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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Florbela e o milharal


Florbela e o milharal.
(Na foto, quadro de Henrique Pinto –Entre o milharal)

Numa aldeia do Norte de Portugal o povo, contado pelos dedos em centenas não ocupariam todos os dedos de uma só mão. Viviam em paz na sua terra. Aquela terra era a “sua” terra, de mais ninguém, e mesmo assim, apesar da união, entre eles se cobiçavam terras, mulheres, fontes de água, casas, e em certos olhares ou comentários menos discretos, era evidente que se cobiçavam até as roupas, os móveis. Principalmente a sua proximidade com o Senhor Vigário, que tinha na aldeia a sua casa, alimentado fartamente com gordas esmolas das beatas, sempre na esperança de que, amigas do Senhor Vigário, ele que perdoava pecados poderia interceder ao senhor, por elas, para lhes arranjar um casamento, livrá-las ou a familiares e amigos de um mal, fazer com que os namorados ou maridos voltassem a interessar-se por elas, ou deixassem de deitar olhinhos para as outras moças da aldeia, que lá ninguém era parvo ou idiota e esses olhares sempre davam nas vistas, por maior precaução que os maridos ou namorados tivessem.

Florbela não era daquelas que lavavam e passavam as roupas do Senhor Vigário, que os tempos obrigaram a chamar de Senhor Padre, e as toalhas dos altares e da sacristia. Florbela era ainda muito nova para isso, e só tinha 17 anos. Dezessete belos anos, ainda dependente dos pais para tudo menos para perceber os olhares que os rapazes da aldeia lhe lançavam aos seios fartos, às coxas fortes e arredondadas, às pernas com leves e discretos cabelos louros, o rosto corado de saúde e do sol. Sobre sexo os pais não lhe tinham ensinado nada. Diziam que ainda era muito nova para entender dessas coisas e quando chegasse a altura, ela mesma iria descobrir. No entanto sempre lhe tolhiam os passos para ir a algum lugar onde a convivência com os rapazes da aldeia fosse até mais tarde, os passeios acompanhada por eles, e de festas só acompanhada dos pais, que lhe guardavam a virgindade como quem guarda o dinheiro que deve ser amealhado.

Florbela gostava de ir ao rio acompanhar as mulheres que ainda lavavam roupa por lá, entre sons de canções cantadas em coro e sons de água correndo em cascata entre as pedras. Algumas diziam que jamais teriam uma máquina de lavar porque no rio a roupa corava melhor com a luz do sol.  Além disso, gastavam menos água encanada que era cara, menos energia elétrica, e sempre aproveitavam a ida ao rio para espairecer. Florbela ouviu muito dessas explicações que faziam todo o sentido.  Na aldeia todos reclamavam do custo da água e da energia elétrica. De vez em quando, enquanto  lavavm as roupas alguma se afastava e caminhava para longe por entre o milho alto que lhes passava em muito a altura. Quando voltavam traziam um olhar entre radiante e comprometido, por mais que tentassem disfarçar. Quando entendeu o que algumas das mulheres iam fazer entre o milho, já Rodrigo lhe andava fazendo uns convites para saírem durante a sesta, pelo calor do sol, para passearem, mas por causa das más línguas, melhor seria que ela fosse passear a sua cabrinha, como desculpa, e ele a encontraria na estrada combinada.

Florbela foi surpreendida a meio do caminho. Era a voz de Rodrigo:

- Florbela, continua andando naturalmente e depois volta para casa. Estão te seguindo... Não olhes para cá... Depois de amanhã no mesmo horário.

Florbela entendeu. Era assim naquela terra. Quando menos se esperava havia sempre alguém que entre as parreiras ou pela mata aparecia de repente sem ser notado. Terra de gente desconfiada, cuja maior diversão era “saber o que se passava”. Isso vinha do tempo em que os senhores abades usavam a confissão para intimar pessoas da terra para fazer declarações no santo ofício. Pela confissão, as alcoviteiras e os alcoviteiros denunciavam quem escolhiam para ser julgado como herege e perder as terras para a igreja ou o estado que depois as “doava” a quem batia com a mão no peito, fazia o sinal da cruz, comparecia às missas de domingo e doava gordas verbas para o senhor abade, dono daquelas terras. Coisas da inquisição a que chamavam de santo ofício, ou santa inquisição. Ficara-lhes o costume de “espreitar” os outros, seguir os outros, tentando desvendar-lhes a vida particular, coisas que contavam ao senhor prior, ao senhor vigário, e agora, por força de perda de poder pela igreja, ao senhor padre. Progrediram muito quando começaram a perceber que alguns padres gostavam mais de crianças do que deviam gostar e até os expulsaram, mas os afazeres das beatas, a confissão, a alcovitice, essas estavam impregnadas nas tradições da aldeia. Havia famílias, cujas terras tinham sido doadas pelo Santo Ofício que nunca quiseram saber das verdades históricas. Para essas, a história era a Igreja, exceto pelos feitos de valentia dos cruzados quando invadiram a Terra a que chamavam de Santa. 

