De uma
caixa a um baú, quem guardar lembranças suas e de seus ancestrais pode transportar
o tempo passado para o presente e para o futuro. Elas são a base de nossa
educação. Foi por isso que encontrei, vasculhando no sótão num dos baús que
guardo por lá, outro caderno [1]de
um ancestral meu, e resolvi contar uma passagem escrita por ele aos quinze anos
de idade, quando já não se é criança, mas ainda não se é “homem feito”. Aos
dezesseis, porém, já o era. Foi o modo de ser educado que o fez homem dando-lhe
responsabilidade. Seu modo de entender a lei, porém, gerou-lhe revolta. Seria
mais um a dar sua contribuição para mudar o mundo, este mundo em que vivemos e
que se corrige a cada instante através de nossas atitudes.
Creio ser
uma estória que muitos gostariam de ter vivido [2].
Este mundo é feito de estórias e histórias. E a propósito de histórias, de que
esta se reveste de fatos bem reais como a seguir será fácil de entender, tive
que trocar os nomes de algumas pessoas e do navio, para não arranhar uma parte
da integridade familiar. E o erro nem foi assim tão grave, mas lei é sempre lei
e deve ser cumprida igualmente por todos. Limito-me a “transcrever” o que
estava anotado no caderno, mas quem anotou foi o senhor Acácio que foi meu tio avô.
Isto foi lá pelos anos de 1909 a 1917, por aí...
O senhor Acácio
era bem visto pela classe da estiva do Porto do Rio de Janeiro em 1917 [3].
Ele era um dos chefes dos estivadores. Ainda que houvesse guindastes no Porto
muita carga era carregada nas costas de gente forte. Durante muitos anos ficou
pela cidade a fama do “prato de estivador”, aqueles pratos abarrotados de
comida, transbordantes. Era preciso comer bem para agüentar o trabalho. Eles
sempre reclamavam, mas no fundo ganhavam bem. Muitos tinham carro. Num daqueles
dias em que se sai de casa para relaxar, num sábado, o senhor Acácio foi até uma rua perto da Avenida Rio Branco, mas a chuva o apanhou ao chegar ao bar onde se encontraria
com alguns amigos. Eram brasileiros e portugueses, negros, brancos, italianos e
até um sujeito de Macau, lá da China, meio amarelo [4]
que também falava português. Comemoravam o aniversario de um deles. O destino
mais certo dos milhares de emigrantes que chegavam todos os anos ao Brasil eram
os portos.
A chuva caía
forte. Corria o mês de Maio de 1917, havia enchentes pela cidade, mas nada que
preocupasse muito. A Avenida Rio Branco era nova, prédios novos, carros novos. A
população vestia-se de ternos e de vestidos de bom gosto, quase sempre claros
no verão, escuros no inverno. A impressão que se tinha era que não havia
pobres. O país todo, imenso, não passava dos 24 milhões de habitantes. Faltava
“mão de obra” [5].
Trabalhava-se de gravata até nos açougues e mercearias. Na estiva não, mas
usavam calças, camisas de manga comprida e bonés ou chapéus. Não raro saiam do
cais arrumados para enfrentar uma gafieira. Os motores a gasolina, até os de
navios, estavam substituindo os movidos a vapor. Em 1914, em agosto, os EUA haviam
inaugurado o Canal do Panamá. Já em 1912 o Rio de Janeiro possuía 30.000
telefones enquanto São Paulo só possuía 22.000. Isto tudo o senhor Acácio
explicava para os seus quatro amigos e esposas. O senhor Acácio tinha o bom
hábito de se relacionar com seus subordinados, dizendo-lhes sempre e provando-lhes,
que lá no trabalho é uma coisa, porque o trabalho tem que ser feito a tempo e
horas, mas que depois do trabalho, haja o que houver, são todos amigos e que
não se fala de trabalho. O único lugar certo para falar de trabalho é lá mesmo,
no cais da Praça Mauá.
Qiang Wei como
seu nome indicava era forte e tinha boa estrutura física. Chegara ao Brasil
fugido da revolta dos boxers [6]
em 1900. A revolta começara em Agosto de 1898 e Qiang já em dezembro desse
mesmo ano saíra de Macau para o Brasil temendo que a revolta se alastrasse. Sua
família não era abastada. Seu pai era o motorista de uma família de origem
portuguesa, essa sim era rica. Como todos na família gostavam do pequeno Qiang,
pagaram-lhe a passagem para o Brasil e ainda lhe deram uns trocados que foram
suficientes para sobreviver no Brasil nos primeiros meses enquanto procurava
trabalho. O pequeno Qiang crescera junto com os filhos da família abastada. Era
como filho. Sebastião Afonso era negro de Minas Gerais. Descendente de
escravos. Fizera uma grande amizade com Qiang Wei e, certamente, com o senhor
Acácio. Primeiro vieram os méritos no trabalho, depois a amizade. Severino
Dantas era pernambucano. Tinha chegado á estiva há pouco tempo, mas se
entrosara bem ao grupo. Esperavam ainda a chegada de mais amigos, mas a chuva
que apertava cada vez mais provavelmente dificultaria, se é que não impediria,
a sua chegada. O senhor Acácio, e só ele sabia então, seria promovido em breve
para um cargo mais importante. Por isso, quando Severino mais uma vez lhe
perguntou sobre sua vida, como chegara até ao Brasil, resolveu-se a contar de
forma superficial.
