Notícias do céu
Quando fui aos correios em Cabo Frio e abri a minha caixa postal, vi uma
carta. O remetente era um amigo meu que havia falecido há uns dez anos atrás.
Pensei que era uma brincadeira de mau gosto, mas abri curioso. Impressionante
que reconheci a sua letra e o seu estilo de escrever. Sorvi o texto avidamente
e voltei a ler. Não uma, mas duas vezes, encostado a uma banca de jornal que
fica mesmo em frente ao posto de correios. Depois, como que por encanto, a
carta desfez-se em pó que desapareceu antes de atingir a calçada. Do que me
lembro, reproduzo a seguir.
Caro amigo,
Sei que dificilmente acreditará, mas consegui mandar-lhe esta carta que logrei
introduzir em sua caixa postal aproveitando quando o funcionário dos correios a
abriu para deixar uma outra sua correspondência. Mas se acreditar no que lhe conto,
prepare-se muito bem. Não se arrependerá!
Não adianta. Seja num dia de sol, chovendo, escuro ao anoitecer, e
esteja numa floresta, num deserto, no mar, numa montanha na neve, ou em seu
apartamento, num restaurante, viajando, quando a morte vem, tudo fica escuro,
um breu como a noite mais escura sem lua nem vela de glicerina. Por uns
instantes ficamos pairando no ar vendo tudo o que se passa em baixo, onde nosso
corpo ainda está, amarelado, sem vida. Com um pouco de sorte não terá ninguém
conhecido perto e não verá ninguém chorando. Com muito azar, morre-se em
família e sai aquela choradeira toda. Por uns seis a nove minutos ainda se
escuta o que dizem. É um desaforo que temos que agüentar calados: A esposa que
diz para as amigas mais íntimas: ”Até que enfim...”, os filhos dizendo “lá foi
o muquirana”, a gata desesperada e o cachorro uivando como lobo triste e
desamparado, o amante da mulher dizer para si mesmo: “Acabou-se!... Agora já
não tem graça nenhuma trair o cara...”, Depois vê-se um clarão de luz vindo em
nossa direção, e umas pessoas completamente nuas parecem vir para nós, mas é
ilusão... Nós é que estamos indo em direção a elas, que nos vêem passar sem
sair do lugar, dizendo adeusinhos com lindos sorrisos e abanando as mãos.
Aquela coisa de vir trem ou ônibus nos apanhar como pensou o Jean Paul Sartre,
é pura mentira. Não há nenhum escritório lá em cima, nem comitê de boas vindas
para nos separar em grupos e fazerem perguntas idiotas. O que há é um avião
muito bacana, todo de vidro, transparente, sem motor, como se fosse uma bolha
que nos leva para vários lugares. A bordo, lindas bolhomoças e comissários de
bordo, todo mundo nu. Ninguém levava bagagem alguma, nem de mão. Não temos que
passar por detectores de metal. Já no imenso aeroporto nos dão algumas
explicações: Vamos para o céu que sempre desejamos quando éramos vivos e
teremos oportunidade de ver outros céus, conforme desejos de outras pessoas.
De longe podíamos ver outro aeroporto com filas imensas de viajantes
exatamente iguais a nós. Até as bolhas eram iguais. Perguntei se era o Terminal
número II. Uma anja simpaticíssima disse que não, enquanto me segurava a mão
enquanto se encostava a mim sorridente: Era o terminal dos que iam para o
inferno. Tremi, ou julguei que tremi. Então, como tenho a mania de querer saber
tudo, perguntei qual a diferença entre céu e inferno: A diferença era que o
inferno era um lugar onde só existia o que as pessoas mais detestavam. Somente
depois de subir a bordo é que reparei em duas coisas fundamentais: a bolha em
que viajávamos não tinha cadeiras, e lá embaixo, o que víamos era a Terra. Fazia
sentido. Só fez mais sentido ainda quando minha bela bolhomoça me perguntou: - Está
pensando que é a terra de onde veio. Não é? Assenti com a minha cabeça,
completamente perdido com a beleza dela. - É... É a Terra, confirmou-me ela -
mas é uma coisa impressionante, porque existem várias terras-céu. Uma para cada
ano terrestre, porque não podemos misturar mentalidades diferentes. Logo
entrariam em conflito.
