No
Bar do Chopp Grátis contamos o que nos contam. Há aviso na entrada e
espalhados pelas paredes onde consta: “Se deseja segredo, não nos conte. Se nos
contar, podemos publicar sem qualquer tipo de compensação financeira”. Até hoje ninguém
reclamou. Quanto á ficção, são tantos os casos que se tornaram realidade, que é bom ter cuidado com estas coisas.
Ralph
Ogarth foi o ultimo a sair naquele dia do “Laboratórios Alifdeg” em San Diego.
Era uma sexta-feira. Tinha acabado de analisar as placas de Petri e efetuado os
cálculos para todas. Selecionara dez para a bactéria KPC em estudo [1]e
mais dez para a bactéria modificada cultivadas em ágar-ágar. Fizera em seu
apartamento a modificação genética. Para todos os efeitos no laboratório, o
estudo se destinava ao estudo da bactéria KPC, não á modificada. Todas as
informações referentes á bactéria modificada estavam anotadas em seu pequeno
bloco de papel que cabia em seu bolso traseiro das calças. No laboratório não
havia registros sobre esse estudo. Por isso, logo que anotou os cálculos no
bloco, queimou as placas de Petri cultivadas com essa bactéria. Não havia qualquer
antídoto que a pudesse eliminar. Tinha absoluta certeza e só precisava testar
para confirmar. As principais propriedades da KPC modificada eram a sua redução
de tamanho, a alta velocidade de proliferação e o sistema de contaminação
através do ar, da troca de fluídos, pela pele das vítimas. Sairia de férias e
só voltaria depois das festas de ano novo. Passaria a próxima semana em testes
com animais em sua casa de campo. Tinha licença para criar porquinhos da índia.
São prolíferos quase iguais a coelhos, comem menos e ocupam menos espaço. Sua
mulher, Olga Karajeva, já o esperava. Estavam casados há 16 anos, não tinham
filhos por vontade dela, e sabia que o traía. Sabia até com quem, e não era
apenas com um.
Pelo
ano de 2023.
Ralph
Ogarth formara-se em Harvard em biologia molecular em 2023 com 20 anos. Muitos
de seus professores vaticinavam que seria sério candidato a prêmio Nobel por
relevantes descobertas, mas algo o perturbava desde criança. Achava o mundo injusto.
Sua inteligência reprovava, de modo geral, o desinteresse humano pelo
conhecimento, as injustiças sociais, o desleixo com que se trata a natureza e
os serviços públicos, por excesso de preocupação com a riqueza e o luxo
pessoais. Uma das coisas que mais o intrigava eram os altos salários pagos a
artistas e desportistas, atividades para as quais a desenvoltura física, o
aspecto físico e desenvoltura no falar, além do fingimento, eram os predicados
necessários encobrindo uma ignorância total. Homens que contribuíam para a
ciência e professores eram geralmente bem pagos, mas nada que se comparasse com
os salários de artistas e atletas. Ralph Ogarth também não tinha muita aptidão
para lidar com mulheres. Esse tinha sido uma das razões para se dedicar aos
estudos e ao trabalho com afinco. Ao longo dos anos reprimiria esse seu
desajuste, disfarçaria com sua simpatia, e jamais se consultaria com
psiquiatra. Ele estava certo em seu julgamento, o que era injusto era o mundo.
Se não fosse o cunho religioso, e a pequenez dos ideais, teria como heróis os
antigos idealistas do Estado Islâmico já destruído ao longo de décadas de
combates sem quartel. Sorriu ao pensar que sua casa se transformara numa
potente arma de destruição em massa.
Dezembro,
22, 2041.
Ralph Ogarth abriu a porta da garagem e entrou no carro. Eram oito horas da manhã, era inverno e o dia estava frio. Calçava luvas e levava consigo algumas ampolas. Deixou para trás um traje completo de prevenção contra contaminações jogado no piso da garagem, uma criação morta de porquinhos da Índia e sua esposa que jazia junto ás gaiolas dos pequenos animais. Não havia mais nada vivo na casa. Nem o cachorro, um velho labrador com artrite. Ninguém associaria um montículo de cinzas no piso da cozinha a um pequeno bloco de papel com anotações a lápis. Pisara as cinzas para que não pudessem ler o conteúdo queimado, com ajuda de microscópios, pelas ondulações no papel devido á retração do papel pelo carbono do lápis, definindo as letras. Aliás, duvidava até que se alguém entrasse na casa tivesse tempo de sair antes da falência total dos órgãos.
