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terça-feira, 3 de junho de 2014

Carta de Malabar a Simão Pescador - Via Ricardo Kohn

Carta de Malabar a Simão Pescador

Caro Ricardo Kohn, passo-te uma carta do “Malabar”, de nome de registro Afonso Candeias Pereira, que pescou muito com o Simão quando ainda eram uns putos imberbes. Costumavam ir à chocalhada em bons pesqueiros ali prós lados de Setúbal. Chamavam-lhe Malabar porque às vezes, quando lhe interessava, e muito queriam saber pescadores de outras bandas, os levava para pesqueiros vazios, ou onde já tinha pescado nos dias anteriores. Ele ficava desacreditado, passaram a chamar-lhe de Malabar [1], mas os seus chocos ficavam vivos, por lá, até que ele e Simão os fossem apanhar.


Mas eis a carta:

“Cabo Frio, 08 de junho de 2013

Meu grande amigo Simão.

Certamente não sabes nem onde eu estou.  Estou no Brasil a caminho de Espanha. Vou para as Astúrias. Vou pescar embarcado num pesqueiro, o “mar Nosso”, de bandeira portuguesa, e propriedade de um armador espanhol, galego. Não pescar propriamente dito. Vou como consultor, mas de vez em quando para matar a saudade, vou agarrar na cana e tirar uns peixitos. Escrevo-te porque vi que te correspondes com o Kohn aqui do Brasil. Disse-mo o meu filho que tem um frigorífico aqui em Cabo Frio. Tive que emigrar de Portugal – coisa que jamais me passaria pela cabeça – para vir pescar no Brasil, tão mal andam as finanças portuguesas, por culpa desses traidores socialistas que traíram os sonhos do 25 de abril quando fizemos aquela revolução cravejada.  Mas por infelicidade do destino, lá vou eu emigrar deste lugar para terras de Espanha, porque aqui também traíram as esperanças de o Brasil ser o país do futuro. Parece-me que o futuro do Brasil ficou tão distante, que agora passou a ser o Brasil do infortúnio do futuro-mais-que-presente. Sabes aqueles políticos socialistas portugueses que arrasaram as verbas da União Européia doadas a fundo perdido em benefício de amigos? Pois é... Aqui fizeram exatamente o mesmo e da mesma maneira, mas com os impostos públicos. 

No caso das pescas, por aqui criaram épocas de defeso, o que é muito bom para a recomposição de ardumes, mas começaram a pagar subsídios de pesca para meia dúzia de pescadores e para pescadores de subsídios. O resultado foi que muitos com pouca ou nenhuma família vivem bem com o subsídio e não pescam nada, porque além desse subsídio, ainda têm um tal de bolsa-família, um salário e meio se vão presos por bandidagem, as mulheres deles têm mais um salário auxílio, e se a filha for uma piranha, isto é, uma prostituta, ainda recebe mais um salário. Ou seja, ganham mais, os pescadores de subsídios do que trabalhadores, professores, e em alguns casos mais do que engenheiros e médicos. Uma secretária de um executivo, falando quatro línguas tem vergonha do salário miserável que recebe. Num país destes, eu tenho que pensar em emigrar.




Vão fazer uma Copa em 2014, mas a população está toda nas ruas, uns a quebrar e queimar autocarros [2], outros a quebrar comboios [3], outros a queimar pneus nas estradas por causa dos buracos nas estradas – que são uns caminhos abertos a trator no meio de lamaçais de terra encarnada –outros quebram montras de Bancos e destroem tudo que vêm pela frente. Na verdade não há governo por aqui e a explicação é muito simples: Um torneiro mecânico ignorante, eleito presidente pela ignorância nacional, pediu ajuda a antigos guerrilheiros e subverteram as leis incluindo a constituição. A base intelectual da esquerda saiu toda do partido e passou para o estado de observação. Vendo que não podia ser reeleito outra vez, indicou uma terrorista, fugitiva dos bancos de escola para seu lugar. Ela assaltava cadeiras de escola, bancos, fazia seqüestros relâmpago de embaixadores, matava e mandava matar nas ruas e selvas do Brasil. Uma mulher dessas não pode ser grande coisa e eu estou saindo deste presídio, onde nós população estamos reféns de bandidos atrás de grades que colocamos em portas e janelas de nossas casas. Como que podem ter a pretensão de sediar uma copa do mundo de futebol?   Só se for para roubar mais ainda, muito mais do que o mensalão que serviu para aprovar as alterações das leis de que te falei, uma forma de pagamento aos que votam essas coisas lá em Brasília.




Quando chegar por aí, nas próximas férias, conto-te as novidades.

Um grande abraço do teu amigo,
Calabar.

PS. – Prepara as brasas, a aguardente e os chocos, que eu levo as lagostas, umas garrafas de Rioja e um abraço. E outra coisa... lembras-te daqueles iscos que encontramos uma vez lá pros lados de Setúbal, quando estávamos a pescar chocos? Por aqui não os há, e, portanto, ninguém lhes sabe o nome. As sardinhas são maiores que as daí, e o arroz de tamboril daqui não deve nada ao daí com o açafrão daqui. (Não sei se o percebestes, mas tenho já um sotaque brasileiro e é com dor no coração que me mando daqui. Amo esta terrinha do caraças!) ”



Amigo Ricardo Kohn, fui eu que contei ao Malabar que tu conhecias o Simão. O Malabar, ele morreu numa pescaria lá nas Astúrias. O barco deles era de bandeira portuguesa, mas pertencia a um armador galego. Eram 12 tripulantes, sete eram portugueses. Morreram três portugueses e dois espanhóis que ficaram lá a 170 metros de profundidade. Uma tragédia a que os pescadores portugueses já estão habituados. Para os pescadores não é uma tragédia: É um trabalho perigoso. Para a família é uma tragédia, para a população basta um comentário: “Olha... Soubeste que morreram mais uns pescadores na faina da pesca lá nas Astúrias? O barco dos gajos afundou-se!” E no dia seguinte só se comenta se alguém leu o jornal com atraso e pergunta se alguém soube da novidade contando-a à queima-roupa. Mas não é nenhuma novidade. Todos sabem que não usam EPIs, aqueles trajes de segurança para o caso de caírem ao mar e não se afogarem. 


Como é que no caso do “Mar Nosso” morreram logo sete de uma vez se o barco não foi torpedeado? Mas isto são perguntas que não se fazem por total abstinência de pensar de duas nações inteiras: Portugal e Espanha, porque pensar por lá dá muito trabalho e pode gerar muita confusão como a perda de emprego de familiares. Por lá nunca se pode reclamar sob pena de perder o que se tem.
Com o meu abraço,

® Rui Rodrigues

e que raios ma partam se não há sempre um fundo de verdade em tudo que se mostra e se diz... e que por vezes o fundo da verdade é toda a essência da verdade que não pode nem ser vendida como em frascos de perfume. A minha seria embalada em Paris. Simão publica seus artigos através de Ricardo Kohn em  
http://ambiente.kohn.eco.br/2014/06/03/mais-um-circo-montado/  






[1] Malabar, uma referência ao piloto árabe “traíra” que orientou as naus de Vasco da Gama para lugares hostis, como consta nos Lusíadas de Luis Vaz de Camões.
[2] ônibus
[3] Trens

Um comentário:

  1. É deste Rui Malabar, amigo perene de Simão-pescador, que prezo ler-lhe as narrativas com esta, narrativa de verdadeiro circunavegador!

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Grato por seus comentários.