Enquanto assimilava o que a minha bolhomoça me informara, olhei à minha
volta, percorrendo todo o interior da bolha. Todos éramos jovens, naquela idade
em que mais nos amaramos, fortes, bonitos, corpo esbelto. Cada mulher tinha um
comissário de bolha e cada homem sua bolhomoça. Em breve troca de impressões
com as pessoas que estavam mais perto de mim, ouvi que “aquela” era a mulher
que sempre quisera ter, ou “aquele” era o homem com quem sempre sonhara. Havia
lésbicas e gays na bolha, o que deu pra notar logo em seguida. Lá na frente
havia um grupo sem acompanhantes. Eram sacerdotes de várias religiões que
tinham feito votos de castidade. Alguns reclamavam que não tinham
acompanhantes. Outros - ouvi pelas conversas - já tinham pedido as suas ou os
seus. A cada minuto ia
ficando mais íntimo de minha bolhomoça.
Voávamos a baixa altitude, bem devagar. Passamos por um lugar lindo,
cheio de tendas de circo, carroças de doces. Crianças e alguns adultos desceram
A Disney era “fichinha” comparada com aquele imenso parque onde se andava em
brinquedos perigosos sem necessidade de cintos de segurança. Crianças brincavam
e divertiam-se, algumas sem acompanhantes, outras estavam acompanhadas de pais
e babás. Lambuzavam-se com chocolates, pirulitos. Um pouco mais adiante, vi
umas boates a céu aberto. As estrelas eram o teto. O povo dançava
alucinadamente. Mas o maior recinto estava cheio de gente sentada, de frente
para computadores, mandando mensagens e combinando encontros. À sua frente,
biscoitos, pipocas, refrigerantes, pizzas, pratos de miojo, taças de vinho,
bolachas champanhe. Logo ao lado, um outro recinto muito parecido onde
multidões jogavam sofregamente em maquinas e aparatos de todos os tipos num
arraial de luzes que piscavam, sons de maquinas anunciando que haviam acertado
um “Jackpot”. A barulheira de vozes, gritos de satisfação, era imensa em
qualquer dos cenários por que passávamos.
Em breve restávamos apenas um razoável grupo para sermos largados em
nosso paraíso. Eu estava ansioso para saber. Largaram-nos numa praia tropical,
imensa, com pequenas cabanas ao longo da linha de água. Não havia garçons.
Tínhamos tudo à disposição. Podíamos preparar o que quiséssemos. Para cada
casal uma cabana. A luz do Sol já ia
baixa e lançava tons róseos e alaranjados pelo céu. Eu estava no planeta Terra.
Não tinha dúvidas. Ali, bem perto de mim, deveria estar gente real que ainda
vivia, mas não podia vê-las. Talvez com
o tempo houvesse alguma forma de me contatar com elas. Deixei isso para depois,
porque já estava com minha bolhomoça agarrada a mim, a caminho de uma cabana
isolada. A luz que vinha do interior era convidativa. Entramos e nos beijamos.
Então ela me disse: - Estranhará porque não tem nada para ejacular. Toda a
bebida, comida que aqui comemos é apenas uma sensação... Não se come realmente
ou se ejacula. Somos apenas uma forma. Nada do que vemos é material, embora
sintamos tudo como se o fosse. Mas vamos entrar... Vamos aproveitar a noite.
Quando amanheceu estava reconfortado. Sentia-me eufórico. Vivo, alegre e
feliz. Perguntei a minha companheira o que significava a vida na Terra. Respondeu-me:
- Lá é o purgatório, onde aprendemos a sofrer para que possamos
discernir o que é bom do que é ruim e resolver o que realmente queremos. É um
lugar de livre arbítrio. Aqui é o destino final, e não é tudo. Pode-se ir a
qualquer lugar, saber qualquer coisa do universo, visitar ancestrais em suas
terras-céu. Somos anjos sem asas, nem precisamos de bolhas para nos transportar
de um lugar ao outro. Esta viagem que
fizemos foi apenas uma “cortesia”. Não há como enganar ninguém, fazer mal a
alguém, matar alguém. Impossível. Não existe o “mal” por aqui, e como nada é
material, não há disputas nem ambições. Cada um tem o que deseja e isso não
depende do trabalho de outros.
Espero que acreditem.
Rui Rodrigues
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