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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Trem Noturno para Paris.

Trem Noturno para Paris.


I - Em algum dos dias de Junho de 1991.




Collor tinha sido eleito presidente do Brasil. Eu havia trabalhado para uma empresa de Consultoria e tinha notícias fidedignas de sua ânsia pelo poder e principalmente pelo dinheiro, além de um comportamento muito próximo dos sintomas de bipolaridade, quase loucura patogênica, meio “hitleristica”. Como previ um desastre na economia, resolvi voltar à “terrinha” para manter minha decência profissional. Com emprego já garantido em Lisboa, resolvi gastar os últimos tostões disponíveis para visitar um amigo de longa data, Jaime Irigoyen, de nacionalidade chilena que estava trabalhando em Madrid para uma empresa inglesa gerenciadora de uma famosa obra de dois prédios inclinados: Altos custos e desperdício de área de construção em favor de uma beleza inusitada e “estranha” feita para impressionar e compensar o fato de que entre os dois prédios passava uma “rua” subterrânea. Como engenheiro só penso como pensam os arquitetos quando tenho necessidade de entendê-los. 




Portanto, fui até a estação de Caminhos de Ferro de Santa Apolônia e peguei o primeiro trem para Madrid. Ainda era dia. Quando passamos pelo Castelo de Almourol em pleno rio Tejo, já a loura no banco em frente ao meu esticava suas pernas sobre os meus joelhos como se estivesse “distraída”, mas eu não estava atrás de aventuras. Quem sabe, talvez eu conseguisse emprego na empresa onde trabalhava o amigo chileno? Precisava estar “focado”, sem compromissos com a loura. Além do mais, não existem ainda “camisinhas” para relacionamentos seguros em trens europeus: Você pode acordar em algum lugar desconhecido sem carteira, nu até a alma. E para completar a imagem, eu era casado do tipo “não desesperado”... Em breve minha família estaria comigo em Lisboa. Por isso, tentei dormir, e quando percebi que os olhos da loura se entreabriram procurando ver se eu já estava dormindo, encontraram-nos semi-abertos justamente quando o trem parava numa estação para recolher passageiros. O que meus olhos viram eram soldados da primeira guerra mundial. Milhares deles, portugueses, embarcando para a Flandres. Provavelmente a estação era em Elvas, quase na fronteira com a Espanha. Da cintura dos soldados pendiam máscaras antigás. Desses soldados portugueses cerca de 2.200 morreriam e outros tantos ficariam abalados física ou moralmente para todo o resto de suas vidas. Quase o contingente inteiro! Serviram de carne de canhão para generais burros tradicionais engordados na paz para justificarem verbas de guerra. Como não entendiam nada de estratégias, ficaram se guerreando em nome de “propagandas” fabricadas que justificavam a guerra para ambos os lados opostos das trincheiras. A linha Maginot não funcionou. Nada funcionou para ambos os lados, até que chegasse a salvação das Américas. Ainda hoje esses generais são considerados como heróis... Pobre imaginação nacionalista!... Enquanto forem considerados heróis serão copiados e nada mudará, por que os generais que na paz atacam as populações para “controlá-las” como se fossem escravas ou galinhas de “granja produtiva”, são os mesmos que declaram as guerras: Ministérios da Defesa que se transformam em Ministérios de Ataque! Ganha quem tiver as melhores forças treinadas, a melhor tecnologia, e nem sempre vence quem merece, até porque ninguém merece numa guerra. Vivemos num mundo completamente equivocado, fruto de tradições, nacionalismos, esperanças vãs.





II – Depois da meia-noite do primeiro dia de alguns dos dias de Junho de 1991.





A Loura, agora que acordei sobressaltado com a parada repentina do trem que ia para Madrid – ou seria Paris? – acenou com a cabeça para mim, no trocar de olhares com um sujeito estranho de pele cor de azeitona. Dos passageiros, alguns eram nitidamente turistas, mas outros eram ou soldados à paisana ou espiões ocidentais, de chapéu negro ou marrom enterrado na cabeça até quase tapar os olhos, gabardine cinza, negra ou bege, rostos patibulares que não denotavam emoção. Estávamos certamente já em terras de Espanha e Francisco Franco recebera ajuda de Hitler para sufocar e exterminar os contrários ao seu regime de ditador espanhol. Ele não deixava passar pela Espanha – neutra na segunda guerra mundial – soldados ocidentais destinados a combater as forças de seu amigo Hitler. Empresas são como países em guerra. Há de tudo nelas, desde soldados a policiais, alguns da “secreta”, espionagem e contra-espionagem. Alguns chegam a propor ou idiotices para que o antagonista perca o posto, ou absurdos corruptos para que o antagonista perca o seu emprego. Estava sem sapatos, a calcinha branca aparecia sob a aba do casaco de veludo aberto estrategicamente. Sempre desconfiei, até nos empregos que tive, de tudo o que me davam de “mão beijada”, a troco de aparentemente nada. Nos trens europeus também. Nos sul-americanos nem ando. Por aqui se acha que trem é... Isto é... Acha-se que trem não serve para nada, apenas e quando muito para transportar gado humano e safras interestaduais de gente rica. Não admira, pois, que entra governo, sai governo, se tenha a esperança de que o comunismo ou o socialismo comunizado pareça a solução salvadora dos que se sacodem ou simplesmente nada podem: Nas eleições votam sempre na esperança, o futuro lhes traz sempre mais do mesmo, mudando apenas as cores das falas, o tom da indignação e da esperança partidária eleitoreira. Para mim estava claro que a loura tinha seu próprio negócio e sócios, um deles com pele cor de azeitona e que viajava no trem, e que a mercadoria seria eu mesmo. Fingi não ver seu sorriso de boas vindas porque estava chegando a Paris e os passageiros se preparavam para desembarcar. Já estavam todos uniformizados com uniformes de guerra americanos, ingleses, franceses... Na gare, mulheres belas, perfumadas, os lábios pintados da mesma cor da vagina, os esperavam com beijos, o corpo tremendo com vontade de ser doado á Juventude. Os soldados tinham entre 18  e 25 anos. Grande parte da Juventude francesa havia perecido na longa guerra de 1939 a 1945. A libertação de Paris era um bom motivo para ter prazer com falos ávidos de vaginas nervosas, lábios nervosos. O que pode haver de melhor para uma mulher ávida senão um jovem cujo falo forte foi impedido de funcionar por dias de martírio sob fogo, tensão, adrenalina que queimava desde as pernas até o mais interno ponto de seus cérebros? Seria sexo contínuo para toda a noite e todo o dia seguinte, coisa que namorados e maridos nunca lhes deram. Para elas, esses eram os heróis, mas Não!!!.. Ouvi mulheres: Esses não eram os heróis. Os heróis morreram no campo de batalha abrindo caminho para a vitória dos vivos que agora chegavam para “libertar”... Humanidade que não aprende, porque aprender não é importante! Aprender parece mais ser uma desculpa. Dá-se valor ao que “interessa” dar valor e não ao que merece. Que mundo queremos nós – homens e mulheres - se nos escondemos da verdade para não nos confrontarmos com a nossa própria imbecilidade?