Chegou
ao supermercado em San Diego a tempo de abrirem. Levava no bolso de sua jaqueta
impermeável uma ampola. Discretamente quebrou-a com a mão enluvada, e foi
pegando em frutas, legumes, colocou o dedo em peixes expostos como quem
verifica se está com a carne firme, em queijos embrulhados como quem vê o
preço. Não gastou mais de dez minutos. Depois saiu. Antes de voltar a entrar no
carro jogou as luvas e a jaqueta num latão de lixo. Podia deixar pistas sem
problema algum. Depois entrou no carro, pegou outra ampola e colocou no bolso
de outra jaqueta de cor diferente que vestiu. Ligou o rádio. Nenhuma notícia a
respeito. Não achou estranho porque a notícia demoraria um pouco mais em sua
opinião, mas os efeitos já estavam correndo a uma velocidade incrível. Muita
gente mais teria tocado onde ele tocou com sua mão direita. Dirigiu-se a outro
supermercado. E a outro. Perto do meio dia, dirigiu-se ao aeroporto. Pegou um
avião para N. York. Levava na mala algumas ampolas e uma reserva de jaquetas. Em
sua opinião a bactéria já o deveria ter contaminado. Embora tivesse tomado
precauções quanto á permeabilidade das luvas e das jaquetas, porque não fizera
ainda efeito em seu corpo? Na sala de espera esperou em frente ao aparelho de
TV. Então assistiu á primeira reportagem. Havia gente espalhada no chão do
primeiro supermercado que visitara. Todas mortas. Outras pessoas estavam
passando mal. Não sabiam a causa e não havia suspeitos. Durante o vôo ouviam-se
comentários. Uma das hipóteses era um ataque terrorista. Faltando cerca de dez
minutos para o pouso, Ralph dirigiu-se ao banheiro. Na volta foi passando a mão
enluvada contaminada pelos encostos das cadeiras. Depois entrou no ultimo dos banheiros.
Tirou as luvas que jogou no vaso, deu a descarga e calçou outras iguais. Foi
para sua cadeira e esperou pelo pouso. Foi o ultimo a sair. Dali foi direto
para o hotel que tinha reservado.
Noticiário
em Janeiro 10, 2042.
...
Aparentemente a epidemia começou num supermercado em San Diego, Califórnia. Não
se sabem os motivos, mas existe um suspeito. Trata-se do doutor em biologia
molecular Ralph Ogarth dos laboratórios Alifdeg. Em sua casa foram encontradas
dezenas de porquinhos da índia mortos, um cachorro velho que sofria de artrite
e sua esposa. A suspeita é baseada nestas mortes e no fato de ter sido visto no
supermercado na manhã do dia 22 de dezembro. Ele viajou para Nova Iorque nesse
mesmo dia. Contam-se aos milhões os mortos em San Diego. A cidade está isolada,
ninguém entra e ninguém sai. A epidemia alastrou-se aos estados vizinhos que
também já foram isolados. Os laboratórios da nação trabalham afincadamente para
determinar as características da bactéria que parece ser a KPC geneticamente modificada.
A ser confirmada, é muitas vezes mais letal do que o Ebola... As autoridades...
Noticiário
em abril 10, 2042.
... Foi encontrado hoje num hotel no centro de Manhattam o corpo do doutor Ralph Ogarth. As agências de Inteligência, incluindo a NSA e o FBI confirmam que a origem da bactéria é proveniente da casa de campo de Ralph Ogarth. A população do Estado da Califórnia e os vizinhos Nevada, Oregon e Arizona estão com sua população reduzida a cerca de 10%, assim como Baja Califórnia no Estado vizinho do México e outros estados. O mesmo acontece com N. Iorque e os estados limítrofes e com Ontário no Canadá. A velocidade com que a bactéria se espalha é de tal ordem que não há pessoal para garantir o isolamento. A esta velocidade o mundo pode ficar reduzido a cerca de dez por cento de sua população em pouco mais de seis meses. O maior problema é a fuga dos países infetados para outros países na esperança de se livrarem da contaminação... A economia mundial está confusa e praticamente parada. Faltam víveres, remédios, as fábricas fecham suas portas diariamente.Os enlatados acabaram.
Noticiário
em fev 15, 2043.
... Ao que parece a epidemia estabilizou-se. A população mundial é atualmente de cerca de 700 milhões de pessoas. A população mundial regrediu a níveis do ano 1.750. Em cerca de um ano após o inicio da epidemia a qualidade do ar melhorou tanto que a temperatura média global baixou mais de um grau centígrado. Os cardumes de peixes nos oceanos se fortaleceram em quantidade e tamanho. Acreditam os expertos que com o nível de conhecimento que se tem hoje a humanidade jamais crescerá ao ritmo que crescia antes. Com tanto trabalho a fazer e tantos bens disponíveis grátis por falecimento de famílias inteiras, a filosofia do socialismo e do comunismo desapareceram das expectativas da população. foi inaugurada em Haia uma estátua em referência ao marco zero de uma nova humanidade...
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Rui Rodrigues