Das histórias que mais me impressionam e se passaram aqui no Bar do Chopp Grátis, pelo menos em parte, esta é uma delas... Começa no tempo em que ainda não havia Shopping Centers na cidade, em plena Rua do Costa que ficava perto do Colégio Pedro II, entre a Praça da Republica e o colégio, no Centro do Rio de Janeiro. Costumava frequentar esse bar bem em frente a uma loja de meu pai. Dizia-se que o senhor Manuel e a dona Maria, casal simpático, não eram empregados, e sim os donos, e que dona Maria não era casada com ele. Foram eles a minha inspiração para criar o Bar do Chopp Grátis, um lugar onde se escutavam historias de todos os tipos contadas por pessoal do Itamarati, da Light, militares, comerciantes e políticos.
O Egípcio
Por essa época, nos anos 60, ainda chegavam emigrantes de Portugal, Israel, Líbano, Alemanha, Japão, e de muitos países de todo o mundo, que rapidamente se integravam com o povo brasileiro. Faziam-se amizades mais ou menos sólidas e os negócios muitas vezes nem precisavam de contrato. Eram na palavra. As desconfianças vieram depois.
Num certo dia enevoado, sombrio, em que nem se repara nas pessoas, provavelmente num mês de Julho, um egípcio com quem tinha feito sólida e boa amizade me chegou com um baú . Disse que precisava fazer uma viagem, e pediu que o guardasse até a sua volta. Então perguntei-lhe a quem o deveria entregar acaso não voltasse por qualquer motivo. Respondeu-me que me avisaria, mas que se não recebesse noticias dele em dois ou três anos, que ficasse com o baú. Isto foi por volta de 1963, por aí, e em 2010, quando inaugurei o Bar do Chopp Grátis mais moderno, coloquei o baú numa prateleira como decoração. Nem lembro quando o abri, mas não tinha nada de valioso a não ser um Kilim, ou tapete pequeno de oração. Mandei avaliar, mas não era valioso. Coloquei-o na prateleira por debaixo do baú. Meu amigo cujo nome nem lembro por completo (Ele era conhecido como Radamés),nunca mais apareceu nem mandou noticias. Ninguém reclamou o baú, que nunca vendi, apesar de ofertas que clientes e namoradas fizeram. Não se vendem coisas nessas circunstancias nebulosas, envoltas em amizade. Até que, no ano passado...
Gente suspeita chega ao Bar.
Primeiro chegou um, sentou-se numa mesa e passou a ser frequentador assíduo. Reparei nele por ter um tipo de bigode que não se usa mais e por ser muito reservado. Umas semanas depois notei que tinha companhia: Uma bela moça de uns 27 anos de idade, de traços árabes, do tipo que não conversa com estranhos. Ele também parecia de origem árabe, mas poderia ser avô ou pai dela. Um mês depois, mais ou menos, juntou-se-lhes mais um casal, e embora não tivessem aspecto de serem árabes, tinham em comum que conversavam apenas entre si, muito pouco, em voz baixa. E de vez em quando olhavam para o baú, o que sempre achei muito normal. Era uma bela peça em que quase todos os clientes reparavam. Levaram um par de semanas indo ao Bar, olhando o baú, até que me convidaram para me sentar com eles. Quando me sentei, preparei-me para escutar uma proposta de compra. Vistos de mais perto, olhos nos olhos, havia algo que não agradava, como se fizessem pequenos e constantes esforços para parecerem tranquilos, convincentes, compreensivos e simpáticos. Mas eu não o venderia, fosse qual fosse a proposta. Contaram-me uma história.
Uma história do baú
O homem de bigode apresentou-se. Chamava-se Gamal e a moça, sua filha, Amilah. O casal que chegara mais tarde eram seus parentes. Disse-me que o baú tinha uma historia e começou:
- Temos reparado nesse baú que está na prateleira. Reparei nele logo no primeiro dia em que entrei em seu bar. O valor dele é sentimental porque um parente nosso tinha um igual. Na verdade, este é uma cópia de um outro que foi encontrado na tumba de Tutancâmon e que está no museu do Cairo. Pode mandar avaliar e verá que lhe digo a verdade.
- E de onde vem o valor sentimental? Perguntei-lhes olhando para todos. Amilah respondeu.