Quando recolhi minha bagagem do bagageiro sobre minha poltrona de segunda classe, do trem que ia para Madrid, não vi a loura. Desistira da mercadoria. Também a França desistira por várias vezes da Igualdade, Liberdade, Fraternidade até os dias de hoje, depois de guilhotinas, revoluções e guerras. O mundo todo desistiu disso. Até Jean Paul Sartre, um correspondente de guerra, que tinha uma mulher que foi para ele o que ela não queria ser. Simone de Beauvoir, o nome dela, das que apregoam “uma coisa” e fazem outra. Tal como Jean Paul que viveu a vida toda panfletando comunismos e socialismos e ao final da vida os negou mais de três vezes. E com razão! Ambos!...



Não cheguei a Paris dessa vez. Já tinha estado lá por diversas vezes e ainda a visitaria uma vez mais, dessa vez viajando num caminhão que ia buscar mercadorias no porto de Hamburgo. Era a terceira vez que iam buscar a mercadoria que nunca conseguiam retirar. Exercitei meu inglês americanizado e assenti um esporro violento no chefe do porto de Hamburgo apelando para sua incompetência. Naquele fim de tarde meu amigo Rui Lopes retirou a mercadoria, finalmente, depois de duas horas extras de trabalho de gente negra fazendo no porto o trabalho que gente branca não queria fazer: Hitler deixou herdeiros! Deixamos uma gorjeia porreta para os dois neguinhos como se fossem queridas gentes brasileiras, e recebemos dois sorrisos alegres de presente além da mercadoria. Guerras deveriam resolver-se com esporros!


® Rui Rodrigues. 

O Bruxo do Pontal do Peró. Será bruxo?

O Bruxo do Pontal do Peró. Será bruxo? 

Há dias que não parecem dias, em que os grãos de areia empurrados pelos fortes ventos competem por alvos invisíveis, formam dunas, encobrem esqueletos de peixes, aves e répteis, e formam rios de névoa de areia que agitam a praia como se estivesse viva... E é nestes dias em que não se avista vivalma que o bruxo do Pontal aparece, lê as areias, consulta as águas superiores e inferiores em que o mundo está dividido, e do cimo da rocha de onde tudo se vislumbra, se esclarece do porvir... Nada vem sem que o bruxo dele saiba. São falsos os que lêem em vísceras de peixes e animais, nos astros e em borras de café: Têm perfil, mas falta-lhes o conhecimento dos verdadeiros bruxos, das leis que movem o mundo e o Universo. Assim era Nostradamus, o que leu o porvir de tal forma que se interpreta como se quer desde que pareça fazer sentido. O bruxo do Pontal do Peró, não! Ele vê com o conhecimento pleno das ciências, dos subconscientes, dos inconscientes tanto do que é vivo, como do que parece inerte, morto, sem cadáveres.

E viu, num desses dias de fortes ventos que sempre chegam em céus claros de um só tom de azul, o rosto de um velho que não era do Restelo, mas de perto para onde iam as naus que ele, o velho do Restelo acautelava, que lhe mostrou os desenhos dos grãos de areia empurrados para formar dunas, agitar a praia, que se transformou em enorme tela de cinema colorido em cinemascope, como nos velhos anos sessenta do século passado: O velho, que não era do restelo falava como o vento forte, catalisando em sua voz as imagens das areias esvoaçantes:





- Houve tempos em que se definiram as fronteiras, de grandes e sangrentas lutas, em que a humanidade se tentou aniquilar movida por apenas um sentimento: Cada uma das nações que se formava queria prevalecer sobre as demais. Foi a época dos reis que depois se estendeu pela dos presidentes. Uma das nações conseguiu pela primeira e única vez na história dessa mesma humanidade, construir um Império onde o sol nunca se punha. Hoje é uma ilha dividida. Outras nações são ainda maiores e imperiosas pelo futuro. Da primeira nação imperialista ficou a língua, mas para a futura, nova língua de milhares de caracteres se imporá. Não pela força, não pelo derramamento de sangue humano, mas pela paciência. O perigo nunca foi o amarelo, mas a ambição dos homens que copiaram  a ambição dos tais reis e presidentes: Querer dominar outros homens e outras nações pela força dos braços, das armas ou do dinheiro com que se constroem enormes e influentes empresas que compram e vendem os reis, os presidentes, os homens e as nações. E nem só de homens se fazem as nações de hoje, mas de mulheres também, nos destinos do mundo. O mundo já não é o mesmo de ontem, nem do passado.  





(As  areias se agitaram ainda mais. Dunas que não existiam se viram crescer e engolfar as casas. O céu ficou branco. As águas do oceano recuaram mostrando o cadáver do fundo do mar. Uma chuva de cadáveres de aves mortas inundou a areia do novo deserto onde antes era a praia. Barcos naufragados que jaziam num fundo de mar agora exposto se oxidaram instantaneamente. As areias engoliam múmias secas e esqueletos de mamíferos que ainda há pouco viviam numa mata atlântica úmida e verdejante. Não havia corvos para comerem os olhos da vida morta)




- Este que vês é o futuro que não verás! Que importa a política, o comércio, a ambição, se este é o futuro? Seria o futuro diferente se a política, o comércio e a ambição mudassem? Claro que sim!... Mas são demasiado fortes os apelos imediatistas da política, do comércio e da ambição para que sejam alterados pela cegueira dos que detêm algum tipo de poder: Desejam perpetuá-lo! Só a humanidade em uníssono pode alterar esse estado de coisas, mas para um Universo governado por leis que a humanidade não pode controlar, apenas se podem protelar os efeitos, porque o fim será um único! Apenas um fim final e definitivo aguarda este planeta Terra: Será engolido por um Sol moribundo. Não sobrarão pedra sobre pedra, apenas grãos de areia, que, mal comparando, do templo de Salomão ainda sobraram algumas!





(O Sol era agora uma enorme bola vermelha que ocupava 90% de todos os horizontes. A Terra era um planeta sem vestígios de civilizações ou sequer de restos de vida. Um cantil sem tampa derretendo-se pelo calor do Sol avassalador em seu crescimento avermelhado lembrava a secura de um deserto que reinou por milênios e que agora nada mais era do que um pequeno e mísero detalhe de uma Terra completamente desértica.)

- A fartura gera desperdícios. Quem tem muito, desperdiça porque pode pagar os custos do desperdício. Quem não tem, nem pode desperdiçar. Se tivesse, também desperdiçaria. Quem quer impor pelo poder, impõe por pouco tempo até que outros ocupem o poder, mas cada um que ocupa o poder, destrói um pouco do Ambiente em que vive. As tradições mantêm o “status quo”. Não há Terras santas nem santificadas, porque servem aos negócios particulares de particulares. O grande Templo de Salomão, não era o Templo do qual sobrou pedra, mas a Terra da qual nada sobrará engolida pelo Sol. Humanidade despreparada pelo poder que se alimenta da ignorância não terá salvação, porque perecerá junto com o planeta sem meios de fugir para outro. Os Impérios que exilaram o povo do Templo de Salomão, não são os Impérios que exilarão a humanidade da face da terra, mas os novos Impérios da política, do comércio e da ambição. Portanto, vigiai, vós que sois humanidade e não sois tradição, porque há modo de sobreviver ao fim destes tempos e iniciar outros tempos em outros lugares do Universo, mas para isso há que pensar desde já no futuro. O tempo é curto, urge e não tem alternativas.




