Unidos no grande mistério
(Baseado numa história real)
(Somos animais da Natureza sujeitos a intempéries de todos os tipos. Somos uma espécie teimosa, insistente, sempre buscando formas de conseguirmos o que desejamos, e quando a Natureza se acalma, passamos o tempo criando intempéries entre nós mesmos como se fosse diversão ou treino para novas intempéries futuras. O problema maior que temos quanto às intempéries, é quando a natureza nos brinda com uma daquelas de bradar aos céus – sempre em vão – em meio a uma intempérie que nós mesmos já havíamos criado e da qual ainda não saíramos. Uma situação destas num deserto geralmente é fatal. Pior ainda quando a temperatura média global estava em ascensão e provocava conturbações na atmosfera do deserto com ventos quentes, secos e fortes. As dunas se transformavam, mudavam de lugar em questão de breves minutos).
A infalibilidade e descendência divina dos reis.
Podemos ser brilhantes num determinado momento ou durante uma vida inteira, mas como não conhecemos tudo neste mundo, o menor erro, desconhecimento ou equívoco pode ser-nos fatal. O conhecimento é algo que se vai desvendando na medida em que a inteligência evolui e novas descobertas dão origem a outras. O conhecimento é coisa da humanidade, de um grupo ou sociedade e não de um só indivíduo. Assim, naqueles anos da década de 20 do século sexto antes do nascimento de Jesus Cristo, mais exatamente no ano de 525 AC, reinava Cambises II, filho de Ciro II o Grande. Ambos julgavam que os deuses os protegiam e que eram seus representantes na Terra. É incrível como passados tantos anos e com tanto progresso, tanta evolução, ainda há quem se julgue ser representante dos deuses neste planeta. E os deuses mudaram. Uns se foram, outros surgiram, outros estão desaparecendo. Muitos reis ganharam batalhas e perderam outras, fosse qual fosse o deus que imaginavam representar. Porém havia uma grande diferença entre Ciro e o filho Cambises. Ciro era magnânimo, até com seus inimigos, e ficaria na história como “o Grande”. Cambises foi sempre um mau caráter, um indivíduo torpe e as lembranças que deixou foram horríveis. Mas nada importava para as sociedades do largo reino: Fossem os reis bons ou maus todos seguiam as ordens do rei por solidariedade inocência ou medo.
(O exército de cinqüenta mil homens
de Cambises saiu de Menfis no Egito recentemente conquistado na direção da
atual cidade de Tunis, na época pertencente a Cartago, defendida pelo poderoso
exercito cartaginês. Caminhavam à noite guiados pelas estrelas a passo reforçado,
e descansavam de dia porque, pelo tamanho do exército, o abastecimento de água
deveria ser feito apenas nos oásis, e estes eram muito esparsos no deserto da
Líbia, onde de vez em quando as areias descobriam ossadas de homens e animais
que os ventos e as areias haviam coberto um dia, normalmente de forma trágica.
Entre os homens o moral não era alto. Estavam suados, cheiravam mal, cansados, sedentos
e esfomeados e se fossem surpreendidos estariam em desvantagem. Não havia
nuvens no céu completamente azul e nem se viam aves de rapina, tal a secura
daquela parte do deserto. Se houvesse, estariam agora sobrevoando os cadáveres
dos que haviam ficado para trás vencidos pelo cansaço, ou por um simples
resfriado que naquelas condições era sempre fatal. O que lhes dava ânimo era a
possibilidade das pilhagens num Egito que se ornamentava com ouro,
lápis-lazúli, pedras preciosas, belos panos de linho imaculadamente brancas. A
maioria pensava nas lindas mulheres egípcias, de olhos pintados, sempre lavadas
e perfumadas. Tomariam as jovens egípcias depois de cheirarem o cânhamo
defumado – o Quinabu – e se tivessem sorte, com o uso de bastante mandrágora ou
papoula preparada que eram bem mais relaxantes.Com mais sorte ainda ficariam no
Egito para sempre como exército de ocupação).