- Acreditamos que pertenceu a um tio, irmão de meu pai, que desapareceu misteriosamente. Se for verdade, há uma pequena marca que parece o raspar leve de uma ferramenta que deixou pequeno e indelével sulco na madeira do fundo. Gostaríamos de olhar. Podemos?
A proposta
Fui até a prateleira, retirei o baú e o olhamos sobre a mesa. A marca estava lá. Enquanto olhavam perguntei o nome do parente, e me disseram que se chamava Radamés. Então...Aquele meu amigo que deixara a peça comigo, o Radamés, era tio da moça... Mas nesse caso porque não me teria avisado para lhes entregar o baú, já que eram de família? Preparei todos os meus sentidos para ficarem de sobre-aviso. Disse-lhes:
- Não pretendo vender esse baú. Tenho-o desde 1963, e já faz parte de minha vida e de minhas recordações. Parece impossível medir o que seria maior e mais forte, se o valor da minha afeição ou o vosso sentimental que nutrimos por ele. Em todo caso, vou consultar um especialista e embora não pretenda vendê-lo, se desejarem podem fazer uma oferta de preço, quem sabe me surpreendem? Em todo caso preciso de alguns dias...Digamos uns 30.
Concordaram entreolhando-se e abanaram positivamente as cabeças. Depois pagaram a conta e saíram.
Para negociar, conheça-se do negócio...
No dia seguinte pedi a um velho amigo que viesse novamente avaliar o baú que, por precaução, levara para minha casa. Queria ter certeza do valor. Também consegui com outro amigo meu que lhe tirasse uma chapa de raios x. Ele trabalha num hospital perto do bar. O primeiro me disse que a peça era realmente uma imitação muito bem feita, incluindo madeira envelhecida, obra de artista que deveria ter tido acesso ao baú original, no Cairo, tal a riqueza de detalhes e das medidas. Não eliminou a hipótese de aquele baú ter sido feito com a intenção de falsificar e vendê-lo a bom preço. A radiografia mostrou algo impressionante de tão pequeno e complicado. Foi por isso que no dia seguinte o baú já estava de volta ao Bar do Chopp Grátis, no mesmo lugar da prateleira onde sempre estivera, por cima do kilim. Porem faltava-lhe algo que nem o melhor conhecedor de antiguidades ou com vista mais apurada poderia identificar.
Uma visita noturna inesperada
Passei duas semanas tentando saber tudo sobre chaves. Chaves de cofres e de bancos. A radiografia revelara um pequeno encaixe de madeira num dos lados do baú, perfeito, que escondia uma pequena cavidade com uma chave. A peça que liberava o encaixe era uma pequena haste vertical que se puxava desde o topo da lateral,e por ficar debaixo da tampa nunca ficava visível. A chave parecia ser adequada a pequenos cofres de bancos destinadas a guardar pertences de clientes. Mas qual Banco? Em que país?
Retirei a chave e devolvi o baú para a prateleira do Bar assentando-o sobre o Kilim.
Tive que explicar a Gamal e aos outros três familiares, que continuavam visitando o Bar, que a pessoa que verificaria o valor do baú estava de viagem e que a aguardava a qualquer momento. Estranhei que as senhoras não tivessem voltado ao bar, e que em vez disso, em outra mesa tivessem aparecido dois sujeitos com aspecto de seguranças. Comecei a pensar seriamente em me cuidar.
Uns dias depois, ao chegar em casa, tive uma surpresa. No hall vi um senhor de idade, sentado confortavelmente no sofá, conversando com o porteiro. Quando entrei os dois olharam para mim. Impossível não reconhecer o Radamés apesar da idade. Demo-nos um grande abraço.
Operação resgate
Recordamos os velhos tempos por instantes, enquanto subíamos ao meu apartamento. Depois, tomando um par de anises e outro de "amêndoa amarga", meu amigo egípcio me contou a sua história, desde que saíra do Egito para o Brasil em 1956 por causa da invasão franco-britânica-israelense, até a revolução de 2011 que o trouxera de volta novamente. Perguntou-me se tinha encontrado alguma coisa estranha no baú. Contei-lhe sobre Gamal e Amilah, os dois casais e os seguranças, e a chave, que lhe entreguei. Contei também sobre minha pesquisa e a intenção de encontrar o cofre que ela abriria dada a ausência do amigo há tantos anos. Então me convidou para um passeio na manhã seguinte, mas pediu-me que o encontrasse no centro da cidade por volta das 10 horas da manhã nas escadarias da igreja da Candelária, no portão principal, e que tomasse varias conduções para despistar possíveis intrusos. Avisou-me que não deveria ter confiança na família dele por terem diferentes preferências politicas e religiosas, e por serem muito ambiciosas. Gente perigosa, acrescentou. Contou-me também, em pormenores, como ficara rico e tinha uma boa fonte de aposentadoria.