E o velho e o filme em cinemascope acabaram de repente, tão de repente quanto o vento forte e a corrida dos grãos de areia pela praia do Pontal do Peró. Ainda se ouviu a voz do velho numa última e definitiva frase:

- Corre e conta o que viste como o filho do Homem mandou que se apresentassem os que ganharam milagres, aos senhores do Templo, porque não sobrará grão sobre grão deste Templo de vida chamado Terra! Um outro velho do Restelo terá que aparecer para acautelar as naves que partirão para as novas Terras!

® Rui Rodrigues  

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O tecido das lembranças.

O tecido das lembranças.

Deve ser mesmo algum tipo de tecido, aquele em que guardamos nossas lembranças no mais recôndito de nosso cérebro. Por vezes nos lembramos de coisas de uma época, encadeadas ou não, em seqüência, relacionadas, ou soltas, sem nexo, recolhidas, catadas, aprofundadas num tema, ou simplesmente tão soltas como grãos de areia soprados pelo vento do deserto. Nenhuma tem cheiro. São apenas imagens coloridas ou a preto e branco, raras em três dimensões, muitas parecem filmes sem pretensão a Oscar. Os sons não se escutam, apenas se entendem e traduzem. Sentem-se! Nem sempre nos lembramos das melhores ou piores lembranças. Elas aparecem soltas, segundo uma falta de lógica que só Freud poderia explicar se fossem produto de algum tipo de demência sob análise, mas sendo produto apenas de reflexões do passado antes que ele passe do tecido das lembranças, não são causa de efeitos, mas apenas circunstâncias não relacionadas.



Nunca soube ao certo se alguém apertava um botão para ativar a campainha do recreio ou se eram automáticas. Nunca me preocupei se as aulas eram exatamente de cinqüenta minutos cravados ou se alguma vez demoraram mais ou menos. Eu não tinha relógio. Quando tive, preocupei-me em checar se meu relógio estava “certo” com os dos colégios por que passei, ou se faltava muito para a aula ou o tempo de recreio acabarem. Havia aulas que era uma pena terminarem, recreios que nunca deveriam terminar. A vida é assim, se as aulas forem substituídas por trabalho e o recreio por momentos de prazer e descanso. O tempo é nosso parceiro inconstante por mais apurado e constante que seja o nosso relógio. Com 30 anos de idade aposentei meus relógios. O tempo estava já incorporado em meu modo de ser, sabia que eu era seu escravo, mas não escravo do mecanismo de um relógio por mais fiel e caro que fosse. Aposentei também o anel e o cordão pendurado no pescoço. Há 14 anos que o único relógio que tenho está pendurado na parede da cozinha. O tempo é uma medida de dimensão da qual podemos prescindir. O tempo não deveria ter a mínima importância em nossas vidas. Toda a vida animal ou vegetal deste planeta prescinde de relógios e vive muito bem. Nunca vi uma galinha consultar um aparato desses para botar ovo, nem galo olhar para um relógio para soltar seu canto. Naquele dia não esperei ouvir a campainha gritante dar sinal para o fim da aula, que nem era a última do dia. Minha avó tinha passado mal durante a madrugada. Saí mais cedo do colégio e fui para casa. Ao chegar, o que ouvi foram choros. Ninguém precisava me dizer nada, mas me pediram para não entrar logo em casa. Disseram-me que ficasse no jardim e que voltasse em meia hora. Ela tinha acabado de falecer. Não me importei em pensar se me queriam poupar da cena, ou se haveria algum outro motivo. O que me importava naquele momento era que já não tinha avó. Naquela época do tempo, naquele lugar do mundo a que se chama Europa, os filhos não eram amados como hoje, nem os netos. Não era uma questão propriamente de amor, mas de forma de amar. Filhos e netos eram propriedades. Pais e avós tinham as suas propriedades vivas que preservavam. A vida, essa, continua sendo uma campainha que toca sem relógio ou cronômetro em qualquer reino animal ou vegetal. Tanto vem de repente, como se vai sem sequer tocar para avisar, independentemente de espírito, alma ou religião. Podemos, sob esse aspecto, sermos diferentes em qualquer circunstância, mas não perante a natureza. Aqueles meus onze anos se foram com o tempo. Nunca mais voltaram.



Pelos anos sessenta a juventude usava ternos, calças compridas e paletós, com camisa de gola rolê ou social com gravata ou lenço de seda. Em ocasiões especiais, um cravo branco ou vermelho na lapela. Vaidades para “dar a impressão”. Sextas feiras e sábados à tarde e á noite, eram dias de festa. Sempre havia uma. Naquele sábado ao entardecer numa vila em São Cristóvão minha prima fazia aniversário. Eram tempos em que os aniversariantes davam, isto é, pagavam a festa inteira. Os convidados davam presentes. Durante anos a fio ganhei coleções de colônia pós-barba da Bozzano. Cheguei a pensar em abrir uma loja especializada nesse tipo de presente, mas sempre os agradeci por pura educação como se fosse um grande presente. Também agradeci a meu pai o lindo cobertor que me deu de presente no dia do meu casamento. Deve ter tido algum significado oculto ao decidir que seria um cobertor que me daria de presente de casamento, mas nunca lhe perguntei nem tive vontade de perguntar, porque importante mesmo foi o meu casamento, os dois filhos que nele tiveram origem, e quanto a cobertores comprei muitos com meu próprio dinheiro. Não me lembro do presente que levei para minha prima, mas deve ter sido um perfume bom. Uma prima linda que casou com um cadete da Marinha, irmã de outra prima minha, igualmente linda que casou com um médico nissei que talvez não por acaso também era da marinha. Fui com meu terno azul claro, louco para beijar a prima. A vila estava abarrotada de convidados, músicas atuais saiam da vitrola convidando para dançar, mas a dança não saiu. Era um aniversário de família e não uma soiré dançante, por que assim se dividiam as “diversões”. Dançava-se em gafieiras, em boates, ou em casa quando os pais passavam o fim de semana fora. Carinho de leve beijo na boca entre mãe e filho era “libidinoso”, beijo de pai para filho não era coisa de “homens”. Humanidade burra e preconceituosa há-a em todos os lugares e civilizações, a aprendizagem é lenta como passo de tartaruga sonolenta. O planeta gira á velocidade de milhares de quilômetros por hora, mas nele tudo é vagaroso. Quem corre muito se arrisca a tropeçar nas células da humanidade mais próximas, ou a que lhe passem uma rasteira. Áquela festa  fui com meu pai, minha madrasta e minha pequena meia-irmã. Pela primeira vez provei uísque com guaraná e pedras de gelo que já saiu de moda sem que uma campainha tocasse para avisar. Quando acabou a festa eu estava no meu segundo copo e começava a gostar da mistura, mas as ordens eram ordens. Larguei o copo pela metade e acompanhei a minha nova família até em casa. Nenhuma campainha tocou para avisar que a festa tinha acabado para mim. Voltei a encontrar a prima, recém casada, em Santos. Ainda não tinham filhos por essa altura, mas eu já estava casado e tinha dois. O pai dela era irmão de minha avó, de quem não herdei os olhos azuis claros quase transparentes.


O tecido das lembranças rasga-se muito facilmente por que elas servem como suportes para decisões no futuro, quer para evitar momentos desagradáveis, quer para repetir as condições de momentos de prazer. Lembranças são como gavetas de arquivo que se resgatam quase à velocidade da luz. Elas podem ser verdes de esperança, brancas de pureza, negras de maldades, vermelhas de raivas, de todas as cores e matizes. Se alguém de quem você se lembra, passados anos não se lembrar de você, não dê nenhuma importância. A lembrança desses finalmente ficou transparente.


