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terça-feira, 1 de março de 2016

A gênese dos pintos e o paraíso.

Esta história é fruto de conversas em que, numa roda de amigos, discutimos sobre a criação e abate de aves, mais especificamente frangos. Um dos clientes na mesa do bar é funcionário de uma fábrica de criação de pintos, acompanhando desde o eclodir dos ovos até o abate. Ele é cliente habitual do Bar do Chopp Grátis.
Um dia sentou na mesa onde costumamos nos reunir e nos perguntou:   

-O que é "inteligência"? Conhecemos muitos dos processos que resultam no que podemos chamar de inteligência, mas não existe uma definição credível, confiável e abrangente. Ainda não,mas quando chegarem a uma conclusão, teremos uma dor em nossa consciência, porque não pode ser tão diferente de animal para animal... 

E a consciência? creio que estamos tão avançados quanto no que se refere a inteligência. O livro " O futuro da mente" de Michio Kaku, aborda o assunto de acordo com os maiores avanços da ciência e constata que sabemos  ainda muito pouco do que sejam a inteligência, a consciência. E memória? Qual a galinha que não sabe onde fica o galinheiro, o cachorro que não sabe qual a sua casa, o gato que sabe como abrir portas pulando na maçaneta e não esquece? Então vamos imaginar que os pintos tenham pelo menos um pingo de inteligência, outro de consciência e outro de memória, logo ao nascer, e daí  para a frente até morrerem, mais dois pingos espaçados ao longo do seu crescimento.  




Agora imaginem uma escuridão sem passado onde desponta uma consciência que não sabe o que seja escuridão, mas sente pela primeira vez que o mundo em que vive tem que ser rompido, que tem de sair dali. Sente ser imperioso sair daquele mundo escuro para continuar qualquer coisa que nem sabe o que seja. Começa a dar bicadas na parede que o separa dessa escuridão para algo que não conhece, mas para onde é imperioso ir, e consegue quebrar a parede. Por instantes, logo que consegue romper esse mundo escuro, fica confuso com tantos piares enlouquecedores à sua volta, iguais aos seus, e com umas pequenas luzes que emitem também calor vindas de cima. Todos os outros são amarelos, praticamente idênticos. Sente estar cercado de outros seres que piam como ele, e identifica os piados como chamados de desespero. Falta-lhes algo. Um ser semelhante que lhes dê comida, que os possa abrigar, dar-lhes calor. Têm sede, mas não há água. Estão todos dentro de novos mundos de onde não podem sair, cercados de barras que seus bicos não quebram. Assim passam a primeira fase de sua vida, entre piados sede e fome, por longas oito horas. 





O mundo à sua volta se ilumina de repente. Aquele pinto ouve um som forte, seu mundo balança causando incertezas, medos, dores, pelo rodar do trator. Pisoteiam-se uns aos outros, alguns sucumbem. Sente-se desamparado, entregue a um destino que nunca viu e sente também que aquele barulho enorme que ouviu antes de se começar a mover, agora o acompanha enquanto se movem. Alguns dos que sucumbiram piam fraco, parecem estar sofrendo. Outros jazem inertes, os olhos parados, olhando sempre para o mesmo lugar. Repara então que esse seu novo mundo cheio de grades se abre num lugar cheio de correias transportadoras e mecanismos barulhentos, e os despeja a todos, num recipiente, aos magotes. O lugar está cheio de outros mundos gradeados despejando pequenos seres amarelos no mesmo lugar de onde são transportados até as mãos de seres gigantes, com grandes patas que torcem os pescoços a uns irmãos e a outros não. Notou claramente que as mãos enormes torciam os pescoços dos mais fracos. Olhou para baixo e viu que alguns caíam das correias transportadoras no afã de fugirem dali. Estava confuso por não saber onde estava, o que viria a seguir, nem porque estava ali. Ficou contente por não lhe terem torcido o pescoço. Meteram-no num outro mundo cheio de grades. Seus irmãos agora eram todos fortes, mas continuavam apertados uns aos outros. Foram levados para um outro lugar, sem grades, onde havia comida e água, luzes em cima de onde vinha calor, mas nenhum ser igual a eles, maior, com asas onde pudessem se esconder e que pudessem chamar de mãe. Ficaram lá por cerca de 30 dias.        


