Já tinha mais de dez anos
quando saiu a público uma coleção de cromos sob o título de “raças humanas”,
que deveríamos colar uma a uma num álbum. O mundo se abriu para mim. Jamais
havia imaginado que houvessem tantas raças, tanta diversidade em tantos lugares
deste planeta. Todos semelhantes a mim, com cabeça, tronco e membros, olhos,
ouvidos, boca, nariz, certamente sangue similar, tudo realmente igual, tão
igual, que geravam temor ao redor do mundo: O mundo temia que alguma delas
prevalecesse sobre as demais, e temia-se, em particular, a grande invasão da
raça amarela.
Um mundo de pavor herdado de
velhos temores de invasão da “personalidade”, da idiossincrasia, dos hábitos e
costumes, da tradição. Quando anos depois li o livro de Dee Brown “Enterrem meu
coração na curva do rio [2]”
tudo o que vira no cinema sobre índios sendo abatidos por tropas federais dos
EUA – gáudio de platéias desnorteadas, loucas por sangue fácil, entorpecidas
como gambás – caiu por terra. O orgulho americano da ocupação das terras
índias, propalado pelas telas de cinema, eram uma diversão tola e infantil,
inconseqüente, uma vitória fácil e torpe.
Porém, culpar apenas americanos e a humanidade daqueles tempos seria uma injustiça. Ao ler a história universal, e ao ler os jornais de hoje em dia, vemos que nos protegemos da fera com um pedaço de cartolina que nos tapa a visão. Iludimo-nos, os povos índios continuam sendo perseguidos e eliminados sob nossos olhos, tapados por promessas falsas, reservas tranqüilas, leis de proteção aos índios. Continuamos tolos e infantis, inconseqüentes, buscando sempre vitórias fáceis e torpes para alimentarem o nosso ego pueril. Somos falsos e pensamos que nossa falsidade não é percebida.
- Origem
dos povos indígenas.
Os primeiros hominídeos
tiveram origem na Fossa de Olduvai na atual Tanzânia há cerca de 1.700.000 anos
atrás. Foram ocupando a África a norte e a sul, o oriente médio, a Europa, a
Ásia. Os grupos evoluíam em função de sua adaptação ao clima, ao local em que se
encontravam e não raro alguns grupos mais evoluídos se encontravam com grupos
já diferenciados. Um dos grupos africanos evoluiu para o Homo Sapiens que
dominou este planeta, e povoaram a terra. Há cerca de 12.000 anos, o Estreito
de Bering estava coberto de gelo e foi atravessado por alguns grupos que deram
origem às tribos índias. Depois que a glaciação terminou a passagem ficou
impedida por um mar enorme, o mar de Bering, intransponível. Desde então essas
tribos ocuparam toda a América do Norte, Central e Sul, adaptando-se ao meio e
evoluindo com a natureza que partilhavam. Eram um povo extremamente saudável,
limpo, bem alimentado. O conforto não os obrigou a maiores necessidades. Não
construíram castelos, não usavam armaduras, não fabricaram armas de fogo. A
vida na natureza era fácil sem maiores necessidades. Um dia viram velas no
horizonte a Norte, ao centro e ao Sul.
Parecia uma cominação da natureza, do acaso, de Manitu. O povo índio estava sob pressão com a chegada
das naus, das caravelas, dos galeões, do homem branco.
- O
paraíso desconhecido.
Para Cristóvão Colombo
(1492), João e Sebastião Caboto (1497), Pedro Álvares Cabral (1500), as terras
descobertas eram o próprio paraíso. Cristóvão
Colombo estava a serviço de Espanha, Sebastião Caboto da Inglaterra, e Pedro
Álvares de Portugal. As riquezas estavam disponíveis, à mercê. O povo índio não
progredira no desenvolvimento de armas, eram indefesos. Os espanhóis logo
mandaram imediatamente tropas a cavalo, infantaria e canhões para roubar as
riquezas da civilização Inca e Azteca; os ingleses só muito tarde, em 1606,
mandaram famílias para colonizar o que chamaram de “novo mundo”, famílias que
fugiam da perseguição religiosa; os portugueses mandaram também famílias que
fugiam da perseguição religiosa, apelidados de degradados, e padres para
evangelizar os índios e colonizá-los com a intenção de os escravizar. No
processo de colonização, porém, estas nações ocuparam as terras índias,
mataram, assassinaram, roubaram, construíram impérios, desflorestaram. Pode
alegar-se que era o “espírito da época”, mas se o nosso espírito já não é esse,
devemos corrigir os erros.
- A
idiossincrasia indígena.
Continentes imensos, cheios
de caça, frutos, cereais, rica flora e costas piscosas, com uma população relativamente
reduzida foram a fonte de sociedades tranqüilas – embora houvesse guerras entre
algumas tribos. Sabiam que perder uma batalha os expulsaria dali, mas que havia
mais terra disponível para propiciarem a suas crianças uma vida tal como a de
seus avós. Mudava o lugar, mas não o tipo de vida. Evoluir suas tecnologias não
era necessário. Viviam no paraíso e só tinham que temer a si mesmos, mas com a
certeza de que nada nem ninguém os varreriam da face da terra. As aldeias indígenas
não tinham paliçadas. Eram um convite à visita, à sociedade entre os povos,
fumavam o cachimbo da paz como evento social. Da mesma forma, na América do Sul
as aldeias também não tinham paliçadas, e as tabas eram construídas com
madeira, não com lona como na América do Norte, porque conheciam uma
agricultura incipiente, a da mandioca, que lhes permitia uma fixação no solo.