O perfil de um rei
Tal como Cleópatra, Cambises II - Kambujiya ou کمبوجیه - achava-se o representante dos deuses, filho de deuses, e não teria filhos com “humanos”. Podemos até apostar sem errar muito que Cambises não considerava o povo como algo “humano”. Para ele eram servos, destinados a servirem as suas vontades. Todo um reino para servir sua realeza “divina”. Por isso casou-se com suas duas irmãs: Atossa e Roxana, para que pudesse ter “filhos divinos”, mas morreu sem ter tido filhos com as irmãs. Num acesso de fúria, espancou violentamente Roxana, sua irmã grávida, dando-lhe pontapés no ventre prenhe até a morte. Anteriormente havia matado seu irmão Esmérdis (ou Bardia) por ser o preferido do povo e concorrente ao trono por morte de Ciro. No Egito matou com as próprias mãos um sacerdote que representava uma das mais importantes divindades egípcias, o Boi Ápis. Acusado de corrupção, um juiz teve sua pele arrancada e esticada sobre a sua própria cátedra de juiz. A tropa não gostava de Cambises II, muito diferente do pai, e um de seus generais, Dario, era seu braço direito na campanha africana. Dario era um general esperto e dizia-se descendente, também, dos Aquemênidas, uma estirpe real à qual Ciro e Cambises também pertenciam. O império persa era o maior que já se vira sobre a face da Terra. Somente no império habitavam aproximadamente cinqüenta milhões de habitantes de todas as regiões do planeta, cinqüenta por cento de toda a humanidade. Dizem que ele mesmo matou Psamético III Faraó do Egito logo após o ter derrotado na batalha de Pelúsia. Mandou matar Creso, um rei deposto que agora fazia parte de seu conselho e os pretensos assassinos para demonstrar que não fora ele o mandante. A cada dia Cambises se mostrava de temperamento mais instável, incitado pelo frenesi do poder, de conquistar toda a terra que pudesse enxergar. Seria um deus visível, palpável, senhor único de toda e qualquer vontade. Dario passou a temê-lo. Da forma como se comportava, um dia Cambises mandaria matá-lo também. Talvez quando chegassem a Pasárgada, depois da revolução domada.
(Algures no deserto da Líbia, entre o Egito e Cartago, a temperatura baixou um pouco e ainda era quase meio dia. Muito cedo para baixar. A essa hora uma boa parte do exército de Cambises II Descansava do calor depois de uma longa caminhada noturna até cerca das 10 horas da manhã. Longe de qualquer possibilidade de serem atacados, os cinqüenta mil homens dormiam debaixo dos escudos e das mantas que carregavam. Não havia turnos de vigia. Iam conquistar Cartago. Aquele exército era enorme. Outra grande parte estava com Cambises a caminho da Etiópia, em sentido oposto. Cambises queria conquistar toda a África, mas caminhava para a Etiópia porque havia notícias de um mago usurpador do trono aquemênida. Uns diziam que era o irmão de Cambises, Bardia, que seria o próprio mago ou ele mesmo ressuscitado quem pretendia destronar o rei. Dario se encarregava de dar ouvidos aos boatos. Não tinha incitado o rei a dividir o exército, mandando as divisões com mercenários para o deserto da Líbia?).
A caminho da Etiópia.
Cambises tinha Dario como seu braço direito, inseparável. Era seu conselheiro político e militar. Um dia dar-lhe-ia um fim, porque não se pode deixar um colaborador ser mais eficiente do que o próprio rei sob pena de perder o reinado. Dario também sabia disso, e de fato, não desprezava a idéia de um dia vir a ocupar o trono, visto que Cambises era detestado por todos. Podia matar Cambises e pôr a culpa em alguém estranho. Gente disposta a isso não faltava. Aliás, se viesse a ser um rei não precisaria de um império tão grande, mantendo exércitos de ocupação que sempre custam muito caro e não raro são focos de revoltas. Como Cambises queria conquistar Cartago, não se opôs, e consultado, aconselhou a que fosse destacado o exército que misturava persas com gentios. Eram os mais fracos em fidelidade. Em vão tentara demover Cambises de atacar a Etiópia, mas não conseguiram passar além da Núbia. Os núbios derrotaram o seu exército que mal conseguiu voltar ao Egito. A frota foi desmantelada. O humor de Cambises piorava e era costume entrar em depressão. A obra a que Cambises se propunha era muito maior do que a sua capacidade de executá-la. Dario acompanhava com prudência. Havia notícias de uma revolta na Pérsia. Muito em breve deveriam ter de voltar para contê-la e Cambises não poderia chegar até lá.
