Sentimentos à flor do pelo.
Dizem que, olhando do alto
de uma pirâmide no Egito, Napoleão, um cara famoso por ter tido a idéia
molieresca [1]de
conquistar o mundo, teria dito: “Do alto destas pirâmides quarenta séculos vos
contemplam”. Há controvérsias, porém, devido á datação de uma estátua tão
famosa como as pirâmides: A esfinge! O que será a esfinge? Parece um leão com
cabeça humana, mas pode ser um gato ou uma gata, a julgar pela posição das
patas frontais, com cabeça humana, talvez por que os gatos pareçam tão humanos
em seus sentimentos. Cães, por mais que sejam simpáticos, agem como se fossem
treinados para agradar e têm uma memória a curto prazo completamente
deficiente. Não esquecem os donos, mas só se lembram deles quando estão em
contato. Gatos não. Só nos agradam se lhes agradamos e tornam-se fiéis e amigos
por opção enquanto os tratarmos bem. Nesta situação de agrados mútuos são
companheiros inseparáveis donos de uma inteligência incomum. Comunicam-se muito
bem, mas é necessário que “sejam decifrados”. Um olhar pode ser um aviso de
algo que nos pode prejudicar, um alerta para algo que esquecemos, como o fogão
aceso, por exemplo. A esfinge teria dito a Édipo: “Decifra-me ou devoro-te”.
Para uma esfinge leão isso seria admissível, mas para uma esfinge gato, seria
totalmente despropositado.
Uma visita ás tumbas e o que
vemos? A julgar pelos alimentos em vasos de argila acreditavam que haveria uma
vida após a morte. Vemos utensílios do dia a dia de acordo com a sua aptidão em
vida: Ferramentas, armas, tinta, roupas. Em tumbas de nobres podemos ver seus
escravos que os cuidaram em vida, mortos para que os acompanhassem nessa nova
vida. No início da civilização egípcia só os nobres eram embalsamados. Depois,
talvez pela necessidade de faturamento dos sacerdotes, passaram a embalsamar
qualquer um que tivesse dinheiro para isso, e quem podia embalsamava seus
animais de estimação. Há muitos gatos embalsamados. Poderíamos nos perguntar o
que é a vida realmente, e se mais um par de dias ou de meses em nossas vidas
faria qualquer diferença substancial, e até que ponto valeria a pena sacrificar
animais de estimação e escravos para nos acompanharem nessa grande viagem ao
além.
E como sabemos, não valeu de nada, se até os deuses que nunca existiram
de fato já estão definitivamente mortos. Haverá quem ainda adore Ísis e Hórus,
talvez mesmo Ptha, mas existia um deus (que nunca existiu) que tinha a forma de
uma gata: Bastet. Era uma deusa da fertilidade, protetora das mulheres. A
confusão entre leão e gato é tão grande, como no caso da Esfinge, que muitos
confundiam a deusa Bastet com Sekhmet, uma feroz deusa leoa incumbida por Rá de
provocar enormes castigos.
Quem tem gatos e os mantém
de forma amável, sincera, calma, “conversando” até com eles, ficará surpreso
quando os vir acompanhar seus companheiros (nós) para onde formos, olhar-nos
com aqueles olhos límpidos e calmos, e poderá entender seus diferentes miados.
Bem tratados não prescindem de nossa companhia. Aquecem-nos os pés na cama,
“pedem licença” com seus olhares e gestos antes de tomarem qualquer atitude, podem
ficar perto de algo que deixou cair até que você se dê conta e demonstre que o
que deixou cair não tem a mínima importância. Conhecem a casa toda, todos os
recantos, todos os objetos. Marcam-nos roçando o pescoço em suas esquinas. Se
tirar algo de lugar, lá está ela ou ele, para “cheirar” o objeto e memorizar
onde está. Estes felinos têm personalidade. Se você estiver triste, olham com
fixação como quem pergunta: - O que se passa? E de repente correm escadas acima
para brincar de esconde-esconde, pega-pega. Ou aparecem de repente, dão uma
leve patada em suas pernas e saem correndo pela casa para que sejam procurados.
