As crônicas de Carlos Calunga[1].
Carlos Calunga é meu amigo negro, um dos
primeiros amigos que tive. Conheci-o em Portugal no bairro onde eu morava. Era
um negro diferente porque contrariamente aos outros que chegavam a Lisboa
fugidos das guerras coloniais, ele chegara do Brasil para estudar em Lisboa. Neto
de escravos fugitivos e libertos das minas de ouro do Brasil, mais precisamente
da Chapada dos Veadeiros, do Município de Cavalcante. Tinha um sotaque
engraçado, de um português ainda mais claro do que o falado em Lisboa, onde
sempre se “comem” algumas sílabas, com muitas síncopes e apócopes, mas o chiado
era o mesmo. As palavras de Calunga eram completas. Sua linguagem era muito
clara sem deixar dúvidas e tinha um jeito moleque de se expressar pondo à mostra
um espírito desinibido e independente mostrando sempre os alvos dentes de
perfeita dentadura. Era incrível como conseguia falar de modo sério entre
sorrisos. Separamo-nos em Portugal, em 1962, quando vim para o Brasil, coisa
insuspeitada até 1961, quando me preparava para partir para as guerras
coloniais, destino infalível de todos os portugueses jovens de 16 anos que não
tivessem padrinho nos altos escalões do governo. Quem tinha padrinho ficava
para a administração, os outros para a luta no terreno desconhecido. Não tive
mais notícias dele até que, por mais um empurrão da vida, voltei a Portugal de
onde saí a trabalho para Angola. Lá o encontrei também por acaso. Esta vida tem
coisas que parecem inexplicáveis. Eu queria ser oficial da marinha de guerra
com os meus 16 anos e ele médico. Agora eu era engenheiro e ele jornalista, que
cobria a guerra entre a UNITA e a MPLA, envolvendo cubanos, sul-africanos,
mercenários de vários países. Angola estava em guerra em 1990, quando nos encontramos por lá.
Em 1992 acabaram minhas viagens a Angola.
Não me acertei com um país comunista onde se distribuíam favores capitalistas como
se fosse moeda nacional e não o Kuanza. Containeres desapareciam. Empregados os
encontravam como que por acaso e contavam dinheiro em suas imediações, as
portas abertas, lacres rompidos. Como denunciar um bando sem saber o que se
passava e até que grau de comprometimento dos responsáveis pela empresa? Sim,
eu era o gerente geral, mas o sistema de “cunhas”, indicações, MPLA à mistura
com a UNITA, sem se saber quem era quem - e minha função não era a de detetive
– me induziram a sair do lamaçal, e balas costumavam passar zunindo por cima do
acampamento. Dias antes de sair de Angola, com meu pedido de demissão já nas
mãos do dono da empresa, o meu substituto veio até mim, junto com a esposa,
pedindo para que eu ficasse, e que eu ficaria muito rico. Entendi, peguei meu
avião e saí da zona de guerras. Não bastasse uma e eu teria que enfrentar
outras para as quais não havia mais disposição nem espírito de aventura.
Foi Carlos Calunga quem me ajudou a
abrir os olhos para as paisagens de Angola e do mundo, porque sempre
partilhamos de ideais básicos, coisas que nos vêm da alma, não só de informação
genética, como também da educação aprendida em família, nas escolas,
universidades, dos amigos, da vida que trilhamos.
Em seu tempo em Lisboa, viveu na Casa
dos Estudantes do Império (CEI), um nome pomposo dado por Salazar para um
prédio onde funcionava um tipo de República estudantil destinada a apoiar e a
controlar estudantes vindos das colônias e do Brasil. Ficava na Avenida Duque
D’Ávila, No 23, esquina com a Rua Dona Estefânia. Funcionou de 1944 a 1965 e
Salazar não conseguiu controlar nada, porque foi nesse edifício que se tomaram
medidas fundamentais para as lutas de independência das Colônias. Carlos
Calunga não agia ativamente nem comentava nada com os demais estudantes do Gil
Vicente. Um dia me disse:
- Portuga... Seu pai não está no Brasil?
- Está... Porquê?
- Diga-lhe para lhe mandar uma carta de
chamada, ou você vai entrar numa guerra estúpida e morrer à toa.
- De que guerra estás tu p´raí a falar?
Perguntei-lhe em meu linguajar típico.
- Olha... Sei que você é um cara legal,
e que não me vai trair, mas por estes dias vão estourar revoluções em todas as
colônias de Portugal. O seu país vai pegar fogo... Se manda meu chapa, enquanto
é tempo. E se você disser que eu disse, digo que é mentira.
Não lhe consegui arrancar mais nenhuma
informação, mas pelo caráter, sabia que estava falando a verdade. Quando
semanas depois vi as primeiras fotografias dos horrores cometidos por todos os
lados revoltosos e pelas forças portuguesas, de igual intensidade violando
completamente o tratado de Genebra, entendi perfeitamente que Calunga estava
certo. E meu pai começava a preparar a carta de chamada.
Carlos Calunga de vez em quando me manda
notícias e alguns textos para publicar, com a liberdade de que eu os altere sem
lhes alterar o sentido, acrescentando-lhes o meu “tempero”, mas os créditos são
todos dele. Afinal somos velhos amigos, e de certa forma, ele me salvou a vida.
Sem o aviso sobre as revoluções, a carta de chamada de meu pai chegaria apenas
quando eu já estivesse a bordo de um navio transporte para Angola, Moçambique
ou Guiné, com 17 anos, preparado para morrer por idéias de um tonto como era
Salazar, um velho teimoso, dono do poder e de todos os portugueses, figura
cultuada e enaltecida por propagandas fascistas, como se fosse um caudilho
sul-americano.
Quanto aos textos e crônicas,
publica-las-ei tão logo me seja possível.
© Rui Rodrigues
PS – Carlos Calunga me contou que
arranjou alguns inimigos durante a vida. Contra vontade, claro, e que por isso
não quer ser identificado. Sobre se o nome dele é verdadeiro ou falso, nem me
perguntem. Eu não diria nem sob juramento. De fotos só me permitiu uma de
quando participou de um almoço na casa dos Estudantes do Império (CEI) em
Lisboa, nos idos de 1956. Ele é o sujeito indicado pela seta.
[1] Calunga
ou Kalunga significa “tudo de bom” em dialeto banto (africano), e também
“necrópole”, ou linha do mundo dos mortos em dialeto Kikongo. Os bantos foram uma das maiores etnias que sofreram esclavagismo tribal em África
e colonial inglesas, francesas, americanas, holandesas e portuguesas.
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