São poucas e cantam de modo diferente.
Décadas atrás, as cigarras eram muitas e quando uma começava a cantar, as outras lhe respondiam. Era sinal de primavera. Naqueles tempos não havia internet, muitas ditaduras iam pelo mundo, e as cigarras ficavam 17 anos enterradas no solo, sem cantar... Subiam à superfície na primavera, transavam freneticamente, e as fêmeas tinham tempo ainda de parir antes de morrer. Cigarra que ganhava asas para cantar e vinha á tona, não voltava às origens de seus subterrâneos.
Sempre gostei muito de cigarras, pelo cantar imperial, incisivo, forte, sonoro, começado a cantar baixinho, e elevando o tom, até se transformar num grito de guerra... São valentes as cigarras e muito pacientes... Ficarem caladas por 17 anos é sinal de grande paciência e perseverança.
Quando as ouvi cantar diferente, foi em Paris... Fazia uma semana que grupos de estudantes secundaristas e universitários se reuniam no Quartier Latin, bairro tradicional de Paris onde fica a Universidade de Sorbonne. Eles protestavam contra a Guerra do Vietnã, o autoritarismo do governo conservador de Charles de Gaulle e a prisão de estudantes em manifestações pela paz. Este cantar de cigarras francesas provocou movimentos semelhantes em todo o mundo e 1968 se transformou num dos anos mais agitados do século XX. As cigarras voltaram a cantar com toda a força e em grande número na primavera de Praga (Praha). Coincidiu com o período de liberalização política na Tchecoslováquia durante a época de sua dominação pela União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. Esse período começou em 5 de Janeiro de 1968, quando o reformista eslovaco Alexander Dubček chegou ao poder, e durou até o dia 21 de Agosto quando a União Soviética e os membros do Pacto de Varsóvia invadiram o país para interromper as reformas.
Desde essa época que associo as cigarras que anunciam uma nova primavera aos levantes democráticos de Paris e de Praha, duas lindas cidades que tive o prazer de visitar. Mas nessa época o cantar das cigarras tinha muito a haver com as ideologias. Talvez por isso cantassem diferente do que cantam hoje.
Começaram a cantar ainda diferente em 1986 quando Fernando Marcos, presidente das Filipinas após ter instaurado lei marcial e prendido opositores, se ter revelado como um defraudador das eleições políticas. Fugiu com Imelda Marcos, sua esposa, ex-miss Filipinas, idéia fixa em sapatos, dos quais tinha mais de 30.000 pares. Fugiram para o Havaí, porque naquela altura, os EUA não eram tão fixados em democracia representativa como são hoje. Naquele tempo, acobertavam e acolhiam ditadores.
Em 1989, as cigarras não se ouviram em outubro. Não era tempo delas, mas apareceram em Berlim sem gritos, sem avisos, sem violência, da noite para o dia, em 08 de novembro de 1989. Muito poucos cidadãos deste planeta, absorvidos ainda pelas ideologias e a guerra-fria, não perceberam que o cantar das cigarras não era ideológico. Era financeiro. Os países sob influência comunista da ex-URSS estavam falidos, tinham perdido a corrida espacial por falta de verbas para comprar tecnologia, materiais, pagar espionagem industrial... A Igreja Católica apressou-se a dizer que uma santa de sua preferência tinha convertido a URSS pelas orações dos fiéis... Gorbachev o grande mentor da virada russa com seu livro Perestróica, foi eclipsado por um bêbado, muito mais político que capitalizou o grande mérito de ter mudado a tendência política dessa grande nação, subindo em cima de um tanque, provavelmente de ressaca.
Foi então que comecei a perceber que o canto das cigarras mudara profundamente. Não seguia uma linha clássica nem Rock de preferência, não era ideológico, mas dava lugar ao “rap”, ao hip-hop, e às finanças, ao capital.
O cantar das cigarras na primavera modificava o mundo e modificava o seu cantar. Cantavam agora moralidade e ética. Cantavam agora moralidade e ética, nada de ideologias, partidos políticos, figuras de proa da política, encampadores de opinião.
Foi assim que cantaram em 2007, em Israel, quando a justiça prendeu Moshe Katsav, culpado por estuprar duas vezes uma ex-funcionária do Ministério do Turismo, pasta da qual foi titular entre 1996 e 1999; por abuso e assédio sexual contra duas funcionárias da Presidência; e por delitos menores como abuso de poder, obstrução à Justiça e assédio a testemunhas.
Em 2010 e 2011 cantaram no Norte de África, na Tunísia, no Egito, na Líbia, e estão ainda cantando por lá, onde ditadores vitalícios fechavam suas sociedades ao progresso, á ética, á moral, e ao rap, ao hip-hop, e, sobretudo, a uma vida livre na expressão corporal e verbal.
Em 15 de maio de 2011, as cigarras de Madrid cantaram a mesma melodia do Norte de África: a Espanha, atravessando crise financeira sem precedentes, vai para as ruas, acampa com crianças, idosos, trabalhadores, gentes de todos os níveis, em protesto à deficiente, inconseqüente e depredatória forma de governar, que quase a levou á falência. O movimento 15-M se espalhou pela Europa, pelo mundo, e em 17 de setembro, em N. York, o povo acampou pelos mesmos motivos: O dinheiro público sumiu do tesouro nacional, foi entregue aos bancos a pretexto de uma crise, a qualidade do governo decaiu por falta de verbas.
Em novembro de 2010, hoje, exatamente, dia 12 de ovembro, Silvio Berlusconni, presidente da Itália, acumulando a presidência de um clube de futebol milionário, que necessita de verbas milionárias, pediu demissão, porque a Itália está á beira da falência.
Entre 2010 e 2011, no Brasil, as cigarras também cantaram. Pouco, muito pouco, mas cantaram. Seis ministros caíram sem devolver as verbas públicas desperdiçadas, e sem dizer onde estavam. A justiça omitiu-se e deu os casos por encerrados, continuando a população sem saber para onde foi tanto dinheiro. Aprovaram uma Medida Provisória para que não se tornem públicos os processos para as obras do Mundial e dos Jogos Olímpicos no Brasil. Põe-se em votação limitada ao Estado do Pará, a sua divisão em três, sendo os dois novos, de clara influência da “Vale do Rio Doce”, empresa mista, com subsidiarias que são particulares, de onde partiu em 1987, o escândalo da Ferrovia-Norte sul. Se verificarem o custo do km de ferrovia, a sociedade era um ataque de nervos, as cigarras ganharão as ruas, o planalto.
Mas por enquanto, as cigarras estão relativamente calmas e são poucas. Talvez ainda estejam enterradas nas profundezas da terra, som ligado num hip-hop, num rap.
A primavera está acabando. Talvez na próxima possamos ouvir as cigarras em todo o seu esplendor, numa algazarra sem precedentes.
Rui Rodrigues