O
velório do Homem (individual).
A
criança estava febril. Ardia em febre há dois dias. A mãe fazia o que podia
para baixá-la, passando panos úmidos pelo corpo da criança. Sabia que a
evaporação da água fazia baixar a temperatura. Tudo o que ela mais queria era
que o marido conseguisse chegar a tempo á vila mais próxima e trazer o doutor.
Provavelmente faria uma sangria na criança, ou quem sabe, trouxesse sanguessugas
para evitar incisões. As sanguessugas chupam o sangue e fazem quase o mesmo
efeito. Se o médico fizesse sangria, então sim, o caso seria grave. Até a vila
eram dez quilômetros por uma estrada de terra nua e crua por onde passavam
carruagens com passageiros, cavalos e condutores insensíveis. Não paravam nem
acenando. Por segurança, as carruagens não viajavam á noite. O marido fora a pé
por aquela estrada de terra nua e crua, por onde não passam carruagens á noite
e que nem parariam mesmo que se lhes acenasse, sujeito a ataques de lobos [2]e
assaltantes, para trazer o médico que não sabe se o atenderia. Tudo para salvar seu
único filho. Quando a mãe sentiu a mão do filho esfriar ficou satisfeita.
Finalmente a febre cedera. Passou-lhe a mão pela testa. Estava gelada!... Foi
então que se deu conta da morte do filho. A criança estava morta. Culpou e maldisse
o marido que estava atrasado, mas reconheceu que o coitado tivera que ir a pé
porque o único cavalo que tinham estava com a pata quebrada.
O marido nunca
chegou a saber que a criança falecera e que sua esposa ainda jovem, ficaria viúva,
voltaria a casar, e teria um filho de outro homem. Seu cadáver foi encontrado á
beira da estrada espancado por bandoleiros, as carnes esfaceladas pelos lobos.
Uma
senhora das redondezas, numa visita de solidariedade em que levou á viúva o
ultimo presente que lhe daria, um pão que pesaria mais ou menos um quilo,
comentou que a vida era assim mesmo, que deveríamos ser fortes e solidários, e
que se precisasse de alguma coisa que ela estaria “ao seu dispor”... Meses mais
tarde a viúva até precisou, mas a vizinha do pão não tinha mais nada para lhe
poder oferecer.
A vida realmente era assim. Nem houve velório porque as casas
eram muito distantes umas das outras, o padre não ia á Igreja todos os dias, só
uma vez por mês e o dia de voltar estava ainda longe, e o que o marido tinha
deixado era uma pequena propriedade onde cultivavam o essencial, cheia de
dívidas, além de uma fama de família honesta, trabalhadora e boa pagadora até
então. Depois da morte do marido, até a fama seria enterrada, como ele, em cova
rasa na parte dos fundos da propriedade. A lua daquela noite nada tinha de
romântica. A essência dos momentos e a disposição é que fazem o romantismo. Mas
isso foi em 1825 lá nos pampas do Rio Grande do Sul, numa pequena propriedade
do quinto distrito de Piratini, entre um capão e outro dos tantos que se vêm
por lá. A ultima ovelha foi a abate logo na semana seguinte. A viúva não tinha
mais nada. Só a pequena propriedade cheia de dívidas. Para a carne durar mais
teve que salgar boa parte.
O
velório do Homem (particular).
Em 1971, 150 anos após o incidente, um órgão, apresentado
como o pênis de Napoleão, apareceu no Christie's Fine Arts Auctioneers, em
Londres.
Lá no
meio do salão de velórios do cemitério, havia muitas flores em vasos, coroas de
outras com fitas letradas encostadas no esquife, de madeira envernizada escura,
com alças douradas que jazia, mais imóvel que o próprio defunto, sobre pedestais
de mármore branco luzidio. Flores, defunto e vivos, tinham todos aquele aspecto
amarelado de coisa morta, o cheiro das flores sobrepondo-se á dos perfumes
franceses da França ou franceses do Paraguai. Apenas o cachorro estava sentado
ao lado do esquife. De vez em quando dava uma volta ao redor, levantava o
nariz, cheirava, gania, e voltava a sentar-se. Lá no meio da gente sentada em
confortáveis cadeiras, uma senhora idosa, toda vestida de azul noturno,
incluindo o chapéu e os sapatos de veludo, perguntou para um senhor a seu lado
de terno cinza, camisa cor pérola, gravata preta, lenço preto no bolso pequeno
do paletó, chapéu preto, sapatos pretos, cabelo preto e bengala de ébano, num
luto total:
- De
assalto. Os bandidos furaram o meu amigo com uma faca de cozinha chinesa,
dessas que soltam o cabo e não cortam nada depois do primeiro uso. Foram umas
seis facadas. Ele estava no ponto do ônibus e foi assaltado. Ele que sempre
anda de carro... Ele tem um carro, mas estava no conserto... Que infelicidade,
não é minha senhora? Que azar...
-
Muito... Ele era rico?
- Não...
Ou melhor, era sim minha senhora, foi! Melhor dizendo, e na verdade, foi rico,
mas só deixou dívidas.
- É...
Sim... Mas que fazer... Sabe me dizer se há mais alguma sala de velórios neste
cemitério?