® Rui Rodrigues

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Crônicas do Pontal do Peró – Antes e depois de Outubro.

Crônicas do Pontal do Peró – Antes e depois de Outubro.



Estamos em 2014. Não é bissexto, mas é um ano diferente, ano de eleições que afetarão certamente o Pontal do Peró. Se antes e até agora não tínhamos serviços públicos – absolutamente nenhum – agora, depois das eleições, teremos muito menos do que nada. Havia quem dissesse que qualquer governo seria melhor que os de Lula e Dilma. Eu era um deles!... Hoje temo pelo Brasil da futura presidente Marina. Ela é revanchista e acha que não é necessário o conhecimento para governar uma nação: Qualquer ignorante o pode! È a sua opinião, seu defeito! Para quê então desejar melhorar a educação deste país?

Mas em certas horas nem interessa se temos que levar nosso lixo nas costas até a portaria, aproveitando para ver se chegou correio, ou se nossa água é de poço porque nada chega até aqui, ao loteamento... O que interessa é que dois pombinhos enamorados passaram por aqui. Uma linda sueca e meu lindo filho! É nessas horas que se sente que o amor é lindo. Uma frase feita para sorrisos espontâneos que brotam a cada palavra, os olhos explodindo de alegria. Não há experiências ruins que determinem o comportamento na juventude a ponto de falsificar sentimentos. Na juventude os sentimentos são puros. A experiência é boa como moeda de seguro e “performance” sexual, dois opostos que não podem conviver por muito tempo. Quanto mais experientes melhor é o sexo, mas pior é o relacionamento, porque “gato escaldado de água fria tem medo”. Quando gatos não foram ainda escaldados, e isso só acontece no cedo início da juventude, até a falta de experiência sobrepassar de longe as delícias pré-fabricadas e mecanizadas da experiência.  



Vieram brancos como cerâmica japonesa. Quando voltaram da praia, depois de uma noite e um dia em Búzios, pareciam dois alegres camarões fritos, o sorriso ainda mais aberto, a postura de quem chegou ao paraíso, vivo, e para quem passado e futuro são detalhes impensados do presente. Sei reconhecer o amor quando o vejo, encontro ou desfruto... Os papagaios que chilreiam por aqui são assim também. Toda a natureza é, desde botões em flor, até papagaios, peixes e onças. Seres humanos é que de vez em quando parecem umas coisas e são outras. Principalmente no carnaval, na política e na hora de venderem algum produto. Índios devem ter achado muita  graça no avermelhamento dos brancos depois de expostos  ao sol. Negros são mais preparados para os efeitos da luz solar e uma mistura é providencial para a sobrevivência da espécie humana. Além de ser uma mistura gostosa, é funcional e necessária num planeta cada vez mais seco!...



Tive notícias diretas da Suécia. Do mundo em geral tenho sempre pela NET de forma indireta: Colhida através de reportagens. Direta porque vem através de uma pessoa. Na Suécia, e nos países nórdicos, socialistas, a extrema-direita toma força. Na França também, e em outros países da Europa. O mundo é como um rio: Desce para o mar pelo caminho mais fácil. O capitalismo selvagem ou não, não atende as necessidades igualitárias da humanidade; o Comunismo só serve para quem está no poder ou para aqueles com os quais o poder está diretamente relacionado; O socialismo não sabe lidar com o dinheiro; o que resta é uma dúvida: O que vem depois? Parece que é a Democracia Participativa, mas partidos políticos falam dela de forma premeditadamente equivocada: Pretendem que o povo “submeta” a votação o que “líderes” populares propõem ou submetem a um órgão intermediário que aprova ou contraria. É assim em Cuba e se dizem democráticos. Pura mentira, puro engodo!

Mas que importa, mesmo jogando o Flamengo contra o Goiás, lá em Goiás? Para um dos pombinhos que é Flamengo, nem caipirinha já pronta, geladinha, interessa... O cansaço é muito grande depois de um dia e uma noite em Búzios. Revi-me nos meus tempos de jovem. Por aqueles tempos, meu olhar era assim. Meu sorriso era sempre o do momento. O ontem seria sempre o hoje e o amanhã também, como se o tempo estivesse parado. Que importavam as eleições, se o que importava era a vida? E foi assim que minha filha nasceu. O filho veio depois, fruto do mesmo amor. Nossos filhos namoram filhos (as) dos outros para o quais seus filhos são como os nossos: O que de mais importante se “fabricou” neste planeta. Razão pela qual o tratamento deve ser igual ao que é dado aos nossos. O mundo se constrói com amor. Sem amor o destruímos! Basta ver o falso amor de Putín pelos russos que vivem na Ucrânia. Eles são usados para uma política revisionista e interesseira da neopolítica de uma República Socialista Soviética revisitada, que nada tinha de socialista: Stalin mandava, matava, calava, mandava para Gulags, sem permitir a liberdade típica e própria da democracia. O casal de pombinhos nem assistiu o jogo, nem tomou caipirinha. Curtiram a pele acamaronada no andar de cima. Primeiro tempo zero a zero! Entra treinador, sai treinador e a defesa do Flamengo nunca foi de excelência. Por que será? Não deve ser função da política. Já era assim na democracia, continuou na democradura, e continua na democradura partidária dos dias atuais onde todo mundo rouba e aumenta os próprios salários sem que o povo possa contestar. Contestar até pode, mas não adianta: Ninguém escuta o povo, mesmo se dizendo “representante” do povo. É uma democradura néscia!



O pão no forno ficou pronto e cruciante, mas os pombinhos voam até dormindo! Amanhã de manhã, será outro hoje sem passado, com futuro desconhecido que não tem a mínima importância! Amanhã, que já é hoje, os papagaios passarão por aqui a caminho da Ilha dos Papagaios. Eles, o casal de pombinhos, já estará no Rio de Janeiro que também é de Fevereiro e Março... Alô, alô Realengo... Aquele abraço! Eu sou Flamengo, tenho uma nêga e não se chama Tereza...

® Rui Rodrigues












 



     



quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Trabalho pra caramba! ... Onde anda minha caixa de etiquetas?

Trabalho pra caramba! ... Onde anda minha caixa de etiquetas?

Moro sozinho 99% do meu tempo ocupado. Tempo livre é só 1% de meu tempo total (é quando vou no banheiro, porque quando durmo estou trabalhando em silêncio)... E faço tudo o que é necessário, por que a mão de obra é cara, displicente, ambiciosa e, sobretudo, socialista “modernosa”: Acham que eu sempre lhes devo alguma coisa, que me fazem um favor, e que a lei os beneficia... Ta!... Então não contrato ninguém e eu mesmo faço tudo. Há inúmeras vantagens... Uma delas é que não pago INSS, nem férias, nem impostos. Eu mesmo me aproveito dessa grana que só serve para políticos distribuírem verbas públicas entre amigos. Amigos por amigos, meu maior amigo sou eu mesmo!

