Manitu e Alce Pensativo
(Certo dia na América do Norte, há muitas luas)
È nos momentos mais difíceis
da vida das sociedades que as soluções mais inusitadas aparecem. Não são
exatamente soluções, mas dão esperanças por algum tempo, acalmando a sociedade,
e quando os problemas insolúveis voltam, já se tem a quem pedir ajuda: Aos
longínquos, mudos, surdos e cegos deuses que vivem no além, por detrás de todas
as coisas, onde não se podem ver, escutar e de onde não vem som nem eco. Mas
uma coisa é certa: Quem fez a paisagem que se vê e que não se vê, entendia
muito de mecânica celeste e de engenharia genética. “Por acaso” dá-se ao
resultado de uma pequena quantidade de variantes, como o resultado de uma
loteria, mas jamais para tantas quantas as leis da natureza e da vida.
Muitas luas atrás, quase uma infinidade delas, Alce Pensativo, da tribo dos Sioux andava preocupado como sempre. A tribo lhe dera esse nome porque meditava muito, andava quase sempre apático, meio que rejeitado pela tribo, onde apenas homens fortes tinham valor e eram desejados pelas mulheres. No entanto o respeitavam porque tinha idéias sobre algo mais poderoso que poderia atemorizar a tribo e dominá-la, dando-lhe uma unidade, protegendo-a, e não permitindo que apenas um chefe ditasse as ordens e as leis:
Pensava sempre no chefe da
tribo, Urso Feroz, que mandava e desmandava em tudo, em todos os aspectos
daquela sociedade de pouco mais de mil indivíduos. A tradição Sioux era que
apenas um chefe mandava neles. Nenhuma tribo tinha dois chefes. À noite, por
vezes, reunia em sua tenda os mais fortes guerreiros para decidirem sobre
castigos a dar a algum indivíduo que havia transgredido as suas leis. Nessa
hora, puxava de um cachimbo, enchia-o de tabaco, prendia-lhe fogo com a brasa
que sempre ficava acesa para garantir o fogo da tribo, e dava enormes baforadas
em silêncio. Só ele fumava o cachimbo e só alguém falava depois que ele
começasse a falar. Urso Feroz não era admirado: Era temido. Na verdade, o que Alce Pensativo desejava era
que Urso Feroz sumisse da paisagem. Mas não sabia como, porque ele tinha todos
os fortes guerreiros de seu lado.
Naquela noite decidia-se a sorte do irmão de Alce Pensativo, Rato da Pradaria, que abusara sexualmente de uma mulher da tribo, linda, família de um nobre guerreiro adulado por Urso feroz. Uns diziam que a moça, Flor da Pradaria, olhava languidamente para o réu e de certa forma o incitara ao abuso. Outros diziam que não, que ela era apenas simpática e ria-se para todos os homens da tribo. Seja como tenha sido, nessa noite Rato da Pradaria seria muito provavelmente condenado a ser enterrado na areia, com a cabeça para fora, esperando os corvos lhe virem comer os olhos, logo depois que sua cabeça se abatesse de sede sobre a areia quente, os lábios estalados pelo sol, a pele vermelha e cheia de bolhas. Era uma morte horrível, e quem não morria ficava para exemplo. Alce Pensativo providenciaria para que, pelo menos uma vez na história da tribo, se fizesse justiça contra um chefe que ele e outros na tribo julgavam injusto. A oportunidade apareceu antes do esperado. Foi nesse instante que um dos guerreiros saiu da tenda, e disse aos que esperavam do lado de fora pelo resultado do julgamento:
Alce Pensativo foi o
primeiro a responder:
- Eu tenho uma reserva de
folhas secando, à espera, para oferecer ao grande chefe Urso Feroz. Vou buscar.
Saiu correndo, foi até sua
tenda, pegou as folhas de tabaco quase secas e misturou-as a outras folhas também
secas de uma planta conhecida como trombeta ou figueira-do-diabo [1] e
as levou para a entrada da tenda. Ao guerreiro que as recebeu, disse-lhe:
- Vou rezar ao deus da
natureza para que se faça justiça. Meu irmão é inocente. Deus falará hoje a
toda a tribo provando que isto é verdade.
- E como esse deus que nunca
vimos, de que você fala, poderia afetar a decisão de nosso chefe? – perguntou o
guerreiro.
