As gatas e os gatos
Muita gente tem gatos, mas
vê-os como animais quietos que gostam de estar perto. Alimentam-nos e isso é
tudo. Algumas outras pessoas fazem carinho em seus animais. São mais raros. Mas
gato é muito mais do que isso. Passarei a referir-me a uma gata em especial, a
Sarkye, minha agradável e interessante companheira.
Sarkye é
uma gata tricolor, branco negro e laranja dourado, que tem um comportamento
específico. Por seu comportamento, merece uma homenagem. Se fosse um ser humano
poderia ter uma estátua em qualquer parque de qualquer cidade. Ela merece muito
mais do que isso, ou a ração que lhe dou.
Lourdes
Vieira e uma amiga me perguntaram por telefone, da rua, se eu gostava de gatos.
Isso foi em 2002, em Lisboa e me lembro de ter respondido que “dependia da
cara” do gato ou da gata, certamente tendo como referência os que eu já vira em
toda a minha vida, e em desenhos de Walt Disney. Nessa mesma tarde, apareceram
lá em casa com uma gatinha tricolor que não tinha nem um palmo de comprimento.
Tinha sido encontrada numa lixeira de rua, buscando comida. Encontraram-na
faminta, perseguida, deprimida e estressada. Sobretudo arredia a qualquer
contacto. Mas era linda. Como apreciador da beleza e dos perseguidos adotei-a
como o mais novo membro de um lar que há dois anos era apenas meu, fruto de uma
onda internacional de lares desfeitos por divergências no modo de viver, uma
caverna urbana de pintor, cheia de telas prontas, duas ou três em execução.
Pintores
sempre sofreram a influência dos odores das tintas, e muitos se viciaram com
eles. Muitos também bebiam quer pelo prazer de beber, quer pelo relaxamento
mental que lhes reduzia a censura própria e os libertava para os devaneios no
uso das cores, dos temas, das formas. Sem viciar em tintas porque passei a
pintar com acrílico, eu bebia uísque, Whisky e Whiskey, e na oportunidade, quando
a sarkye entrou em minha vida, de uma garrafa de Cutty Sark. Daí o nome de
minha simpática gata.
Ela
consegue adivinhar quando estou meditabundo. Nessas ocasiões, sinto algo no
ambiente e olho em volta. Invariavelmente dou com os meus olhos nos olhos dela
que me fitam amarelos, límpidos, transparentes, perscrutadores como que a me
perguntar: - E então...Qual é o problema?
Se algo cai
no chão, não sai do lugar até que eu preste atenção e apanhe o objeto caído.
Quando tenho algo aquecendo no fogão, olha insistente e freqüentemente para lá.
Mia para sair de casa e fazer as suas necessidades lá fora na área de serviço,
e quando por motivos que desconheço parece avessa a miar, fica parada em frente à porta até que eu me dê conta e a abra. Deve ter seus motivos para umas vezes
miar e outras não. Bebe água da torneira. Quando sente sede ou fome, mia
diferente como se dissesse algumas frases. Quando vou para o banheiro acompanha-me
e fica ali do meu lado. Já perdeu o hábito de se enfiar dentro de minhas calças
ou shorts arriados. Aprendeu a entender o meu “não” dito de forma firme mas em
tom baixo e carinhoso. E quando digo “vem sarkye”, esteja onde estiver vem
correndo. Quando subo nos quartos, no alto da escada, acompanha-me, como
sempre. Mete-se debaixo das camas, mas quando digo “vem sarkye”, ela sai
correndo para o hall. Aprendeu que quando chamava e não vinha, ficava trancada por
bom tempo.
Moro perto
da praia, a uns cento e cinqüenta metros no máximo. Não há cachorros nas ruas.
