Florbela e o milharal.
(Na foto, quadro de Henrique Pinto –Entre o milharal)
Numa aldeia do Norte de
Portugal o povo, contado pelos dedos em centenas não ocupariam todos os dedos de uma só mão. Viviam em paz na sua terra. Aquela terra era
a “sua” terra, de mais ninguém, e mesmo assim, apesar da união, entre eles se cobiçavam terras,
mulheres, fontes de água, casas, e em certos olhares ou comentários menos
discretos, era evidente que se cobiçavam até as roupas, os móveis. Principalmente a sua
proximidade com o Senhor Vigário, que tinha na aldeia a sua casa, alimentado
fartamente com gordas esmolas das beatas, sempre na esperança de que, amigas do
Senhor Vigário, ele que perdoava pecados poderia interceder ao senhor, por elas, para lhes
arranjar um casamento, livrá-las ou a familiares e amigos de um mal,
fazer com que os namorados ou maridos voltassem a interessar-se por elas, ou
deixassem de deitar olhinhos para as outras moças da aldeia, que lá ninguém era
parvo ou idiota e esses olhares sempre davam nas vistas, por maior precaução que os maridos ou namorados
tivessem.
Florbela não era daquelas que lavavam e passavam as roupas do Senhor Vigário, que os tempos obrigaram a chamar de Senhor Padre, e as toalhas dos altares e da sacristia. Florbela era ainda muito nova para isso, e só tinha 17 anos. Dezessete belos anos, ainda dependente dos pais para tudo menos para perceber os olhares que os rapazes da aldeia lhe lançavam aos seios fartos, às coxas fortes e arredondadas, às pernas com leves e discretos cabelos louros, o rosto corado de saúde e do sol. Sobre sexo os pais não lhe tinham ensinado nada. Diziam que ainda era muito nova para entender dessas coisas e quando chegasse a altura, ela mesma iria descobrir. No entanto sempre lhe tolhiam os passos para ir a algum lugar onde a convivência com os rapazes da aldeia fosse até mais tarde, os passeios acompanhada por eles, e de festas só acompanhada dos pais, que lhe guardavam a virgindade como quem guarda o dinheiro que deve ser amealhado.
Florbela gostava de ir ao
rio acompanhar as mulheres que ainda lavavam roupa por lá, entre sons de canções
cantadas em coro e sons de água correndo em cascata entre as pedras. Algumas
diziam que jamais teriam uma máquina de lavar porque no rio a roupa corava
melhor com a luz do sol. Além disso,
gastavam menos água encanada que era cara, menos energia elétrica, e sempre aproveitavam a ida ao rio para espairecer. Florbela ouviu muito dessas explicações que
faziam todo o sentido. Na aldeia todos
reclamavam do custo da água e da energia elétrica. De vez em quando, enquanto lavavm as roupas alguma se
afastava e caminhava para longe por entre o milho alto que lhes passava em muito
a altura. Quando voltavam traziam um olhar entre radiante e comprometido, por
mais que tentassem disfarçar. Quando entendeu o que algumas das mulheres iam fazer entre
o milho, já Rodrigo lhe andava fazendo uns convites para saírem durante a
sesta, pelo calor do sol, para passearem, mas por causa das más línguas, melhor
seria que ela fosse passear a sua cabrinha, como desculpa, e ele a encontraria
na estrada combinada.
Florbela foi surpreendida a
meio do caminho. Era a voz de Rodrigo:
- Florbela, continua andando
naturalmente e depois volta para casa. Estão te seguindo... Não olhes para
cá... Depois de amanhã no mesmo horário.
Florbela entendeu. Era assim
naquela terra. Quando menos se esperava havia sempre alguém que entre as
parreiras ou pela mata aparecia de repente sem ser notado. Terra de gente
desconfiada, cuja maior diversão era “saber o que se passava”. Isso vinha do
tempo em que os senhores abades usavam a confissão para intimar pessoas da
terra para fazer declarações no santo ofício. Pela confissão, as alcoviteiras e
os alcoviteiros denunciavam quem escolhiam para ser julgado como herege e
perder as terras para a igreja ou o estado que depois as “doava” a quem batia
com a mão no peito, fazia o sinal da cruz, comparecia às missas de domingo e
doava gordas verbas para o senhor abade, dono daquelas terras. Coisas da
inquisição a que chamavam de santo ofício, ou santa inquisição. Ficara-lhes o
costume de “espreitar” os outros, seguir os outros, tentando desvendar-lhes a
vida particular, coisas que contavam ao senhor prior, ao senhor vigário, e
agora, por força de perda de poder pela igreja, ao senhor padre. Progrediram
muito quando começaram a perceber que alguns padres gostavam mais de crianças
do que deviam gostar e até os expulsaram, mas os afazeres das beatas, a
confissão, a alcovitice, essas estavam impregnadas nas tradições da aldeia. Havia
famílias, cujas terras tinham sido doadas pelo Santo Ofício que nunca quiseram
saber das verdades históricas. Para essas, a história era a Igreja, exceto
pelos feitos de valentia dos cruzados quando invadiram a Terra a que chamavam
de Santa.