- Há
sim, minha senhora! Agora mesmo estão velando um sujeito que a mulher cortou em
pedaços, pôs dentro de três malas e enterrou perto de uma placa de trânsito á
beira da estrada. Porque perguntou?
- Porque
esse é que é o defunto que vim velar, o da esposa que esquartejou o marido.
Pensei que fosse este. Sabe... Não conheço ninguém. Eu era a amante dela.
- Acho
que a senhora não ouviu bem. Não se trata “dela”. Quem morreu foi “ele”, que
era empresário e tinha uma fábrica de salsichas. Dizem que as salsichas da
fábrica dele têm mais pasta de papel reutilizado e aromatizantes que carne, e
mesmo sobre a carne têm dúvidas sobre a procedência.
- Ouvi
muito bem, meu caro senhor. O senhor é que não entendeu. Eu era amante “dela” -
a viúva dele - mas ela é que era “ele” na minha relação com ela. Entendeu
agora?
E sem esperar resposta, a senhora de azul noturno levantou-se da cadeira e caminhou com um andar de roçar os dois lábios vaginais um no outro, até a sala vizinha onde se velava outro defunto, também alheio a tudo, cercado de flores e gente amarelada, mas sem cachorro amigo que soubesse prantear. Em vez do cachorro havia uma criança correndo pelo salão. Um senhor se acercou dele e perguntou:
E sem esperar resposta, a senhora de azul noturno levantou-se da cadeira e caminhou com um andar de roçar os dois lábios vaginais um no outro, até a sala vizinha onde se velava outro defunto, também alheio a tudo, cercado de flores e gente amarelada, mas sem cachorro amigo que soubesse prantear. Em vez do cachorro havia uma criança correndo pelo salão. Um senhor se acercou dele e perguntou:
- Você
deve estar muito triste por ter perdido o papai, não é, pobre criança?
- Eu não
sou pobre. Vou ser muito rico. Minha mãe está presa por ter esquartejado meu
pai, que está irremediavelmente morto, olha só pra ele ali no caixão, e a
fortuna deles vai ser só minha. Minha mãe tinha uma amante que era igualzinha a
meu pai, porque discutiam muito. Um dia vou esquartejar ela. Olha ela lá...
E
apontou para uma senhora que entrava no salão do velório, toda vestida de azul
noturno desde o chapéu aos sapatos de veludo. O senhor olhou para a mulher,
bela, certamente sem sombra de dúvidas, e perguntou ao garotinho:
- Você a
odeia?
- Não
moço...Mas quando puder ainda farei sexo com ela. Deve ser muito gostosa.
Depois é que esquartejava. Quando se é de menor não se vai preso. É apreendido. Se eu demorar
muito, vou preso. E não conta nada do que eu te disse pra ninguém, senão solto
os meus cachorros lá da comunidade...
Mas isto é coisa do mundo atual. Evoluimos muito mas não sabemos nem para onde nem para quê.
O
velório do Homem (múltiplo)
A
professora de antropologia mostrou para a turma um velho esquema da evolução do
homem. Realmente os desenhos mostram um “homem” supostamente “macho” desde
quando caminhava em quatro patas até seu andar bípede em cujo trajeto muita
coisa mudou incluindo a perda de grande parte da pelagem. Hoje em dia, na vã
esperança de uma evolução mais rápida, homens e mulheres raspam todos os pelos
escondidos para parecerem mais “limpos”. Deve ser por estarem - supostamente, coisa de Freud - cercados de muita
sujeira de todos os tipos físicos e morais. A turma toda ao ver as imagens já
sabia que elas se referiam á espécie “homo” e não homem, incluindo homens e mulheres,
cujas diferenças físicas principais são apenas na genitália, nas mamas (são
mamíferos) e nos contornos do corpo. No restante são iguais. Nas diferenças no
“pensar” é apenas uma questão de educação tradicional, porque a moral muda a
cada era ou período geológico. Ao longo dessa evolução houve bilhões, trilhões
de velórios. Outros, a maioria, foram enterrados em cova rasa sem cruz nem
nome. Cruz é geometria recente. Nenhum dos mortos veio á luz reclamar de coisa
alguma do seu tempo. Mortos não falam. Políticos sabem muito bem disso.
Inteligência e esperteza são dois atributos animais muito diferentes. Os
ignorantes pensam que esperteza é inteligência, porque não conhecem a
inteligência em todo o seu esplendor. Os inteligentes, evidentemente, aceitam a
esperteza, mas lidam com ela como os gatos lidam com ratos: Primeiro brincam,
depois os comem. O que se muda hoje, e se mudou ontem, será mudado amanhã,
porque homens e mulheres vivem de moda para “experimentar” e muito pouco da
moda atual sobra para os tempos do futuro. Ao fazermos apologia da moda,
estamos descuidando do principal, que é a razão e a inteligência, e enquanto
nos preocupamos com a moda, vamos poluindo rios, oceanos, atmosfera,
preparando, então sem flores, o velório do “homo sapiens”. Os espertos não
sabem de onde surgiu o homo sapiens. Apenas sabem que existe e nem percebem que
já mudou. Somos o “homem inconseqüente” ou “homo temerarium”. Não somos
Sapiens... Só alguns!E se a vida fosse "perfeita" não seria necessária a evolução.
® Rui
Rodrigues
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