A Sarkye, uma gata de três cores que me acompanha há doze anos atirava-lhe uma
pequena bola. Ela brincava até se cansar. Olhava-me, pegava a bola com a boca e
vinha trazê-la para que voltasse a jogá-la. Quando finalmente se cansava,
parava e saía de perto da bola. Bebe água da torneira da qual deixo cair um fio
constante. Quando acaba de beber olha-me para avisar que acabou e só então
salta da pia. Se ela quer sair de casa para se espreguiçar ao sol, fica na
porta parada, de costas para mim. Se demorar a abri-la emite um miado curto.
Abro-lhe a porta e sai. Sento-me para digitar no computador e lá vem ela, de
mansinho, toda cheia de dedos, suavemente, como quem me pergunta: - Onde me
deito? Podes arranjar-me um cantinho? E aninha-se com a cabeça em meus braços.
Se pelo contrário lhe digo: Agora não, Sarkye... Ela se afasta e aninha-se em
qualquer lugar livre onde ela caiba. Tem sua ração preferida. Se a misturo com
outra, escolhe pacientemente os pedaços da reação preferida e deixa a outra se
acumular.
Quem não tem cão caça como
gato, dizem, mas com a Sarkye não é assim. Qualquer movimento e ei-la de
orelhas a pino, o nariz levantado cheirando o ambiente, o olhar fixo no que se
movimenta. Já descobri outros gatos lá fora, pássaros, borboletas, lagartixas,
gambás, cachorros. Quando se trata de pessoas, mesmo fora do portão, na rua,
ela rosna. Rosna mesmo. Se vou ao banheiro e fecho a porta, vem correndo e mia
até que a porta lhe seja aberta. Então entra e fia ali, de costas para mim,
como quem me guarda e me avisará de qualquer perigo. Se me distraio, entra em
minhas calças ou short arriados e tenta se arrumar até que eu faça menção de me
movimentar para apanhar o papel higiênico. Mas o melhor de tudo é o assobio.
Ela vem quando assobio e me cheira o nariz, provavelmente procurando por um
passarinho fantasma que lhe escondo. Se ela gosta do assobio, porque nunca
assobio diferente, ela mia para me acompanhar.
Para mim, Sarkye é uma
“pessoa”. Se eu vivesse no antigo Egito não teria os conhecimentos que tenho
hoje, e dadas as circunstâncias, pediria para que a embalsamassem quando
partisse a caminho dos céus de Osíris e de Hórus. Seria uma atrocidade minha,
mas os costumes são de época de acordo com os conhecimentos adquiridos numa
civilização e há que isentar a falta de conhecimento. O que não se deve é
isentar a escravidão seja qual for a forma de escravizar. Não podemos – sob
pena de sermos condenados no tribunal de Osíris ou em qualquer outro – fingir
desconhecimento do que conhecemos de acordo com as conveniências. Está bem certo que Osíris era falso como deus
porque não existia de fato, mas nossa vida se constrói dia a dia numa
comunidade de amigos, conhecidos, nossa “identidade” se constrói pelos atos e
não por um título, uma carteira, uma impressão digital, um voto. Podemos
perdê-la num simples ato grave, ou numa série de pequenos atos. Reis e presidentes
deveriam perder os cargos quando perdem a identidade. Isso nós sabemos, temos
conhecimento. Por que não adotamos um voto para deseleger e sermos assim
democratas na verdadeira acepção da palavra?
® Rui Rodrigues
[1] Refiro-me a Moliére um grande
autor de peças teatrais. Napoleão perdeu tudo o que ocupou e que nunca
conquistou de fato. Provavelmente nem as mulheres. Ficou na história como um
general fracassado, baixinho, gordo, mulherengo para vencer seu complexo de
inferioridade. Perdeu a mãe de todas as batalhas em Waterloo e morreu
envenenado por papel de parede contendo chumbo, numa prisão. Umidade e chumbo o
mataram. A França diz que ele é um herói.
Não posso olhar para uma figura destas de mão no estômago para acariciar
uma úlcera atroz como uma figura heróica. Mas respeito o povo francês. Têm um
paladar maravilhoso.
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