(Primeiro foram os animais, alguns
poucos cavalos e camelos que começaram a se agitar, ficaram indóceis e faziam
esforços para se livrarem das amarras. Depois foi a temperatura que caiu
abruptamente quando quase todos os cinqüenta mil soldados dormiam. Finalmente,
os que não dormiam olharam para o horizonte e viram o que jamais tinham visto:
Uma enorme nuvem vermelha, muito mais alta que as pirâmides, que se aproximava
rente ao chão, mais rápido que o mais veloz dos cavalos dos sátrapas. O alarme
foi dado. Cinqüenta mil homens olhavam paralisados para a nuvem. Primeiro
acharam que era um enorme exército que os atacava e chegaram a fazer formação
de combate, a infantaria de frente, os arqueiros atrás, a cavalaria nas
laterais. Nos cinco minutos seguintes retiravam os lenços, as capas e os
saiotes para se cobrirem, taparem o rosto. Era areia. Enormes nuvens de areia,
coladas umas ás outras que pareciam ficar cada vez maiores, como se toda a
terra os quisesse engolir. Os últimos a morrerem sufocados, sem poder respirar
pelo peso da areia que se abateu sobre eles, fragilizados pela tosse constante
e o sufoco, porque o que mais respiravam era areia, ainda tiveram tempo de
pensar em três coisas: Na vida desde a infância, na pilhagem que iriam perder,
e na impossibilidade de desobedecer as ordens de seus generais que os mandaram
para a morte. Quando a tempestade de areia passou não havia rastro de nada. Era
como se a paisagem sempre tivesse sido assim).
Vou embora para Pasárgada. Lá sou o rei.
Cambises descarregava a
raiva por conta de seus fracassos, de sua ansiedade em resolver os problemas,
por sua incapacidade de sendo rei e descendente dos deuses, não resolver
problemas que lhe pareciam tão simples. A campanha no Egito, para todo o mundo tinha
sido um sucesso. Afinal, ele agora era também o Faraó do Egito, mas só ele e
Dario sabiam do real fracasso. Não conquistaram Cartago, foram derrotados pelos
núbios que consideravam mais fracos do que os etíopes, e perderam um exército
inteiro sem saber como nem onde nem porquê. A única coisa que sabiam é que o
exército saíra de Menfis a caminho de Cartago, mas nem chegara lá nem voltara.
Um exército, ainda mais daquele tamanho não desaparece assim. Alguém poderia
ter escapado. Mas não. Não sobrara ninguém para contar a história. Cambises
entrou em profunda depressão. Com a notícia da rebelião na Pérsia, resolveu
voltar à pátria. Decidiu que iria por Gaza e Damasco. Talvez em Damasco ou na
cidade de Hamada, no ano de 521 AC, Cambises deixou de ser rei, largou todos os
seus problemas e morreu ferido. Dario disse à sua tropa, que murmurava contra
Cambises no acampamento, que este se ferira a si mesmo. Sua frase que ficou na
memória da história foi: “Ele morreu sua própria morte”, insinuando um
suicídio, completamente impróprio para um rei, e que deveria ser interpretado
como “feriu-se e morreu” como ato involuntário. Para Heródoto, famoso
historiador grego, Cambises se ferira montado em seu cavalo.
(O dia fora insuportável. Dario
tinha a paciência de um rei que espera sempre o momento certo para agir,
suportando as adversidades com muita calma. Cambises entrara numa daquelas
fases de ficar irritado, culpando tudo e todos, a boca espumava de raiva. Apesar
disso jamais alguém os ouvira discutir fosse o que fosse. Cambises e Dario
pareciam ser um só e sua amizade e respeito um pelo outro jamais foram
discutidas ou postas em dúvida. O dia seguinte seria ainda pior, porque a
instabilidade do rei o levaria a tomar atitudes hostis, de raiva incontrolável.
Um copo caído, uma saudação mal feita poderia despertar-lhe os piores humores.
Pela noite Dario foi a seus aposentos. Na entrada perguntou baixinho como
estava o rei. Os sentinelas disseram que ele tinha acalmado. Os sentinelas
sempre haviam sido de Dario, o general, e não do rei. Quando entrou, Dario viu Cambises
profundamente deprimido e só. Não havia mais ninguém por perto exceto os
sentinelas. O rei baixou a cabeça, desanimado ao falar sobre as campanhas do
Egito, da Núbia, da Etiópia e agora da revolução na Pérsia, ao que tudo indica
levada a cabo por seu irmão Bardia que ressuscitara. As mesmas forças que
tinham destruído um exército de cinqüenta mil homens poderiam ressuscitar seu
irmão. Já nem sabia se tinha matado devidamente o seu irmão. Estava muito
confuso. Quando a sua própria adaga lhe entrou no coração toda sua energia se
concentrou em arregalar os olhos de admiração, olhando para Dario sério, que o
segurava nos braços, como que lhe pedindo perdão, mas não teve forças para
falar. Em segundos o corpo de Cambises desfalecia por completo. Então Dario
gritou para os sentinelas: Acudam! Chamem um Médico rápido. O rei feriu-se. Dario casou-se com Atossa, irmã de Cambises, esposa de Cambises e filha de Ciro o Grande).
Rui Rodrigues