Com minha filha na Saara
Uma pinhata, um incêndio na Saara e
Django.
Eu e minha filha acordamos cedo,
como combinado, para irmos ao centro do Rio de Janeiro, lugar que realmente
aprecio sem moderação, desde os tempos em que fazia compras de aviamentos para
a loja de meu pai, ou entregava encomendas da loja.
Era uma loja pequena que
faturava bem, ali perto da Saara, na antiga rua do Costa, depois chamada de
Alexandre Mackenzie, perto da Light e do Itamarati. Meu pai e meu tio, únicos
sócios da loja, tinham bons fregueses. Com um povo tão simpático como o
carioca, nunca me preocupei em guardar os nomes de todas as ruas. Decorei os
das principais e do resto eu tinha uma vaga idéia. Então, sempre perguntava. Por
isso quando cheguei com minha filha naquele enorme Grande Bazar sem cobertura
ao ar livre, por volta das dez da manhã eu estava mais perdido que bala em
tiroteio. Tentei relembrar os nomes das ruas e de algumas lojas, que logo me
ocorreram. Mas só das ruas principais. Foi por isso que não soube dizer à minha
filha de que rua vinha tanta fumaça. Havia carros de bombeiros em todas as ruas
coletando água dos hidrantes que ainda funcionavam. A prefeitura do Rio de Janeiro
é uma prefeitura só para “emergências”. Não há fiscalização para prevenir
sinistros. Naquele sábado, seis casas comerciais famosas, cada uma ao lado das
outras, queimaram por completo. O fogo ter-se-ia iniciado ás dez da noite do
dia anterior, sexta-feira. O cheiro de polímeros, plásticos, panos, tudo
queimando e fumegando inundava os ares e a queima não parava. Correu um boato
de que teria sido fogo posto, criminoso. É possível, mas mais possível ainda
teria sido a falta de manutenção e fiscalização. Os prédios são muito antigos,
as instalações elétricas correm por conduites expostos e em contato com
materiais inflamáveis nem sempre seguindo os padrões da ABNT, normas que
regularizam as construções e a engenharia em todo o Brasil. O interior das
lojas, onde se guardam os estoques, são arrumadas à “trouxa mocha”, sem
critério algum. Era esse o medo que meu pai tinha sobre incêndios. Mesmo com o
seguro, este não pagaria todo o prejuízo, ainda mais com a inflação corrente na
época, nos idos de 60.
Quando saíramos de casa, o
carro não pegara. Foi preciso dar uma “chupeta” numa loja mecânica da esquina
perto de casa. A bateria estava arriada. Foi carregando pelo caminho. Deixamos
o carro no estacionamento particular e fomos às compras. Coisas pequenas para o
aniversário da minha netinha. Uma bonequinha com vida que sabe falar muito bem
o quer fazer, tudo sozinha, como a mãe quando tinha a mesma idade, e sabe o que
quer. Inventa historinhas, sim, mas não mente. Já aprendeu a mudar de assunto
quando não lhe interessa. Fomos comprar material para fazermos uma “pinhata”
com forma de Pirata. Basicamente uma caixa de papelão pintada e ornamentada,
oca, onde se enfiam balas e doces, e que depois é destruída à paulada pela
aniversariante, deixando cair do alto uma cascata desses doces e balas. É uma
forma meio cruel, mas bater em pirata é sempre um prazer. Tivemos que entrar em
várias lojas quando poderíamos ter comprado tudo numa só. Essa à qual iríamos
foi uma das que pegaram fogo no dia anterior. Andamos de um lado para o outro,
o que para mim foi até muito legal, por reavivar a memória dos tempos em que
meu pai ainda era vivo.
Interrompemos as compras
para fazermos o que não fazíamos há anos: Comer uma gororoba engordenta do
Mcdonalds. Dois lances de escadas cheios com uma fila de mulheres ávidas pelo
uso do banheiro. A maioria evidentemente não era cliente. Um serviço público
prestado pela loja em substituição dos serviços que deveriam ser
proporcionados, grátis, pela prefeitura cada vez mais imperfeita. Homens, só
dois e um deles era eu. Não consegui entender porque tantas mulheres querendo
usar o banheiro e apenas dois homens. A desproporção deveria ser de umas vinte
mulheres para cada homem. Saí do estabelecimento com vontade de só voltar a
comer um quarteirão daqueles daqui a uns dez anos. O melhor foi a batata frita.
Depois voltamos a respirar
aquele ar de rescaldo de incêndio de casa velha e aproveitamos para tirar
algumas fotos experimentando fantasias das lojas. Quando chegamos ao
estacionamento, o carro teve que ser empurrado para pegar. Voltamos à loja do
mecânico lá da esquina, e compramos uma bateria nova. Aquela já tinha dado tudo o
que podia dar de energia. Sobrou o casco e um óxido verde que teve de ser limpo
num dos bornes da bateria. Como a netinha estava com o pai, aproveitamos para
ir ver o filme “Django” do Quentin Tarantino, na sessão da noite.
Saí do cinema às
gargalhadas, tudo resolvido com muito catchup simulando sangue, bandidos
conscientes até a morte, nada a comentar a não ser a genialidade do diretor ao
inventar a história e dar-lhe vida de forma tão direta, tão forte, tão tudo de
bom. Sempre fica a lembrança de uma carroça de um dentista com um dente enorme
balançando no teto ao sabor das irregularidades das estradas americanas do
velho Oeste. Excelente banda e efeitos sonoros.
Valeu o dia! A netinha vai
se divertir com a pinhata do pirata. Quando ela crescer não lhe levarei
sanduíches do Mcdonalds, nem do Burguer King, nem do Bob’s.
Rui Rodrigues
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