- Vai...Depois explico.
Primeiro o grande chefe deve ser atendido com o tabaco, o mais puro da planície
que cultivamos junto aos montes.
Na tenda, o grande chefe sem dizer nada, cheirou o tabaco. Era de primeira. Mordeu um pouco de uma folha e sentiu-lhe o sabor apimentado. Amassou o restante das folhas com as mãos e foi-as introduzindo em seu cachimbo. Depois pegou a brasa e acendeu-o. Nesse instante ouviu-se do lado de fora uma cantilena gutural, de som ondulante, dizendo Manitu. O chefe perguntou o que era aquilo. Um dos guerreiros disse que era Alce Pensativo. Ele achava que o irmão era inocente e estava rezando a um tal de deus da pradaria, Manitu, que faria sua justiça no caso. O chefe encolheu os ombros e deu suas baforadas, longas, retendo o fumo nos pulmões até quase não poder respirar. Então foi ficando relaxado, suas pupilas se abriram, seus olhos ficaram vermelhos e iniciou o conselho, sob os sons externos de Alce Pensativo entoando seu mantra “Manitu”. Então gritou extasiado, os olhos esbugalhados, levantando as mãos para os céus:
- O que o guerreiro Rato da
Pradaria fez foi inaceitável, contra as regras da nossa nação sioux. Deve ser
enterrado até que os corvos lhe comam os olhos!
Em seguida, num rompante,
foi como se tivesse levado um soco no estômago. Levantou-se, tirou a roupa,
pulava feito doido, até que, exausto caiu para nunca mais se levantar. O chefe
estava morto. Quando os guerreiros saíram para dar a triste notícia, segurando
o chefe com os braços, mantendo-o no ar, depararam-se com Alce Pensativo, ainda
ajoelhado, que interrompeu seu mantra. Apenas disse:
- As leis quem faz é Manitu.
Hoje se fez justiça. Aprendam com isso. Não é só a força do chefe que manda na
grande nação Sioux. É preciso alguém mais que decida em conjunto com o chefe.
Levaram Urso Feroz para o meio da pradaria, para o alto de uma pequena colina e pela primeira vez levantaram estacas sobre as quais esticaram peles unidas de bisão para que o corpo pudesse ficar estendido contemplando o céu e a paisagem, a paisagem de Manitu. Seria comido pelos abutres, seus olhos pelos corvos mais ágeis que chegariam primeiro, reciclando a natureza, mas enquanto seu espírito não desaparecesse, teria tempo de aprender sobre seus atos, manteria a aldeia atenta em torno de sua ainda existência, que faria exatamente o mesmo.
Na noite seguinte os
guerreiros se reuniram em conselho. Pela primeira vez convidaram Alce Pensativo
que também, pela primeira vez, ofereceu o cachimbo a todos os guerreiros
começando pelos menos importantes da tribo, os que tinham menos penas em seus
cocares, selecionando-os por tipos de pena. Penas de águia eram os mais fortes.
Se de coruja, os mais fracos. Declinou o convite para se tornar o chefe da
tribo alegando que não era suficientemente forte, mas que aceitaria uma nova
posição que dividiria o poder do chefe: O de conselheiro espiritual, sob a
inspiração de Manitu, o deus da nação Sioux.
Rato da Pradaria foi
enterrado vivo. O conselho reiterara a sentença de Urso Feroz, dando como
inadmissível o seu comportamento.
E assim foi, como de forma
diferente também foi em muitos outros lugares da Terra, o planeta onde se “fabricam
deuses” [2] que
parecem “justos”, por inspiração divina.
Rui Rodrigues
[1] “A erva do diabo” - Datura stramonium - Segundo Carlos Castañeda, a "cabeça" mais forte é a das folhas, que podem matar. As outras três são a raíz, o caule e as sementes.
[2] Parece certo que o Universo não pode ter sido
construído nem aparecido por puro acaso. Nem há apenas um universo. Então um
Deus o terá construído ou dado inicio a sua formação. Mas são tantos os deuses,
e as suas características, que não pode um Deus único ter tantos perfis
diferentes em nosso planeta. Ou todas as religiões estão equivocadas, ou todas
elas não têm uma visão perfeita do que é ser DEUS!...