Contrariamente aos europeus, tomavam banho amiúde, e sua religião não lhes vedava o sexo. Não havia pecado nem acima nem abaixo da linha do Equador nas Américas. Maias, Astecas, Incas, faziam a guerra para exploração. Tinham uma religião cujo deus era o sol, e praticavam sacrifícios humanos. Suas cidades eram fortificadas. Expandiram-se desde o sul da América do Norte até o sul da América do Sul. Em algumas tribos deste continente pratica-se a eutanásia. São idiossincrasias. Em alguns países do mundo ainda se pratica a pena de morte, que não deixa de ser uma forma de eutanásia, e há pais que abandonam ou matam os filhos recém nascidos. Há filhos que matam os pais, mas não como idiossincrasia, mas como desvios de conduta.
O confronto com civilizações
poderosas vindas da Europa colocou as populações indígenas num dilema: Ou se
deixavam assimilar ou lutavam pela posse do seu território, pela própria vida.
- A
exploração
Apoiadas pela igreja
católica, as sociedades de imigrantes da Europa na América do Sul tentaram
escravizar as populações indígenas que previamente tentavam converter ao
cristianismo. Não foram bem sucedidas porque os povos índios “eram
preguiçosos”. Por ignorância ou propositalmente, não entenderam que a preguiça
se devia a uma tradição cultural que não tinha os mesmos princípios dos povos
europeus: O povo índio levava a vida de forma natural, sem pressas, cultivava a
sua mandioca, pescava, caçava, colhia frutos em floretas ricas. Não podia
entender a pressa, a produtividade exigida pelo capital. Para os europeus, os
indivíduos tinham que produzir muito mais do que recebiam de seus patrões para
lhes darem lucro. O problema não estava exata e simplesmente apenas na
diferença entre o que um índio recebia e o que trabalhava, mas no que recebia:
Colares de contas, machados, facas e roupas eram muito pouco, ainda mais quando
lhes reviravam do avesso a sua religião, os seus costumes e os enchiam de leis
que eram obrigados a cumprir e que não lhes fazia o mínimo sentido. Há culpa da
igreja nesse aspecto. Ela cooperava com o poder de estado e com o poder
econômico. O povo índio agora tinha que trabalhar para ganhar algo que pudesse
trocar por comida quando antes não tinha que obedecer a nada disso e a comida
nada lhe custava além do seu trabalho em plantar, caçar, pescar, colher.
Eram dois mundos em choque.
Um desarmado e o outro, em muito menor número, armado até os dentes. Essa
desigualdade deixa marcas porque tem um ingrediente adicional à perda: a
injustiça, e não foi muito diferente a sucessão de fatos que levaram quase à
extinção as populações indígenas na América do Norte e na do Sul. Já na América
Central, os espanhóis encontraram uma civilização brilhante, rica, evoluída,
porém sem armas, e ainda, por triste coincidência, crentes que os europeus eram
comandados por um deus menor de seu panteão. E os acolheram de braços abertos
abrindo-lhes as portas para a entrada de seus cavalos, sua infantaria e
canhões. Para lhes limitar os movimentos e os confinar de forma mais ou menos
aceitável, os europeus delimitaram-lhes reservas mais ou menos
auto-suficientes.
- A
evolução do processo de colonização
Na América do Norte não
houve templos a demolir. A cavalaria aniquilou aldeias inteiras, o governo
rasgou contratos, as áreas de reserva ou eram insuficientes para as tribos, ou
se localizavam distantes do local onde costumavam viver, muitas vezes sendo
deslocadas para locais mais frios ou áridos. Em situações como estas o que se
esperava era a revolta dos povos indígenas, dando assim “razão” aos governos. A
cultura indígena vê-se ainda nas roupas e nos adornos, mesmo de assimilados,
nos hábitos e nas expressões de arte.
Na América central A igreja católica construiu templos sobre as pirâmides incas, astecas, maias, mas não conseguiram uma “limpeza étnica” como aconteceu nos EUA: A maioria da população mexicana é mestiça.
Na América central A igreja católica construiu templos sobre as pirâmides incas, astecas, maias, mas não conseguiram uma “limpeza étnica” como aconteceu nos EUA: A maioria da população mexicana é mestiça.
Na América do Sul a violência não teve a relevância que se verificou nas duas outras Américas, mas nem por isso as populações indígenas se beneficiam das leis que os deveriam proteger, muitas delas devidas aos irmãos Vilas Boas: A fiscalização das reservas é incipiente, as leis muitas vezes desconsideradas, suas terras continuam a ser invadidas e alagadas por barragens, ora pelo próprio governo, ora por colonos. A usina de Belomonte é típica de alagamento e invasão de terras índigenas
- O
futuro.
A população mundial cresce
de forma assustadora. Por volta do ano 2.500 a população total de nosso
planeta, colocada lado a lado, ombro a ombro, cobrirá toda a superfície. Para
que todos caibamos neste planeta, Será necessário que, dentre outras medidas,
se desenvolvam espécies de recursos alimentares com maior concentração de
nutrientes; que mais áreas do planeta sejam ocupadas para a pecuária, criação
de gado, animais de corte e plantações; que a piscicultura se desenvolva muito
mais; que as populações se concentrem cada vez mais em cidades e em edifícios
cada vez mais altos e auto-sustentáveis; que os oceanos sejam ocupados com
habitações.
Esta pressão certamente
incidirá sobre as populações indígenas. Cabe aos homens e mulheres de boa
vontade minimizar este impacto.
Se desejar participar para
mudar o estado letárgico em que nos encontramos com relação a este importante
assunto, fale, escreva, divulgue, faça parte de grupos e organizações que lutam
pelos direitos dos índios. Mobilize-se sem pensar em quanto ou no que vai
ganhar com isso!
Rui Rodrigues
[1] Este
artigo baseia-se em dados e estatísticas
que podem ser obtidas na NET, e em fatos que são de domínio público.