Vendi minha camioneta S-10... Não gasto gasolina, não dou gorjeta para o guardinha safado que anda sempre procurando sarna para eu me coçar, nem multas extorsivas, nem uma fortuna que custa manter um veículo nos dias de hoje. Nem passo pelo sofrimento de filas imensas de trânsito, filas no Detran, filas, filas e filas, busca incessante de estacionamentos que quando pagos custam uma meia dúzia de sorvetes, uma janta em restaurante de classe, um par de caças jeans, uma camiseta de marca, uma camiseta oficial do Flamengo, um mês de Internet ou de canal de filmes e programas via antena mirim e decodificador!

Sou o meu cozinheiro com vantagens de ter um particular: Meu colesterol não sobe, minha comida tem sempre o mínimo de sal para não subir a pressão, não corro o risco de ser envenenado e não sofro de azia. Nenhum cozinheiro me cospe no prato quando acha que trabalhou demais ou não foi devidamente apreciado. A comissão pela compra de alimentos no açougue, na peixaria ou no hortifrúti, eu mesmo recebo. Serve para despesas extras, como pagar táxi, comprar um par de sapatos novos, dar um presente para a Afonsina, que tem um nome horrível (e até é meio feia), mas é nota dez nos quitutes dos carinhos, e não fala demais da conta nem cria problemas. Olha só quanto economizo...


Sou minha própria empregada: lavo, passo, costuro, arrumo, limpo, do andar de cima até a área da churrasqueira e do jardim com a garagem. A garagem é para a Afonsina que tem carro e ainda não descobriu as vantagens de usar ônibus com motorista particular, umas enormes limusines com seis rodas, muitas de marca “Mercedes” ou “Volvo”... Não é pouca coisa não... Só não faço renda nem crochê porque seria muita sacanagem e a Afonsina ia me mandar tomar... Banho! Ela gosta de macho, macho do tipo que parece frouxo e faz comida e uns cafunés para ela. É uma gata de duas pernas, mas não “ronroneia”... Se ronronasse eu a mandaria procurar outro gato.  Já imaginou quanto economizo, sendo minha própria empregada? Só não ponho lenço na cabeça. Seria muita sacanagem comigo mesmo!


Motorista já tenho. Anda sempre de calça preta e camisa azul. Uma grande vantagem é não ser sempre o mesmo. Depende da placa do ônibus. E seguindo a minha linha de conduta face às vicissitudes da vida e do mercado, sou meu próprio zelador. Abro a porta de minha casa para os amigos e amigas, arrumo a entrada da casa, a garagem, recebo a correspondência na caixa de correio instalada no muro da casa, abro o portão, e tenho sempre as respostas certas quando me pergunto alguma coisa sobre a vizinhança. Sei perfeitamente que a mulher de um dos vizinhos come fora quando ele viaja. É uma festa gastronômica!
Sou o meu próprio carpinteiro especializado. Faço meus móveis, como mesas, aparadores, armários até de cozinha, usando madeira de construção, tratando para não dar cupim, lixando, cortando, pregando, aparafusando, pintando... Instalando. Quando a Afonsina não gosta, é tarde... O móvel já está pronto e instalado e ela sabe que se eu gostasse de atender reclamações contínuas eu seria atendente de postos de Órgãos Públicos.

Sou meu próprio garçom. Sirvo-me a mim mesmo e não perco tempo escrevendo o pedido. No dia em que eu me perguntar: “É servido de mais alguma coisa? Temos uns...”, vou jantar fora e procurar um psicanalista! E faço minha própria segurança pessoal. Até hoje não fui assaltado. Postei duas placas no portão. Uma diz: “Se quiser dinheiro, assalte um banco como fez a Dilma Roussseff quando era assaltante de bancos, porque eu não tenho porra nenhuma” (agora assalta outras coisas dentre elas a Petrobrás). A outra diz: “Sorria a afaste-se: Você está sendo filmado e a imagem instantaneamente transmitida via net”. Ou seja, não adiantaria ao bandido safado assaltar com esperanças de destruir meu computador para apagar as imagens: A Inês estaria morta e ele preso! A Afonsina ri sempre quando olha as placas e eu também. Casal que ri junto permanece junto. Ainda bem que ela só passa aqui de vez em quando. Não agüento rir o tempo inteiro.

Sou o meu pastor!... Não pago essa coisa chata e extorsiva de dízimos e víntimos. Quando preciso falar com Deus ou que Ele fale comigo, cozinho um pão cuja massa eu mesmo faço, retiro da geladeira um bom naco de queijo Roquefort e abro uma garrafa de Cabernet Sauvignon. E então chamo Deus para a comunhão, aproveitando a boa hora para lhe fazer umas confissões e um ou outro pedido. Uma das coisas que lhe venho pedindo há anos é uma outra Afonsina, mais jovem um pouco, que não seja traíra e me avise antes de me largar e arranjar outro, mas ou eu ou Deus somos teimosos: Ele porque não me arruma uma dessas, e eu porque continuo tentando! Mas apesar disso, nos empanturramos de pão estaladiço acabado de sair do forno, queijinho Roquefort e vinho Cabernet Sauvignon. De vez em quando vai um “Santa Helena”, que “Casillero Del Diablo” é bem melhor, mas mais caro, e Deus não gosta muito desse. Esse eu tomo quando acho que Deus não anda por perto. Depois Lhe confesso, e Ele sempre faz aquele gesto de “deixa pra lá...”.

Como aparentemente não sofro de nenhuma doença, sou o meu próprio médico (tomo uns chás com porradas de vez em quando com a Afonsina), e também o meu próprio engenheiro (nesta especialidade me formei mesmo, pra valer), e sou meu consultor econômico. Para presidente da República votarei em mim mesmo. A minha república fica aqui mesmo em casa, e não acredito em políticos. Sou também o meu pintor de paredes e de quadros. Já imaginou quanto custa um Picasso, um Van Gogh, um Monet? Um absurdo! Assim, pinto os meus próprios quadros, penduro na parede e quando alguém visita minha casa diz logo: Não é do Picasso, mas parece... De quem é?  Se a visita é legal digo que é meu. Se não é digo que comprei numa loja de Monmartre em Paris, da ultima vez que fui lá, e depois navego na conversa a remos ou com motor de popa. A propósito... Sou meu próprio pescador e proprietário da peixaria: Pesco por aqui mesmo, na praia. Só uso peixarias para poder comer os famosos peixes “Scapô” [1] ...

Por isso economizo o dinheiro que não tenho e me divirto pra caramba... Por exemplo, com o rabino que sabe perfeitamente que não misturo carne com leite, nem manga com leite e que carne, só Kosher. Amo os animais. O padre já nem passa aqui em casa porque sabe que não tenho pecados nem dinheiro para as esmolas. O pastor ri comigo. Já viu por várias vezes que aqui em casa não há capeta nenhum, e nem um por cento posso dispor do que tenho, quanto mais 10%... O sacerdote muçulmano passou direto quando viu que me ajoelhei no chão, sobre um “quilim”, coisa que sempre faço quando sinto a presença de Deus e para não sujar os joelhos, mas como ele não andava com bússola (nem eu sei em que direção fica Meca) não se precisou sobre se a direção de minhas orações estavam corretas (para ele) ou não. Ficou por isso mesmo. Como tenho umas galinhas no meu galinheiro, umas garrafas de cachaça e uns charutos cubanos, o pai de santo já me convidou para passar lá no terreiro, e um hindu dos bons, daqueles que usam fralda conversível em turbante, sabe que medito muito e faço Ioga plantando bananeira sempre que preciso irrigar o meu cérebro.

