Dor da perda de quem já não está.
Nascemos, aumentamos nossas
dimensões em altura e largura com todas as dores inerentes ao crescimento e de
repente nos vemos adultos. Até lá é quase impossível não perdermos entes
queridos, amados, que muito para além dos laços construídos ao longo da vida, e
a juntar-nos ainda mais a eles, existem os laços de sangue, genes gritando por uma
entidade comum, anseios em comum, amores e sofrimentos em comum. Não importa a
condição econômica, o lugar, os tipos genéticos, a morfologia corporal ou
moral, laços de amizade e amor, dores de perdas são muito fortes e idênticas em qualquer lugar
do mundo. Quase nunca são compensadas ao longo da vida.
Quando cheguei à Colômbia, e passado pouco mais de um mês, tive o prazer de visitar a Guajira, saindo de avião de Barranquilla onde se situava o nosso escritório, até Media Luna na zona do Porto, em pleno mar do Caribe. Fizemos uma reunião para que os representantes das empresas concorrentes conhecessem a área onde uma delas realizaria os trabalhos, almoçamos e de lá pegamos um ônibus alocado ao Projeto para percorrermos cerca de 150 km de estrada batida de terra até chegarmos à Zona da Mina para jantarmos. Pelo caminho visitamos lugares onde existia a possibilidade de canteiras de pedra e agregados para serem usados nos trabalhos a adjudicar. Nessa época eu ainda não imaginava que posteriormente me promovessem a Gerente de Contrato para a zona do Porto, posto máximo no Projeto para aquela zona, acima do Gerente de Construção. Sem minha assinatura não saía um tostão. Com os esforços e a dedicação de toda a equipe, o projeto total orçado em dois bilhões, setecentos e cinqüenta milhões de dólares (valores de 1982) foi completado com obras adicionais, por menos de dois bilhões e meio. Tivemos baixas nessa zona sob ameaça das FARC, as forças revolucionárias da Colômbia. Os EUA mantinham nas cercanias uma pequena frota para o caso de evacuação do projeto, o governo da Colômbia mantinha um posto do exército e uma pequena base aérea com pequenos aviões apreendidos ao tráfico de drogas cujas rotas para Miami passavam por perto, provenientes da Serra de Santa Marta. Apesar do perigo, nossas baixas deveram-se a ataques por motivos desconhecidos (dois americanos mortos a pauladas) e um grande amigo nosso cujo barco de pesca afundou no “Cabo de la Vela”.
Mas porque a alusão ao
projeto e à Guajira, no contexto das dores que sentimos porque quem já não
está, entre nós, presume-se?
Porque quando cheguei à
região, naquele primeiro dia, vi desertos de areia salpicados de cactos, sem
uma única árvore, a não ser pequenos arbustos espinhentos que me lembraram a
caatinga no Brasil, porém de vegetação muito menos densa. Muito raramente,
apareciam lá em baixo como pequenos pontos, pequenas sangas de água onde pessoas
e cabras matavam a sede. Não se viam cavalos nem bois, apenas cabras e
jumentos. O Departamento da Guajira tem um tratamento diferenciado dos
restantes na Colômbia, porque seu povo é também diferenciado, constituindo uma
etnia quase homogênea. A impressão que se tem é de estarmos em plena palestina,
quer pelas roupas e mantos das mulheres, quer pelas dos homens que caminham
pelo deserto, ladeando jumentos onde suas filhas e mulheres cavalgam sentadas
de lado como as damas européias dos tempos da cavalaria romântica. Num deserto
daqueles que nada dá, o que prende os seus habitantes àquela terra? Apenas a
tradição, o fato de terem nascido lá, de toda a natureza em sintonia com a
natureza dos corpos. O povo guajiro ama a sua terra, pertencerem à Colômbia é
apenas uma contingência político-geográfica. Desde que o governo da Colômbia
não interfira demasiado, a bandeira de pano não importa tanto quanto a bandeira
de areias e cactos, águas e ondas, do leite das cabras, dos peixes do mar onde
sob a qual nasceram e se criaram. Um executivo que conheci, nascido lá, tinha
um de seus apartamentos em Barranquilla. Um dia me convidou para visitar sua
casa na Guajira coberta de teto de palha,
porque lá só chove de quatro em quatro anos quando chove. Paus de cactos a
pique, preservavam a intimidade e segurança para as cabras e pessoas. Havia colchões para os
hóspedes e redes. De uma sanga tiravam a água, alimentavam o gado. Seu traje
resumia-se a um anteparo colorido e listrado que lhe tapava o sexo. Lá passava
sempre que tinha um tempo livre com a mulher e os filhos, mantendo os laços com
a terra, com o ar seco, com o vento, com as lebres fugidias que se viam surgir
esguias por entre algum mato de folhas grossas e espinhentas.