 




Com uns cinco dias nesse mundo mais espaçoso já se conheciam uns aos outros e o ambiente era alegre. De vez em quando disputavam comida, mas correu voz entre eles que estavam num paraíso onde havia comida e água em abundância, calor. Tinham um grande e poderoso provedor que lhes dava luz e calor, comida e água e isso era tudo do que precisavam. Não precisavam saber mais nada e tinham medo de saber. Cresceram muito e ficaram quase adultos. Adoravam o provedor, e agora eram como anjos brancos, com fortes asas, se houvesse espaço voariam. Viam o mundo lá fora, com uma luz enorme na parte de cima sob fundo azul que logo desaparecia para dar lugar a outra que não transmitia calor, sob fundo escuro. E isso se repetia em horários quase certos, mas ali dentro, no paraíso, era sempre como a luz mais forte e quente, aquela que normalmente aparecia lá fora sob fundo azul, exceto nos dias em que caía água de lá. Por falta de referencia, comiam a todo o instante e engordavam muito. Um dos irmãos deu a ideia de chamar Sol ao disco maior e de Lua ao menor. Dia ao tempo com o maior, noite ao tempo passado com o menor disco luminoso. Ao provedor chamaram de Deus. Deus era bom, tinha-lhes dado a vida e os alimentava. Deus era fiel. Se tudo o que viam era assim e tinham um Deus que os provia, então esse provedor lhes dera o paraíso, fizera o mundo em que  viviam segundo sua vontade e de certeza os tinham feito parecidos com ele. Deus deveria ser um Frango enorme, que nunca se via, mas que mandava os provedores de mãos enormes que torciam pescoços de pinto, servir-lhes, atendê-los. Aos fins  de semana Deus, o enorme frango provedor, desaparecia para descansar. Chamaram ao irmão que tivera o vislumbre, de profeta. Ele entendia o provedor. De vez em quando, quando a ração parecia que ia acabar, o profeta levantava as asas, piava mais alto, e dizia que tinha pedido a deus por mais ração. E a ração chegava. O profeta conhecia  o esquema de horários da ração. Os irmãos reservaram-lhe o melhor lugar do Paraíso, defendiam-no das bicadas dos outros irmãos descrentes. Um dia trouxeram uns irmãos de outro lugar. Eles sabiam de outras coisas. Houve desentendimentos entre eles.
 


Havia um buraco na malha que cercava o paraíso, defendida por anjos armados, com aspecto  igual ao daqueles que torciam o pescoço dos pintos. Suspeitaram que havia alguma guerra de bicadas nas imediações. Alguns irmãos escapuliram pela calada de uma noite escura e chuvosa. Viram quando um raio caiu do céu. Três deles foram fulminados instantaneamente. Disse o irmão que tivera o vislumbre da associação do provedor a um Deus, o profeta, que tinha sido castigo do Todo Poderoso, coisa de que alguns duvidaram, porque aqueles raios também eram produzidos no paraíso, ali mesmo, quando alguns fios, descapados por tantas bicadas, se encostavam. Saiam fagulhas, davam choques, irmãos morriam exalando cheiro de penas queimadas. Era o mesmo cheiro que de vez em quando chegava ao paraíso vindo de bem perto dali, de uns barracões parecidos com aquele onde estavam e do qual vislumbravam luzes azuis. A partir desse dia, em que viram os irmãos serem chamuscados e pararem de cantar, andar, olhar, se mexerem, começaram a chamar a esses barracões de inferno, por simples associação do cheiro de penas queimadas. Os irmãos que haviam chegado por ultimo ao paraíso disseram que havia uma guerra entre provedores e que cada barracão tinha seu Deus, seu provedor. Durante as guerras chegavam caminhões, carregavam os irmãos e desapareciam. Chamaram vida aos instantes em que podiam piar e morte à escuridão. Inferno era o lugar de luz azul onde todos morriam com cheiro de penas queimadas. Por vezes os provedores usavam armas cintilantes, muito poderosas para evitar que invasores roubassem as fieis aves do paraíso.

Certo dia pela noite vieram novamente os das máquinas, e os levaram a todos para uma sala iluminada por luz azul para que ficassem relaxados. Haviam chegado ao inferno. Não sentiram dor. Sentiram alivio e não deixaram memória para a posteridade. Se fosse por terem cometido pecado por fazerem ovos, jamais seriam expulsos do paraíso. Nunca souberam como eram as frangas, nem cogitaram de sua existência.    

Rui Rodrigues 

      

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