Ora vejam só como não se pode dizer que não trabalho mesmo não fazendo porra nenhuma na vida! Mas sempre fica aquele gostinho de despedir todo o mundo no dia em que eu me for. E não precisarei dar baixa na carteira de trabalho de ninguém! Minha conta bancária? Que conta? Os Bancos que me peçam consultoria e se necessário que abram uma conta em meu “banco”. Ah! E evidentemente tive que esquecer minha caixa de etiquetas em algum lugar que já não me lembro onde. Houve tempo em que as usava, mas atualmente com tanto trabalho, e com a caixa esquecida, algumas já devem estar coladas outras grampeadas e algumas as traças já traçaram.

® Rui Rodrigues





[1] Scapô são aqueles que não pesco e se alguém me pergunta “o que foi que mordeu tua isca?”, eu respondo: Escapou!

sábado, 23 de agosto de 2014

A nuvem branca de fumaça.

A nuvem branca de fumaça.


A população mundial andava perturbada com as transformações atmosféricas. Havia secas em todo o planeta, chuvas torrenciais, furacões, terremotos, em escalas nada habituais e doenças que se julgavam extintas voltavam a recrudescer. Um surto de Ebola em África parecia estar fora de controle. O planeta parecia no início de uma transformação letal. Não que as transformações fossem letais para o planeta que até já tinha passado por muitas delas, e em pelo menos duas vezes tinham extinguido 98% das espécies, mas para essa vida frágil que muita gente pensa ser forte, ilimitada, perene. Nessas horas de temor generalizado os templos se enchem, as famílias se dissolvem, os assaltos e crimes em geral aumentam, e até os que se dizem completamente ateus levantam os olhos aos céus e dizem para si mesmos: “Se realmente existes é agora a hora de apareceres e salvares a tua Obra”. Depois se lembram do dilúvio que nunca viram, imaginam aquela desgraça toda e tomam ciência instantânea de que Deus, se existir, de vez em quando é vingativo e então perdem a esperança. Nem por isso voltam imediatamente a serem ateus, mas ficam em cima do muro, por assim dizer, sem saber a quantas andam, para que lado caírem. Os crentes também não sabem a quantas andam nessas horas, mas têm uma vantagem muito grande sobre os demais: Enquanto as desgraças não lhes batem à porta, vêem os males acontecerem aos outros e pensam que “esses” não mereciam as bênçãos d’Ele, o todo-poderoso e que por isso ficaram desamparados. Quando finalmente os males das grandes catástrofes também os atingem, perguntam-se estes crentes: “Que mal eu fiz a Deus para morrer assim?”, e morrem sem resposta, nas desgraças que varrem crentes e ateus, nelas irmanados, aos montões, soterrados, afogados. As catástrofes são geralmente assim, provocando morte por soterramento ou afogamento, e mesmo quando se trata de ataque generalizado de vírus primeiro se pára de respirar e depois se é enterrado aos montões. A não ser em Pompéia não se tem mais notícias de grandes catástrofes por algo que venha dos céus a altas temperaturas, como lavas de vulcão, meteoros, nuvens de gás. Em Bopol na Índia houve mortes em massa por causa de uma nuvem, mas foi por causa de um produto tóxico liberado por acidente numa fábrica de produtos químicos. Na Rússia também caiu um meteoro lá pelos idos dos 1.800, mas não houve notícia de mortes. Só uma clareira enorme aberta na floresta com árvores queimadas, tocos ardentes. Um meteoro irrompeu dos céus também na Rússia na primeira década do século XXI, e foi até filmado por um sujeito com sua câmara fotográfica de telefone celular, ganhou o título de cinegrafista amador por um breve instante nas televisões mundiais, mas ficou no anonimato. Quem se lembra do nome desse sujeito que filmou aquele clarão tão forte descendo dos céus que iluminou mais do que o Sol? Parece que até para nós mesmos não somos assim tão importantes como nos julgamos. Se pensarmos como Deus nos deve ver, então... Nem é bom pensarmos nisso, porque podemos chegar à triste conclusão de que pode ver-nos como simples, minúsculas e quase inexistentes formigas, indiferenciáveis umas das outras.  


Naquele pequeno lugar à beira-mar, moravam apenas cerca de cinqüenta pessoas que no final de semana se multiplicavam por dois ou três, desde que não fizesse frio. Quem morava conhecia o Pedro Paulo, um sujeito dos seus quase setenta anos, forte, que morava e subsistia sozinho quase sem sair de casa.  Não incomodava os vizinhos, dizia-se Deísta, isto é, que acreditava num Deus, mas que não era nem igual ao dos judeus, dos cristãos, muçulmanos, budistas, taoístas, xintoístas ou de qualquer outra religião conhecida. Para ele Deus era cientista, químico, geômetra, navegador, médico geneticista, matemático, e talvez o planeta Terra fosse como que uma plaqueta de sangue que corria pelas veias imensas de um Deus imenso, invisível assim como as plaquetas de sangue também não podem ver o corpo que habitam por estarem dentro dele e terem os “olhos” muito pequenos e despreparados. Por vezes achava que esse Deus fosse tão pequeno, e por isso também não podia ser visto, que estivesse até dentro de cada grão de areia, gota de água, átomo, elétron, quark, dentro de cada ser vivo ou inerte. Não chegava a ser um sujeito esquisito, o tal do Pedro Paulo, mas era um sujeito diferente. Era o que se poderia chamar de desperdício cultural porque não fazia nada com o que sabia. Já tinha feito. Agora passava uma ou outra informação quando se juntava com amigos num churrasco, cada vez mais raro, mas os vapores da cerveja levavam as informações para algum lugar desconhecido porque depois ninguém se lembrava de como era mesmo aquela coisa de uma partícula poder sentir que uma outra gêmea a milhares de quilômetros de distância poderia trocar seu sentido de rotação se a outra também a alterasse, de forma tão instantânea, que aparentemente a luz teria que viajar a mais de 300.000 quilômetros por segundo, e isso, sabia-se ser impossível. Completamente impossível.




