do crime estava isolada. Aguardavam os serviços da Morgue. Um policial abordou Carl com olhar completamente sem expressão ao entrar no Apart Hotel e o interrogou rapidamente. Ficaram sabendo que morava ali mesmo, a empresa para quem trabalhava e lhes disse que ficaria por lá até 10 de janeiro. O guarda Spencer perguntou-lhe se tinha visto algo sobre o assassinato de uma moça. Disse-lhe que não, mas que estava disposto a cooperar. Liberado, entrou, subiu para o quarto e tomou um whisky de sua própria garrafa enquanto assistia a um programa de TV. Não deixou de pensar que, da forma como gostava de Londres, mais do que a decantada Paris, seria oportuno que se envolvesse o suficiente nas investigações sobre o crime só para passar mais uns dias por lá. Sorriu. Isso que lhe passara pela cabeça era um absurdo. Seria uma catástrofe para sua carreira, mesmo como simples suspeito ou testemunha, porque nós, humanos, somos muito simplistas na hora de julgar os outros e muito complicados na hora de entendê-los.
Afastou o pensamento e desceu cinco minutos depois até um PUB famoso, ali mesmo na Bedale Street, o Globe Tavern, ao encontro de alguns colegas de trabalho. É impossível consumir bebidas em público fora do horário permitido por lei: Antes das 19:00. Contou-lhes o caso. A moça que lavava os copos com uma mágica de rapidez impressionante, contou que se tratava de uma garçonete do Globe Tavern contratada na noite anterior. Tinha sido o seu primeiro e ultimo dia de trabalho na casa. Chamava-se Anne G. Slomp. A simpática garçonete contou ainda que Anne Slomp chegara para pedir emprego umas semanas atrás, sozinha, e no seu primeiro dia de trabalho viera também só. Passou rapidamente pela cabeça de Carl um pensamento que guardou na memória: Como cada vez mais se vive só, o Estado deveria ser a nossa segunda família, ou seja, deveríamos trabalhar e pagar ao Estado uma apreciável quantia para que este nos cuidasse nas idades mais avançadas, mas os fundos deveriam ser atrelados aos Bonds do tesouro nacional, e permanecer intocáveis, para que não pudessem ser repassados por qualquer motivo e virem dizer no futuro que os fundos haviam apresentado prejuízos.
Ainda pensava nisto quando no dia seguinte no escritório comentaraam o caso do crime da Bedale Street como estava sendo chamado o caso. Nos jornais havia uma foto da moça e não pôde deixar de se lembrar dos artistas da ponte de Londres. Ele ja vira aquele rosto. Como aguardava um relatório que só chegaria no dia seguinte, foi até a ponte. Os artistas ainda estavam lá. Como não encontrou a foto que procurava perguntou se podia entrar em contato com um artista que estava ali com eles no dia anterior, e descreveu-lhes o desenho do casal. Deram-lhe um nome e um endereço. Pegou um táxi e foi até lá. O artista morava num beco ladeado por casas vitorianas construídas para trabalhadores há mais de duzentos anos. Quando ia bater à porta, esta se abriu e um homem saiu apressado sem o olhar diretamente. Vestia-se esportivamente, com um agasalho de moletom, mas algo nele não estava de acordo. Algo chamara a atenção de Carl e não sabia exatamente o que era. Pensaria nisso mais tarde. Subiu umas escadas íngremes e deparou-se com duas portas, uma de cada lado das escadas. Uma delas estava aberta. Era exatamente a que correspondia ao apartamento do artista. Carl teve um mau pressentimento... Empurrou um pouco a porta e deu uma espiada lá dentro. Havia um corpo no chão e não lhe foi difícil adivinhar quem era. Aparentemente o apartamento em desordem como costuma ser de qualquer artista que faz do apartamento um estúdio, não tinha sido revirado. Saiu rapidamente. Quando estava saindo do portão vitoriano do prédio, encontrou um conhecido,
Spencer, o guarda que o interrogara na noite
anterior estava na frente dele. Perguntou-lhe o que fazia ali, quem e o que
procurava. Carl contou-lhe rapidamente sobre os artistas da ponte, o desenho do
casal, e do homem que vira sair do prédio quando ele estava entrando ainda agora, há pouco.
Finalmente contou-lhe do cadáver no quarto do andar superior. Spencer chamou os
serviços da polícia pelo radio e pediu-lhe que subisse com ele, disse para não
tocar em nada e para não entrar no apartamento. Depois desceram e entraram no
carro de Spencer e foram para a delegacia. O desenho não tinha sido encontrado.
- Acho altamente improvável que seu desenho
esteja correto... Esse aí é Alfred O. Gibson, famoso apresentador de programas de televisão, colunista de vários
jornais. O que ele faria com uma moça desempregada, pousando para desenhos na
ponte?
Quando saiu, Carl carregava consigo um
convite da Scotland Yard para permanecer a seu serviço até que fosse encontrado
o homem parecido com o apresentador de televisão e que só Carl tinha visto de
forma mais próxima do real no desenho do artista. O envolvimento de Carl com a
polícia londrina permaneceu em sigilo
Em qualquer caso de crime, e logo a seguir à
fatalidade, os acontecimentos costumam precipitar-se numa velocidade crescente até que o criminoso
seja descoberto e isto se deve à pressa de cobrir rastros, apagar testemunhas,
limpar o caminho por parte dos criminosos que lutam contra o tempo. No fundo
eles têm consciência de que lutam contra o tempo. Então se precipitam. Aconteceu
o mesmo no caso do assassinato de Anne G. Slomp. Nessa mesma noite Carl voltou
com os amigos ao Globe Tavern. A moça que lavava os copos tinha instrução, era loura e muito bonita. Ficou lá até as 23:00 tomando a melhor cerveja inglesa, cor de urina escura, típica de quem não bebe água, só cerveja para não enferrujar, umas boas e excelentes Fuller’s London Pride . Depois saiu a pé até seu
apartamento na Winchester Street, logo a seguir ao cruzamento com a Bedale,
onde o cadáver de Anne tinha sido encontrado. O táxi apareceu de repente, vindo bem devagar. Quando Carl viu surgir um revólver pela janela do motorista, sua adrenalina subiu e preparou-se para o pior. A bala passou a milímetros de seu pescoço e instantaneamente levou a mão ao pescoço e se jogou rolando no chão, ficando inerte. O taxi continuou seu caminho acelerando. Provavelmente acreditaram que tinham acertado sua vítima. Quando desapareceu da vista, Carl levantou-se e voltou ao Globe Tavern. Ligou para Spencer e contou o ocorrido. O taxi tinha uma placa falsa com letras e números. Os taxis de Londres apenas têm letras.
Nessa noite Carl dormiu acompanhado com a bela inglesinha. Arrumada para sair, ela era uma raínha. Uma raínha que parecia movida a pilhas.
(Continua)