A vida dele, que
até esse dia tinha sido uma incógnita, deixaria de sê-lo.
As esposas
destes homens estavam numa mesa separada, bem ao lado da deles. Tinham
conversas distintas das dos homens, assuntos diferentes, mas quando ouviram o
senhor Acácio dizer que contaria sua estória, pediram ao garçom que lhes
chegasse a mesa ainda mais. Acomodaram-se e esticaram os pescoços na direção do
senhor Acácio. Acharam que mesmo assim ainda estavam longe. Então pegaram suas
cadeiras e cada uma se sentou ao lado de seu marido. Elas também gostavam dele.
- Que idade
tinha quando veio para cá, senhor Acácio? – perguntou Laura a esposa de Qiang.
O senhor Acácio respondeu pousando o copo de cerveja, os bigodes ainda com um
leve traço de espuma branca.
- Tinha 15
anos quando saí de Lisboa, mas 17 quando desembarquei aqui. Em 1908, em
fevereiro, Portugal começou a ficar confuso. Assassinaram o rei D. Carlos I e o
filho mais velho, o príncipe D. Luis. A situação política ficou complicada
mesmo com a subida ao trono do Rei D. Manuel II o filho mais novo de D. Carlos
I que se cercou de gente incompetente em seu governo. Eu tinha 14 anos. Somou-se
a isso a crise dos Boxers. Portugal também mandou tropas para a China. Em 1909
houve um grande terremoto que arrasou algumas cidades. A mais afetada foi
Benavente. A economia ia muito mal, faltava dinheiro. Um dia esgueirei-me no
navio “Eisenach” da companhia alemã Norddenstcher Lloyd que fazia a linha
Bordeaux –Lisboa – Rio de Janeiro – Santos -Montevidéu -B. Aires. O navio tinha
sido recentemente lançado á água e a tripulação não era experiente. Escondi-me numa
chalupa [7]
que faria o abastecimento do Eisenach pela escada do Portaló a estibordo, que
não era tão controlada como a de acesso de passageiros na beira do cais a
bombordo. Passei por entregador e não saí do navio.
- E seus pais?
Não os avisou de sua partida? –Perguntou com voz triste a senhora Dantas com
seu sotaque simpático do Nordeste.
- Oh sim...
Eles me incentivaram. Eram republicanos. No ano seguinte á minha fuga, em 1910,
o povo fez uma revolução e instituiu a república, e exilaram o Rei que não
servia para nada. A revolução durou apenas três dias. Quem assistiu a tudo foi
o presidente brasileiro Hermes da Fonseca que estava em viagem de visita a
bordo do encouraçado São Paulo.
- E como se
manteve escondido a bordo esse tempo todo? Não o devolveram a terra? –
Perguntou a senhora do Sebastião Afonso.
- Eu me
apresentei ao comandante no segundo dia, morto de fome. Tinha estado escondido
num escaler [8]
. Contei-lhe a minha história. Ele então me contratou como grumete até a viagem
de volta, mas viajei com ele até me tornar seu imediato. Em 1914, em Agosto,
fomos dos primeiros a passar pelo Canal do Panamá, numa viagem que fizemos em
extensão de rota ao Chile.
- Acácio... O
que carregavam nos porões do navio? Perguntou o Sebastião Afonso.
- Carregávamos
armas para o Chile. Essas armas em caixotes ficariam esperando por outros
navios alemães que as carregariam no porto de Valparaíso. Não sei para onde as
levariam. Por isso invertemos a rota que deveria passar primeiro por portos
brasileiros – mas fomos desaconselhados a passar com as armas por lá - depois
ir ao Uruguai e depois á Argentina. Foi uma confusão... Indo pelo canal,
paramos primeiro na Argentina, depois no Uruguai e chegamos muito atrasados ao
porto de Santos. Os passageiros reclamaram, mas demos desculpas, informando que
nos desviávamos de submarinos alemães. Quando chegamos a Recife, apreenderam o
navio. Tínhamos carregado salitre puro,
com destino á Alemanha, para fazer pólvora, mas as autoridades brasileiras o
confiscaram para adubo. O Eisenach foi incorporado ao Lloyd.
- E é muito
lindo o Chile, senhor Acácio? Perguntou a senhora Afonso.
- Mar,
gaivotas, salitre, cobre, mariscos, vinhos, frutas, peixes, casario
predominante de madeira, não vi negros por lá, mas vi muitos descendentes de
índios e brancos. São mais ou menos como os argentinos e uruguaios. Por lá não
há negros, e no fundo pensam que são uns pedaços da Europa implantados na
América do Sul.
- Mas porque
não têm negros por lá? Perguntou a senhora Afonso, dona de uma linda beleza
negra.