Primeiro foi o próprio Pedro Paulo que se admirou com a fumaça que vislumbrou lá fora da sua casa, por volta das 19 horas, já escuro. Como tinha ateado fogo a umas madeiras na churrasqueira, apenas para aquecer o ambiente, espantar alguns mosquitos perdidos e dar-lhe uma movimentação diferente, chegou a pensar que poderia ser a fumaça que se condensava ao enfrentar os ares frios da frente que chegava do Sul, lá da Argentina e do Chile, da Patagônia, mas quando olhou para o topo da chaminé viu que a fumaça vinha de lá e que o vento a empurrava e espalhava campos afora, casas adentro, sempre se alastrando, alastrando, sem aparentemente perder a densidade.  Os ventos, esses inconstantes, tanto espalhavam para Norte, quanto para Leste, Oeste e até mesmo para o Sul de onde vinha a frente fria. Por volta das 20:00, Pedro Paulo resolveu pegar o seu carro para ver até onde ia a neblina. Pareceu-lhe sentir um leve cheiro de churrasco mas isso era impossível, porque apenas acendera a lenha da churrasqueira e não pusera nenhuma carne ou peixe para assar. A madeira era proveniente de galhos secos destroncados, desses que as ventanias fazem arrancar quando os fazem bater uns nos outros como se fossem inimigos. Uns caem e secam no solo outros progridem, dão folhas, flores e frutos, aves e pequenos animais pousam e neles geram vida. Nunca se entendeu a seletividade da natureza quanto aos galhos. Porque uns caem e outros não, mas aparentemente não havia nenhum projeto em universidades para determinar essas diferenças numa mesma árvore e em árvores diferentes, nem em relação às estações do ano e ambiente. Entende-se se atentarmos para o fato de que também não há estudos de nuvens, sua relação em densidade, temperatura média, ionização, proveniência, volume, e todas essas características próprias e do ambiente que as envolve para melhorar os prognósticos sobre “o tempo”, dentro de uma cronologia não quântica. Resumindo, tanto quanto se sabe, sabe-se que não se sabe de ninguém que tenha visto o nascimento de uma nuvem e a tenha medido e acompanhado até a sua dissolução na atmosfera ou conversão em granizo ou água. Por isso talvez não se sabe como se poderia canalizá-las para verter água em açudes do Nordeste brasileiro. Provavelmente se fariam imensos e custosos projetos sem que algum dia tivessem sucesso completo, desde a implantação até o uso continuado. As verbas, essas seriam reajustadas e gastas anualmente como fonte de renda. Quando Pedro Paulo chegou à estrada que vai para Búzios ou para Cabo Frio, a uns 1.200 metros de sua residência, em meio a denso nevoeiro, ficou consternado: A névoa avançara a estrada a Leste e a Oeste, e dirigia-se também para o Sul. Parou no acostamento para cheirar melhor, livre das influências de cheiros internos ao veículo, e aspirou o ar enevoado calmamente, bem devagar... Tinha um leve cheiro de churrasco e parecia ser de ovelha, e como sempre, ao pensar em ovelhas as via com aqueles enormes olhos dóceis e tranqüilos, emoldurados por um par de orelhas a pino e uma boca de quem não fala de vida alheia, encasacadas num novelo de lá quente e aconchegante como se fosse enorme e grosso cachecol bege. Voltou para casa, fez um café na própria churrasqueira e ligou a televisão. Perdera o sono. Da chaminé ainda saía fumaça, mas parecia-lhe que a quantidade diminuíra um pouco. Resolveu não apagar o fogo, não por que fosse supersticioso, mas por consideração e respeito ao que aparece por si mesmo e que por si mesmo terá que evoluir até se extinguir ou transformar: Essa é a lei principal deste universo. Da madeira nem um terço estava queimado, nem era caso de chamar os bombeiros.


Na central de bombeiros em Cabo Frio e Búzios viram o nevoeiro. Pela primeira vez na história deste país havia no ar um leve cheiro de carne de churrasco que não podiam identificar. Só conheciam cheiro de carne de porco e de vaca e muito raramente cheiravam carne humana churrasqueada em incêndios. Saíram pela cidade procurando o foco, mas não encontraram.  Por volta das sete horas, nas primeiras notícias do dia, e em meio a um nevoeiro intenso, uma repórter devidamente vestida com uma blusa vermelha e uma saia preta entrevistava o chefe do agrupamento de bombeiros locais. Nas declarações explicou como lhe foi impossível localizar o foco. Seus colegas em Búzios estavam com o mesmo problema de não conseguir identificar a origem de tão forte névoa. Um representante do setor hoteleiro informou que ainda era cedo para saber se esse nevoeiro atrairia mais turistas ou se as reservas para o final de semana seriam canceladas. Pedro Paulo, a meio caminho na estrada de Cabo Frio para Búzios, e que assistiu à reportagem por ter perdido completamente o sono, pensou em ligar para a empresa de televisão e bombeiros, mas desistiu por ficar indeciso, sem saber o que fazer. Sua consciência lhe dizia que deveria ligar para esclarecer, mas tinha certeza que as chamadas telefônicas, muito caras, perderiam a eficiência pela espera explicando tudo às telefonistas para que pudessem repassar a ligação para os setores mais adequados, e depois de uns dez filtros não poder falar com nenhum dos responsáveis por estarem ocupados numa missão. Finalmente, isso iría parar na polícia por ter provocado desordem pública e outros crimes que logo se preocupariam em atribuir-lhe, já que esse tipo de notícia de impacto forte não só dá audiência nos noticiários como nos governos e partidos políticos que logo se apressam em capitalizar. Deve até haver algum acordo particular envolvendo propinas entre emissoras de televisão, jornais, prefeituras, centrais de polícia e bombeiros: Todos querem divulgar as notícias em primeiro lugar, capitalizar-lhes os efeitos, atribuir méritos e culpas. Pedro Paulo resolveu ficar calado, na sua, a TV ligada, e ligou também o computador. Não tinha feito mal algum, mas temia que dissessem que sim, com provas que não poderiam provar, mas que diriam ser provas comprovadas por testemunhas fidedignas, tudo legal sob os mais mínimos aspectos da lei passada, atual e agora alterada através de decreto estadual e logo adotada pelo governo federal.
Foi o que fez um eminente político do governo do Rio de Janeiro, baixando decreto de fechamento de todos os abatedouros e fornecedores de carne culpando-os pelo mau cheiro e atestando a qualidade de um abastecedor em especial com o qual havia vínculos políticos. A carne recolhida foi queimada para não contagiar, provocando o fortalecimento do cheiro de churrasco da forte e densa neblina. Pastores do Estado se apressaram a aconselhar a suas ovelhas que triplicassem os dízimos, que comprassem garrafões de água benta benzida em Jerusalém para garantir seu lugar no céu porque todo o nevoeiro e o cheiro eram coisa do capeta, de belzebu. Quem mais pagasse, melhores lugares teria á direita do homem feito Deus. Muçulmanos ficaram calados, que coisa desse Deus não seria, talvez de seu Deus, mas precisariam de confirmação. Espíritas e umbandistas estavam perplexos e consultavam os espíritos, mas nada vazava para o exterior dos templos e terreiros. Ateus procuravam explicação em fenômenos térmicos da natureza, vazamento de vapores industriais, quem sabe um meteorito diminuto teria caído na atmosfera e provocado essa neblina de vapores condensados... Mas, quando algum destes cidadãos era também cientista político, o que transparecia em seus comunicados eram apenas as causas possíveis, os efeitos previsíveis. Em sua casa, em meio a densa neblina, Pedro Paulo de tudo isto Ia tomando ciência através dos canais de TV e da Internet. Estava tranqüilo. Respirava normalmente, só o cheiro tinha modificado um pouco: Agora o de carne de ovelha churrasqueada se misturava à de porco e de vaca.