No dia seguinte chamei três táxis e pedi o numero das placas ou do veiculo: um táxi normal, dois pela Uber, marcando local e horários para me pegarem, descrevendo minha roupa. O ultimo era de um amigo meu que costumava me apanhar quase todos os dias. No horário marcado sai do meu táxi e entrei no carro de Radamés que já me esperava. Fomos a um Banco famoso ali perto, em pleno centro. A chave abria um cofre de particulares do Banco. Radamés foi até os cofres, abriu o seu. Fiquei a uma certa distancia para lhe garantir a privacidade e vi quando ele tirou um pequeno saco de veludo preto do bolso e transferiu alguma coisa para ele, e o colocou no bolso do casaco. Depois virou a gaveta do cofre e a despejou numa bolsa de plastico preta de supermercado. Deixou a chave dentro da gaveta, em cima da mesa e saímos.
Alegria e tristeza em despedidas
O carro esperava-nos na saída. Já dentro, Radamés pegou a bolsa preta, do tamanho de meu punho cerrado, e a colocou nas minhas mãos dizendo: - Fique com o baú e com isto. Há coisas que apenas a amizade não pagam. Tenho mais que o suficiente. Lembre-se sempre de mim. Você estará sempre em meus pensamentos e em meu coração. Pela idade que temos pode ser que seja esta a ultima vez que nos encontramos. Foi assim que em menos de 24 horas tinha tido o prazer de reencontrar o amigo, e o tinha perdido novamente. Ele me deixou na porta do edifício de meu apartamento já passava do meio dia. Quando puxei os cordões do pequeno saco preto vi aqueles brilhos ofuscantes e nem pensei duas vezes. Fui ate o armário das garrafas a que chamo de adega, enchi um copo de Bourbon, e tomei de uma talagada só. Aquilo dentro do saco de veludo eram diamantes dos graúdos e médios. Uma fortuna considerável.
A ultima despedida
No dia seguinte voltei ao Bar. Lá estavam Gamal e Amilah e os dois seguranças. Disse-lhes que o bau tinha sido avaliado e que por ser uma peça incomum e muito bem feita, poderia valer uns 10.000 dólares. Fomos ate meu escritório no Bar. Eles acharam o preço excelente. Amilah tirou da bolsa um pacote e meio de notas de dólar e me ofereceu como pagamento. Quinze mil dólares. Disse-me que minha afeição pelo baú, depois de tantos anos, deveria ser maior do que o valor sentimental deles, no que, interiormente, pensei que deveria ser a pura verdade. Vendi-lhes o baú.
Não existe coisa mais frustrante que quereremos agradecer a alguém e esse alguém estar indisponível. Onde encontrar Radamés para lhe agradecer? Encontrei-o nas paginas do jornal dois dias depois. Fora encontrado morto em seu apartamento de luxo na zona sul do Rio de Janeiro. Liguei para a policia federal, contei o caso sem mencionar a ida a Banco nem a chave do cofre, e descrevi os suspeitos baseado na historia que Radamés me contara.
Uns dias depois os seguranças apareceram com Gamal e Amilah no Bar. A policia apareceu também, surgida do nada. Houve tiroteio acirrado e os dois seguranças tombaram mortos na porta de entrada que fica ali perto, no Blogger. Gamal e Amilah foram presos. Perguntei aos policiais a razão do tiroteio. Disseram que era uma quadrilha que agia no trafico internacional de diamantes. As noticias dos jornais no dia seguinte confirmaram, acrescentando que os diamantes haviam sido recuperados.
Nem todos, mas isso somente eu sabia. Fui despedir-me de Radamés pela terceira vez em meu apartamento, tomando meia garrafa de "amêndoa amarga" que me custou mais um dia seguinte de ressaca.
Rui Rodrigues