Quando Rodrigo e Florbela se
encontraram pela segunda vez, ninguém a seguiu. Passaram mais de hora
descobrindo-se os sexos, afagando-se, beijando-se desesperadamente, como se naquele
dia se acabasse o mundo, os dedos percorrendo todo o corpo. Quando Florbela lhe
viu o prepúcio, admirou-se e gemeu dizendo que lhe iria doer. Rodrigo
tranqüilizou-a. Juraram-se juras de amor eterno, fidelidade eterna, e quando
Rodrigo a penetrou, já lhe corriam, pelas pernas de Florbela, aqueles líquidos
a que se habituara quando em isolamento tranqüilo em seu quarto pensava em
Rodrigo e se tocava, e antes dele num outro que esqueceu fácilmente quando pela primeira viu
esse que agora se apoderava de seu corpo e a fazia sentir-se feliz como jamais
se sentira. Não doera mais do que um beliscão, mas o prazer compensava tudo.
Queria mais, e mais e mais. E Rodrigo deu-lhe mais e mais.
- E se engravido?
Perguntou-lhe.
- Eu caso contigo. Não te
preocupes. Amo-te muito, muito, muito. Jamais nos separaremos.
Quando chegou em casa,
esbaforida – correra muito para disfarçar a ansiedade – desculpou-se pelo
atraso: A cabra tinha fugido e ela tivera que correr. Jantou pensando no
próximo encontro e sentiu-se feliz por ninguém ter percebido que agora já não
era a menina Florbela, mas uma mulher satisfeita que acabara de descobrir o que
era o verdadeiro amor. Seu coração ainda batia descompassado. Seu peito ainda
arfava, mas não era de ter corrido atrás da cabra.
No domingo foi à missa.
Aprenda a disfarçar o que sentia desde o primeiro dia em que lhe vieram as
regras, os fluxos, aos treze anos, e desde então se divertia toda a vez que
aprontava algo que só ela sabia e os outros não percebiam. Quando se ajoelhou
para receber a hóstia, depois de mais uma confissão sem pecados, olhou os olhos
do padre que como sempre, lhe serviu a hóstia. Nem o padre sabia de nada.
Ninguém na aldeia sabia ou iria saber. Não contaria para ninguém para não
correr o risco de a denunciarem, ainda que “sem querer”, desculpas a que já
estava habituada a ouvir de gente que realmente “queria”. E, além disso, a
religião era uma espécie de faz de conta, para dar uma impressão de santidade e
de compartilhar sentimentos com os demais da aldeia, que assim se julgavam mais
unidos, exceto quando as desavenças grassavam pela vila, as famílias divididas
e era preciso o senhor cura, vigário, abade, e agora padre agir como se fosse
um intermediário da justiça para por ordem na aldeia. A aldeia nem tinha
policiamento ostensivo. Quando mesmo o padre não resolvia as questões, lá iam
as famílias para a sede do concelho a resolver as suas dissidências com o
meirinho.
Aos poucos os encontros
foram ficando mais escassos. Rodrigo a procurava quando precisava e ela também.
O amor dos dois estava latente, adormecido, e a necessidade do prazer se
sobrepôs á vontade de se amarem. E foi assim que num dia melancólico para os
dois, Florbela começou a namorar um rapaz trabalhador, daqueles que se sabe que
um dia ficará bem de vida. Um sujeito firme de princípios, honesto, como corria
voz pelo povo. Seu namoro foi muito bem visto e logo ficaram noivos e casaram,
ela de véu e grinalda. Não era que Rodrigo não fosse honesto e trabalhador, mas
não tinha a constância de Alfredo, o marido. Na noite de núpcias, Florbela
ficou em expectativa: Como seria essa noite? Como seria o marido na cama,
fazendo sexo, penetrando-a? Depois que a noite passou, Florbela tirou as suas
conclusões. A primeira vez com Rodrigo tinha sido fantástica. Naquela
oportunidade havia o desejo de experimentar o que lhe era desconhecido e tão
bem escondido pela família: o sexo, de que as mulheres tanto falavam de forma
velada em sua presença. Mas seu marido a tratava como esposa e a desposou como
esposa. Rodrigo a desposara como mulher. Era diferente. E enquanto o marido a
penetrava, pensava em Rodrigo. Ele não percebera que quando fechara os olhos o
fizera para a sua intimidade: Para avaliar como o marido a tratava e a
penetrava, e para comparar com Rodrigo.
A vida na aldeia, depois do
casamento de Florbela continuou como era antes. Os homens saiam para trabalhar,
as mulheres ficavam em casa. Algumas também trabalhavam em hortas e terras fora
da aldeia. Outras ainda lavavam suas roupas no rio.
Um dia Florbela disse ao
marido que ia lavar roupa no rio.
- Mas mulher... Não te
comprei uma máquina de lavar roupa, novinha em folha?
-É... Temos uma máquina de
lavar roupa, mas hoje apetece-me espairecer e vou até o rio lavar roupa. Fica
mais corada, passa melhor e fica mais branca. O sol aviva as cores. Além disso economizamos na água e na luz. Não chegues
tarde...
E Florbela passou a lavar
roupa, apenas de vez em quando, no rio.
Um dia afastou-se das outras mulheres por algum tempo.
Quando voltou, estava sorridente, alegre, mas não viu nos olhares das outras mulheres nenhum sinal de reprovação. Cada uma tinha a sua vida.
Do final do milharal,
Rodrigo saiu sacudindo ainda um pó imaginário. Ajeitou o chapéu, e sorriu. O
primeiro a chegar tem sempre uma grande vantagem se souber tratar uma mulher, e não havia no mundo uma mulher melhor que Florbela.
Rui Rodrigues
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