Perder entes amigos, gente conhecida,
é triste. Quando se ama a terra em que vivemos, a amamos porque ela se identifica
conosco e nós com ela, é como que perder muito mais do que os amigos. È como se
fossemos árvores secas que perderam as raízes e tombam no solo inertes, olhando
o sol passar no horizonte até cair a noite sem esperanças de haver outro
amanhecer. Perguntei-me se, por ter nascido em zona de montanhas com cultivos e
vinhas, água, neve e rio, animais de todos os tipos, num jardim à beira mar
plantado e depois ter vivido, como vivo, num país varonil de encantos mil,
teria a obrigação de ter mais amor por estes dois países do que o povo guajiro
por sua terra, e cheguei à conclusão que não. Um índio norte-americano já
dissera uma vez, descontente com a ocupação européia que lhe enterrassem o
coração na curva de um rio. É o lugar, a natureza do lugar que nos cativa de
forma igual. As fronteiras, traçadas em frágil papel, foram acidentes
históricos provocados pela força das armas de quem as traçou, e pela ignorância
e fraqueza de quem as teve que aceitar, mas no coração não existem fronteiras.
E foi assim que passei a amar também mais uma região deste planeta, a Guajira,
tal como amo o país em que nasci e este em que vivo, um pouco mais do que amo
todos os demais deste planeta. Sentiria uma grande dor se soubesse que algo de
mal acontecesse a algum deles.
A perda é como filme mudo, onde a natureza balança ao vento, pessoas passam mudas sem nos olharem, tudo nos fica alheio porque já não nos pertence, já não fazemos parte de sua natureza, de suas fronteiras, dos amanheceres e anoiteceres de dias de admiração e contemplação. Não há cheiros, choros e risos de crianças, perfumes de mulheres amadas. Isto é uma perda. A maior das perdas. A separação definitiva.
Hoje, 18 de setembro, enquanto
escrevia este texto, dedicado à Guajira, a quem ama seus amigos e amigas, seu
povo, sua gente, o planeta inteiro, minha amada terra brasileira dependia de um
voto de um juiz para que se desse validade a um julgamento anteriormente
efetuado no Supremo Tribunal Federal. Eram onze juizes, dos quais nove haviam
sido nomeados pelo mesmo partido. O resultado esperado referia-se a terem ou
não os condenados direito a novo julgamento. Ora, no primeiro julgamento haviam
sido condenados pela maior instância do direito, o STF. Novo julgamento
implicaria em admitir que teriam havido falhas no julgamento. Implicaria também
no desconforto geral na nação e nos membros do tribunal, ao verem anulado seu
julgamento, ao que tudo indica por distração ou incompetência. Implica também
que todos os presos da nação possam exigir as mesmas regras e o mesmo
entendimento para terem novo julgamento. Seja como for, a descrença nas leis é
tudo o que é necessário para que qualquer país entre numa perigosa zona de
descrença nas instituições, investidores estrangeiros retirem seus capitais,
fábricas fechem e se transfiram para outros países, a fronteira entre a ordem e
o caos seja ultrapassada: Os primeiros estertores de uma morte anunciada de uma
nação, a separação de familiares e amigos.
Hoje, 18 de setembro, procurei pelo Brasil e encontrei outra nação. Não acredito que possa amá-la como a amava antes, enquanto usurpadores continuarem na posse do mando, esgrimindo leis como se fossem armas de destruição em massa. Continuarei amando o povo, a natureza, as cidades, os campos, mas não estou certo de continuar amando o que lhe falta para completar a região como uma nação. Há muito os índios já pensam como eu. E não só o povo índio. Há muitos que pensam como eu e nem nisso estou sozinho. Procurarei amigos entre os descontentes.
E nem sei se tenho forças
para animá-la, à Nação, e dizer-lhe: - Vamos, Nação... Ânimo... Estávamos a um
passo de sermos o Brasil do futuro e quase no final do presente voltamos nossos
passos para trás, para o passado?
© Rui Rodrigues
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