Um dia experimentei deixar que ela me acompanhasse á praia. Seguiu-me sempre,
miando atrás de mim, como que dizendo que eu me afastava muito. Na metade do
caminho parou. Voltei e deixei-a em casa. Interessante quando assobio... Esteja
onde estiver vem ronronar e deita-se a meu lado buscando meus braços. Fica me
cheirando, seu rosto quase encostado ao meu, tentando perceber onde está aquele
“passarinho” que canta. Quando me deito, enrosca-se aos meus pés. É bom no
inverno. Quando estou no computador, vem encostar sua cabeça em meu braço.
Adora quando lhe coço a garganta ou lhe faço um cafuné na cabeça. Gosta quando
saio para pescar e lhe dou algum peixe. É dia de sair da ração e quando
cozinho, fica de costas para mim, na cozinha, como que a me guardar de
“predadores”. Deve ser um hábito antigo, adquirido de quando foram domesticados
os primeiros gatos.
Afora isso
sempre me surpreende chamando-me para brincar. Ou o faz dando-me uns tapas na
minha perna e correndo em seguida para se esconder, ou indo para o alto das
escadas e começando a miar para que eu corra atrás dela. Não há como não me
lembrar da religião hindu e levado a pensar que ela é inteligente, sabe o que
faz, e que numa próxima reencarnação virá no corpo de uma bela mulher. Já estou
pedindo a Deus que lhe dê uma alma, se é que a não tem já... Ela merece!
Rui
Rodrigues
Apêndice: A
história dos gatos pode ser resumida assim:
Os primeiros animais
mamíferos chamavam-se Creodontes e surgiram há cerca de 60 milhões de anos
atrás, e floresceram admiravelmente após a extinção dos dinossauros. O gato partilha com cães, ursos e outros mamíferos um
ancestral comum - uma criatura pequena, semelhante à doninha, de corpo comprido
e pernas curtas, chamada Miacis. Surgido dos creodontes há cerca de 50 milhões
de anos e bem adaptado a uma época hostil da história do planeta, o Miacis
evoluiu e prosperou, transformando-se na diversidade da moderna família de
carnívoros que hoje conhecemos. Uma das ramificações do Miacis produziu os
primeiros "gatos", os Proailurus, que caminhavam com a planta dos pés
no chão.
Há cerca de 20 milhões de anos, o Proailurus deu lugar ao
Pseudaelurus, que já caminhava nas pontas dos dedos e possuíam poderosos caninos
afiados. Do grupo dos Pseudaelurus emergiram os antepassados diretos do atual
gato doméstico, os Felidae. Durante os milhões de anos seguintes, o
Felidae subdividiram-se em muitas subespécies, todas extraordinariamente
aparentadas com os gatos modernos. Há doze milhões de anos atrás surgiu o Felis
lunensis, espécie européia que se julga ser a antepassada direta da atual
família de gatos selvagens, sendo menores que seus predecessores. Nesta época,
os gatos modernos dividiram-se em dois grupos, os do Velho Mundo e os do Novo
Mundo. Um grupo de felídeos selvagens, pequenos e independentes,
espalhou-se então pela Ásia, Europa e África. Parentes dos gatos contemporâneos
eram criaturas sofisticadas, construídas para sobreviverem. Pequenos, asseados,
perfeitos carnívoros, os gatos de então já possuíam garras retráteis, que podem
ser consideradas uma obra-prima da natureza, imprimindo maior velocidade na
caça e contribuindo para um bote mortífero.
A dentição do gato também evoluiu
com perfeição, com dentes preparados para segurar, furar, matar, cortar e
reduzir a presa a pequenos pedaços facilmente engolidos.Com a domesticação,
outras mudanças se perpetuaram, tanto físicas quanto comportamentais. O cérebro
diminuiu de tamanho, o sistema digestivo modificou-se para adaptar-se a outro
tipo de alimentação, a pelagem tornou-se mais variada, e o temperamento bravio
do gato sofreu uma alteração permanente, para adequar-se ao convívio com o
homem. O gato doméstico atual parece ser produto de um cruzamento entre o Felis
sylvestris (europeu) e o Felis lybica (africano).
No antigo Egito
eram mumificados e considerados como pequenos deuses.
₢ Rui Rodrigues