Há momentos de clarividência que nos chocam. Um dia disse a meu pai que tinha ideias novas, inovadoras, mas que de um dia para o outro, sumiam. Aconselhou-me a fazer exercícios mentais para tentar "fixar" na memória, e se realmente "importantes", anotar em blocos pequenos de papel, desses de bolso. Ainda hoje uso essa extensão de meu cérebro, e meu pai já morreu há muito tempo. Um dia olhei para ele e vi que éramos dois homens. Eu estava formado, sai de casa para não explorar meu pai. Foi então que ele começou a tirar férias todos os anos. Viveu assim mais 30 anos. Estou chegando na idade em que ele se foi. Na minha idade os anos passam como passos no corredor de uma catedral gótica a caminho do altar dos sacrifícios. Porque uns nascem ibéricos, outros nórdicos, russos, índios, hindus... Não há escolha alguma, mas muitos dos indivíduos pensam que sim e pensam que essa ascendência, procedência, descendência, é a causa das diferenças, mas não é. Somos diferentes porque a natureza não se programou para que todos fossemos iguais, embora se programasse para que nos identificássemos como "iguais", ou semelhantes. Nossas diferenças se acentuam com a língua, com a "formação" religiosa, com a letra do hino nacional, com o grau de educação e o nível de cultura, com mais ou menos fome na infância, a assiduidade e intensidade de amor... E com as companhias e amizades que escolhemos. A cada minuto de vida nos tornamos deferentes do individuo que éramos no minuto anterior. Uns diferem muito, outros pouco, alguns quase nada, mas não temos como aferir essas mudanças, ainda. Quem convive diariamente com outrem pode notar-lhe mudanças ou não, dependendo do quanto esse outrem muda, e de sua própria capacidade de percepção.
O corredor de catedral é uma máquina do tempo que quase não se move na nossa infância e adolescência porque não podemos percorrê-lo como queremos, que na juventude se percorre mais depressa porque dominamos nossa vida, e que cada vez mais lentamente vamos percorrendo até pararmos em definitivo no final da senilidade. No começo de nossa vida, todos os bancos da catedral estão cheios de gente, a maioria está sorridente, conversam conosco. Uma ou outra pessoa veste de negro, o olhar é sombrio e feroz. Em outra boa parte o rito do rosto denota a indiferença mesmo que sem desdém. A catedral não é segura para qualquer um. Muitos tombam pelo caminho. Nos últimos dias os bancos estão praticamente vazios a menos que esperem herança, um reconhecimento, ou queiram ter o prazer de nos dizer como ultimas palavras de conforto, palavras negras de fel de quem nos odiou gratuitamente, ou com razão, durante todo o percurso no corredor da catedral. Mas há os cristais formando desenhos coloridos por onde se filtra a luz e que a iluminam. São os vitrais da alma que se veem do lado de fora e atraem ou afastam os fiéis. Os fiéis sentem-se atraídos por todas as virtudes e por todos os defeitos que expressamos nos vitrais. A porta e o altar. O começo e o fim. Não há sacerdote na porta nem no fim, sacerdotes têm seus próprios corredores, fazem seus próprios vitrais, são gente cinza, ou sorridente, indiferente, em outras catedrais de outras gentes em cujos bancos se sentam por maior ou menor período de tempo, e isso em, nada conta para a porta ou o altar, que são únicas para cada um de nós. As portas, os altares, as pessoas. Uma indiferente para um pode ser amorosa para outro. Ser indiferente ou morder com beijos pelas costas. A catedral não serve apenas fiéis. De vez em quando aparece quem se sente nos bancos para usufruir da sombra, escutar o órgão com lindas canções, sentir calor humano de dizer "Amém" em conjunto, assim como se fazendo sentir parte de uma comunidade, e muitas nem cantam. Escutam embevecidas e nem nos veem passar pelo corredor. Uns nos quebram os cristais dos vitrais, e até nos destroem a catedral. Cuidado com esses que todos os dias se levantam do seu banco e sentam em outros, sempre na frente, contando o que querem, mesmo inverdades, e vão esvaziando os bancos no futuro. Sim, há um sino que badala com o vento e velas que se apagam pelo mesmo motivo. São avisos. Fiquemos atentos e não os desprezemos. Em pontos estratégicos há capelas. As capelas são para se colocarem santos. Cada um coloca os deuses e santos que quiser, mas se imagens são estátuas, nada há para se colocar, como podem estátuas serem deuses, que se a cada novo deus que surge muda o que o anterior fez e disse, o que seria da consistência e credibilidade da verdade a ser mutável? Nunca, nunca, absolutamente nunca escutamos a ultima homenagem a menos que sejamos enterrados vivos. Mas que homenagem? Acaso não ouvimos e vemos as ultimas homenagens dos outros que ficam pelos corredores de suas catedrais? Que esperança de termos uma diferente, sem quebra de vitrais... Não é do pó que viemos, nem a ele que deveremos retornar. É ainda mais anulador. É dos átomos que viemos e aos quais nos deveremos decompor. Alguém comerá uma hortaliça no futuro, que conterá átomos nossos e que venham a fazer parte de cromossomos que se reproduzam, originando novos seres. Somos unidades recicladas de reciclagem.
Agora cantem os salmos enquanto caminham pelo corredor! Se quiser tapete vermelho, lâmpadas em vez de velas, compre os seus, venda-os antes do final do corredor, perto do altar, que é onde os átomos se anulam esperando a reciclagem. Não há fila! De meu pai herdei muito mais que os átomos reciclados que reciclou em minha mãe.
Rui Rodrigues