- Não levaram
escravos para o Chile. Na verdade não precisavam. É uma impressão minha. A população
é muito reduzida, nem chega a cinco milhões de habitantes, onde todos querem
ser donos de seu próprio negócio. São descendentes de emigrantes europeus, e
desde pescadores a comerciantes, industriários, todos são suficientes para
fazerem o trabalho. Grandes empresas são estrangeiras, a maior parte da
população de raiz européia está na marinha, no exército, e na administração
pública.
- E como veio
parar no Rio de Janeiro? –Perguntou o senhor Qiang.
- Queriam me
repatriar. Então peguei minha trouxa, lá em Recife, e me engajei na tripulação
de um navio que viajava para o Rio de Janeiro. Aqui entrei em contato com
pessoal ligado á embaixada e consegui me legalizar. Comecei a trabalhar no cais
do Porto como carregador. Dizem por aí que existe uma árvore das patacas, que,
em se abanando, cai dinheiro... Ainda não a vi, mas em se trabalhando, vive-se
bem. E estava em marcha uma imensa greve geral. Note-se pelas roupas dos grevistas - do movimento operário de 1917 - como deveria ser o padrão de vida de então.
Fizeram um
brinde. A noite já estava chegando, ainda teriam o domingo para descansar,
curtir as crianças nas vilas em que viviam em São Cristóvão. Havia sempre
festas de aniversário. Nesses dias dançava-se na vila, depois que se retiravam
as mesas onde era servida comida que o dono da festa pagava sem “rachar” com
ninguém. Em qualquer sistema político o que conta na população é o desejo de
“progredir”. Trabalha-se duro para isso.Por aqueles dias de 1917, a primeira
guerra mundial estava terminando, mas ninguém ainda sabia. Terminaria no ano
seguinte. Os sindicatos, a exemplo dos congêneres americanos, adquiriam força.
Lá, nos EUA a força era da máfia. Por aqui era política. Foi então que os
rumores se confirmaram quando a notícia
apareceu nos jornais. A Rússia fizera uma revolução comunista e tinham prendido
a família do czar. Nascia a URSS que terminaria seus dias pouco tempo depois da
queda do muro de Berlim. O comunismo ideológico terminou em poucos anos em
todas as nações que se diziam comunistas. O comunismo passou a ser uma cenoura
vermelha de esperança que se põe em frente aos olhos de asnos para que
continuem “trostkiando” e empurrando a carroça dos políticos. Agora querem
apenas “passar bem” com o trabalho do povo. Não entendem nada de economia.Naquela época nenhum dos amigos estivadores sabia para onde o mundo iria. Nós também não sabemos para onde vai...
O Eisenach
servira também á marinha portuguesa sob o nome de “Santarén”, uma forma
afrancesada por estar a serviço da companhia francesa “Compagnie Générale
Transatlantique”. Esta embarcação, o Eisenach, é um livro de histórias e serviu também á
marinha italiana.
A estória
de Acácio não tem enredo nem é verdadeira em todos os aspectos contados. É
apenas uma estória como se fosse uma foto de uma década em que muitas coisas aconteceram no mundo. É o que aparece aqui no “Bar do Chopp Grátis”, tal como nos
contam. Mas duvido que exista povo mais misógino do que o português.Convive bem
com todos os povos do planeta.
® Rui Rodrigues
[1] Já tinha encontrado outro
caderno, de outro ancestral que tinha vivido nos EUA em 1860, e tinha um saloon
na Califórnia. Ele conheceu Johnny “Crisp” Lend. Se desejar ler, veja no
link, http://bardochoppgratis.blogspot.com.br/2015/09/o-caderno-do-senhor-kent.html
[2] Não havia televisão, nem
celulares, nem Internet, nem radares, nem fast-food.
[3] A construção do novo Porto
do Rio de Janeiro na Praça Mauá foi concluída em 1910.
[4] A escravidão era uma
“mentalidade” proveniente do atraso moral da humanidade, assim como hoje se
escraviza com juros anuais de 400% quem deve a Bancos. Também se prefere o funk
a outras músicas, as roupas não são as mesmas, O mundo muda e com ele as
“modas”. Quase o mundo inteiro já foi um dia socialista e comunista. Já não é! Macau
na época era uma possessão portuguesa ao lado de Hong-Kong na China. O
colonialismo também se acabou na moda das “filosofias”.
[5] Hoje somos mais de 200
milhões e não conseguimos crescer o suficiente para mantermos o mesmo padrão de
vida do tempo da “árvore das patacas”.
Nosso “crescimento” perdeu-se em corrupção no bolso de “boas-vidas”
doidivanas que assumiram cara teatral de “políticos sérios” e fizeram fortunas
pessoais.
[6] Revolta originada na
pobreza rural chinesa levada a cabo por gente experimentada em artes marciais
que acreditavam ser imunes a balas. Eles lutavam sem armas de fogo. Em Beigin
cercaram embaixadas e mataram ocidentais. Uma força internacional formada por
quase todos os países europeus incluindo a Rússia e o Japão pôs fim á revolta
depois de centenas de milhares de mortes.
[7] Embarcação de pequeno
porte a remos ou á vela.
[8] Bote salva-vidas.