Quando Rodrigo e Florbela se encontraram pela segunda vez, ninguém a seguiu. Passaram mais de hora descobrindo-se os sexos, afagando-se, beijando-se desesperadamente, como se naquele dia se acabasse o mundo, os dedos percorrendo todo o corpo. Quando Florbela lhe viu o prepúcio, admirou-se e gemeu dizendo que lhe iria doer. Rodrigo tranqüilizou-a. Juraram-se juras de amor eterno, fidelidade eterna, e quando Rodrigo a penetrou, já lhe corriam, pelas pernas de Florbela, aqueles líquidos a que se habituara quando em isolamento tranqüilo em seu quarto pensava em Rodrigo e se tocava, e antes dele num outro que esqueceu fácilmente quando pela primeira viu esse que agora se apoderava de seu corpo e a fazia sentir-se feliz como jamais se sentira. Não doera mais do que um beliscão, mas o prazer compensava tudo. Queria mais, e mais e mais. E Rodrigo deu-lhe mais e mais.

- E se engravido? Perguntou-lhe.
- Eu caso contigo. Não te preocupes. Amo-te muito, muito, muito. Jamais nos separaremos.

Quando chegou em casa, esbaforida – correra muito para disfarçar a ansiedade – desculpou-se pelo atraso: A cabra tinha fugido e ela tivera que correr. Jantou pensando no próximo encontro e sentiu-se feliz por ninguém ter percebido que agora já não era a menina Florbela, mas uma mulher satisfeita que acabara de descobrir o que era o verdadeiro amor. Seu coração ainda batia descompassado. Seu peito ainda arfava, mas não era de ter corrido atrás da cabra.
No domingo foi à missa. Aprenda a disfarçar o que sentia desde o primeiro dia em que lhe vieram as regras, os fluxos, aos treze anos, e desde então se divertia toda a vez que aprontava algo que só ela sabia e os outros não percebiam. Quando se ajoelhou para receber a hóstia, depois de mais uma confissão sem pecados, olhou os olhos do padre que como sempre, lhe serviu a hóstia. Nem o padre sabia de nada. Ninguém na aldeia sabia ou iria saber. Não contaria para ninguém para não correr o risco de a denunciarem, ainda que “sem querer”, desculpas a que já estava habituada a ouvir de gente que realmente “queria”. E, além disso, a religião era uma espécie de faz de conta, para dar uma impressão de santidade e de compartilhar sentimentos com os demais da aldeia, que assim se julgavam mais unidos, exceto quando as desavenças grassavam pela vila, as famílias divididas e era preciso o senhor cura, vigário, abade, e agora padre agir como se fosse um intermediário da justiça para por ordem na aldeia. A aldeia nem tinha policiamento ostensivo. Quando mesmo o padre não resolvia as questões, lá iam as famílias para a sede do concelho a resolver as suas dissidências com o meirinho.

Aos poucos os encontros foram ficando mais escassos. Rodrigo a procurava quando precisava e ela também. O amor dos dois estava latente, adormecido, e a necessidade do prazer se sobrepôs á vontade de se amarem. E foi assim que num dia melancólico para os dois, Florbela começou a namorar um rapaz trabalhador, daqueles que se sabe que um dia ficará bem de vida. Um sujeito firme de princípios, honesto, como corria voz pelo povo. Seu namoro foi muito bem visto e logo ficaram noivos e casaram, ela de véu e grinalda. Não era que Rodrigo não fosse honesto e trabalhador, mas não tinha a constância de Alfredo, o marido. Na noite de núpcias, Florbela ficou em expectativa: Como seria essa noite? Como seria o marido na cama, fazendo sexo, penetrando-a? Depois que a noite passou, Florbela tirou as suas conclusões. A primeira vez com Rodrigo tinha sido fantástica. Naquela oportunidade havia o desejo de experimentar o que lhe era desconhecido e tão bem escondido pela família: o sexo, de que as mulheres tanto falavam de forma velada em sua presença. Mas seu marido a tratava como esposa e a desposou como esposa. Rodrigo a desposara como mulher. Era diferente. E enquanto o marido a penetrava, pensava em Rodrigo. Ele não percebera que quando fechara os olhos o fizera para a sua intimidade: Para avaliar como o marido a tratava e a penetrava, e para comparar com Rodrigo.

A vida na aldeia, depois do casamento de Florbela continuou como era antes. Os homens saiam para trabalhar, as mulheres ficavam em casa. Algumas também trabalhavam em hortas e terras fora da aldeia. Outras ainda lavavam suas roupas no rio.

Um dia Florbela disse ao marido que ia lavar roupa no rio.

- Mas mulher... Não te comprei uma máquina de lavar roupa, novinha em folha?
-É... Temos uma máquina de lavar roupa, mas hoje apetece-me espairecer e vou até o rio lavar roupa. Fica mais corada, passa melhor e fica mais branca. O sol aviva as cores. Além disso economizamos na água e na luz. Não chegues tarde...

E Florbela passou a lavar roupa, apenas de vez em quando, no rio.  Um dia afastou-se das outras mulheres por algum tempo.

Quando voltou, estava sorridente, alegre, mas não viu nos olhares das outras mulheres nenhum sinal de reprovação. Cada uma tinha a sua vida.

Do final do milharal, Rodrigo saiu sacudindo ainda um pó imaginário. Ajeitou o chapéu, e sorriu. O primeiro a chegar tem sempre uma grande vantagem se souber tratar uma mulher, e não havia no mundo uma mulher melhor que Florbela.

Rui Rodrigues

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