Por volta do meio dia, Pedro Paulo tomou um susto. A Presidência da Nação iría fazer um pronunciamento televisado sobre a onda de neblinas – agora eram várias e não apenas uma localizada entre cabo Frio e Búzios – para acalmar os cidadãos que já murmuravam. A maioria do povo acreditava que algo de muito grave estava acontecendo e que, a exemplo dos Ets de Rosewell nos EUA, o governo estava escondendo as causas e os efeitos da opinião pública. Não sabiam do que se tratava, mas era voz corrente que deveria ter sido um meteoro como aquele da Sibéria. Outros, em menor numero, atribuíam o cheiro ao vazamento á queima de carnes de frigoríficos não aprovados pelo tal decreto do governo. Falava-se também em cheiros de carne humana assada proveniente de ônibus queimados. Pela tarde chegou notícia que a população incontrolada e incontrolável já queimava composições inteiras no metrô de S. Paulo. A presidência da república em seu pronunciamento prometeu uma verba de 300 bilhões de reais para o Ministério da Educação e Cultura destinados a estudos sobre o fenômeno e que se houvesse culpados seriam primeiro presos e depois soltos e julgados em liberdade. Políticos dos partidos verdes prometiam mundos e fundos para que no futuro este fenômeno jamais voltasse a acontecer e culpavam os governos passados pelo descuido no trato com o Ambiente. Como se estava em época de eleições, a presidência querendo reeleger-se não cedera sua posição ao vice-presidente, e não podia governar porque andava em campanha, recebendo mundos e fundos para seu projeto de marketing visando a reeleição. O povo reclamava que com aquele nevoeiro era impossível assistir a shows dos políticos, sempre gratuitos, pagos com o dinheiro dos impostos e das campanhas. A industria de faróis de nevoeiro aumentou 300 % em um dia apenas, e salvou a economia nacional que andava com um PIB muito baixo. Como ondas e ondas de vandalismos e roubos proliferaram como bactérias de vírus bem nutridas com sangue público, as forças policiais deixaram de prender porque não havia lugar nas prisões para todos os detidos. O caos se instalou na nação. Lá a meio caminho de Búzios e de Cabo Frio, Pedro Paulo começou a rezar a seu Deus invisível para que não passasse na cabeça de ninguém informar que tudo começara em sua inocente churrasqueira onde nem carne queimara, e lançando mão de suas ferramentas de carpintaria e de uns moirões de eucalipto que tinha á mão, começou a botar trancas nas portas. Como não tinha armas, enfiou no bolso um canivete suíço dos bons tempos em que trabalhava e deixou à mão um facão daqueles de cortar mato, meio enferrujado.  Perdera a vontade de comer. Fez mais um café e rezou para não faltar energia elétrica. Estragaria os alimentos na geladeira e não tinha certeza se haveria desabastecimento, os preços seriam inflacionados. Olhou a churrasqueira de onde ainda saía fumaça. Já não tanta como pela manhã. Em breve se apagaria o fogo.


Pelo entardecer, Pedro Paulo chegou a pensar em se matar ao ouvir as ultimas notícias pela TV. A China tinha respondido a uma invasão russa de suas fronteiras por causa de acaloradas discussões na ONU sobre a origem da neblina, que russos atribuíam á fumaceira tóxica e descontrolada produzida em fábricas chinesas. Os chineses garantiam que a culpa era dos russos por competição industrial. O povo chinês com baixos salários, via a China enriquecer, cada vez edifícios maiores e mais luxuosos, sentiam-se imbuídos de seu espírito social de dividirem seus esforços com o resto do mundo. Tinham fé que um dia seus filhos ou netos poderiam ter um automóvel, morar numa mansão como as de Beverly Hills, poderem transar sem preocupação, ter seus filhos homens ou mulheres, talvez até mais de um, ter seus sindicatos, representantes no governo e acabar de vez com a pena de morte com um tiro na nuca e a venda de órgãos para o exterior. A fé remove montanhas e gentes que usurpam o governo, mas isso não é na china para os chineses, e ao que parece, não é para qualquer povo poder acionar a fé e pô-la para trabalhar em prol da realidade.




Temia-se um inverno nuclear pelo ocultamento da luz direta do sol, que, refletindo-se na neblina fosse devolvida ao espaço por reflexão deixando, entretanto, uma boa componente vetorial que aquecia as nuvens e o ambiente. Esperavam-se chuvas torrenciais, deslizamentos de terras, erupção de vulcões, terremotos e maremotos, mas ao longo do tempo, cada vez ambiente mais seco até a Terra se transformar num planeta muito parecido com Marte. Pedro Paulo foi até o portão da casa para aliviar os pensamentos. Um casal que ia passando, vindo da praia, conversava com a filha, uma criança de uns cinco anos de idade de chupeta na boca. Estavam despreocupados e riam do nevoeiro. Achavam engraçado em seu modo despreocupado do mundo aquele nevoeiro todo. A criança com seu balde de praia cheio de formas e pás minúsculas de plástico comentava que tinha sido uma pena não poderem ter aproveitado a praia porque o sol não aparecera, sem se darem conta que ele, o sol, continuava lá em cima gerando luz e calor. 
As neblinas espessas, agora nuvens compactas, é que não deixavam que a luz passasse em toda a sua plenitude, ocultando assim o sol. Os pais a tranqüilizaram dizendo que amanhã, domingo, voltariam para curtir a praia. Pedro Paulo pensou em contar-lhes o que se passava pelo mundo por causa do imenso nevoeiro global, mas desistiu. Pensariam que exagerava ou que era louco. Além do mais de que adiantaria contar-lhes? Estava exausto da evolução dos acontecimentos. Deitou-se na rede na área da churrasqueira e adormeceu.






Acordou ao relento no dia seguinte. Sua casa era agora apenas uma churrasqueira de onde emanavam alguns vapores de fumaça de madeira quase completamente queimada. Telhas e vigas esfumaçadas jaziam pelo chão. Tanto quanto seus olhos conseguiram alcançar, a paisagem era uma área devastada sem verdes. As nuvens eram agora uma nuvem só, escura, negra como breu. O Adamastor camoniano era “pinto” face á enormidade das asas soturnas daquela nuvem que previa um inverno nuclear. Pedro Paulo ergueu os olhos aos céus e gritou a seu Deus invisível, perguntando-lhe: “porque me abandonaste?” Sem se dar conta de que era o único ser vivo ainda vivo nas cercanias e até onde sua vista alcançava naquele breu.  Por um segundo pensou que talvez a televisão ainda funcionasse. E lá estava ela, aparentemente intacta, ligada a uma tomada que teimosamente se agarrava a um tijolo de parede derrubada. Ligou-a. Incrivelmente havia alguém do outro lado transmitindo notícias.

- Senhoras e senhores telespectadores, não sei se estarão me ouvindo, mas parece que o mundo acabou por causa de um efeito chamado “efeito borboleta” da teoria do caos, segundo a qual até uma simples borboleta, alterar o seu batido de asas poderia alterar também todo o Universo ou uma parte dele, embora a probabilidade fosse tão pequena que se poderia julgar como “altamente improvável”. Parece ter sido este efeito da Teoria do Caos que provocou o surgimento de nosso Universo. Da mesma forma parece ter acontecido uma sucessão de efeitos nos últimos dois dias que, proveniente da região de Búzios ou Cabo Frio, acarretou uma neblina expansiva que alastrou mundo afora. Alguém pode ter acendido a lenha de uma churrasqueira. As nações estão em guerra nuclear, artefatos explodem por todos os cantos do globo. Não há conselhos a dar. Esta deve ter sido nossa ultima transmissão...




Pedro Paulo desligou a televisão. Não queria ouvir mais nada desse mundo louco. Foi até a geladeira amassada, retirou de lá uma picanha, e levou-a até a churrasqueira. Cortou e amassou dois limões, jogou num copo com cachaça da roça e enquanto a carne assava e sua pele se desfazia em lascas por causa da radioatividade, foi tomando a caipirinha quente. Como o gelo e duas aspirinas faziam falta...  

Então, sentou-se numa cadeira, abriu a boca cheia de dentes, e tranqüilo por isento de culpas, esqueceu premeditadamente a praia e esperou a morte chegar ali mesmo.



® Rui Rodrigues
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