Uma visão, uma surpresa e uma vingança.
O esqueleto do cachorro era
metálico, suas patas almofadadas como as dos gatos. Não tinha carne, órgãos,
pele. Deveria ter saído de uma sala, saído pela porta entreaberta, descera as
escadas e chegara à rua. Saiu disparado na noite iluminada da cidade em direção
à praça pública. Passou pelo casal que se amava louca e explicitamente num dos
bancos da praça vazia, e tomou o caminho de umas moitas. Um grilo cantante
interrompeu seu trinado, deixou que o cachorro passasse, e retomou seu diálogo
noturno com a arte e a vaidade de um Pavaroti logo que o cachorro passou a uns
escassos centímetros de distância. Atrás
das moitas, o cachorro desapareceu como se nunca tivesse existido. O casal
terminara seu ato sexual imperativo, ávido. A moça levantou-se do colo do
rapaz, deram uma arrumada nas vestes, e saíram da praça de mãos dadas, ela com
o rosto descansando encostado no ombro do rapaz. Um táxi apressado passou
levantando respingos do asfalto. Começara a chover. Das moitas emergiu um
pequeno clarão azulado e ouviu-se um zunido como de descarga elétrica. Depois o
silêncio de alguns sinais de trânsito comandando um trânsito inexistente,
alternando o verde, o amarelo e o vermelho, consumindo energia elétrica como se
a cidade ainda existisse. Pelo menos foi o que o mendigo pensou ter visto
enquanto se dirigia para o centro da cidade. Tinha saído de sua casa no
subúrbio onde guardava as sobras dos trocados que conseguia durante o dia,
cheirara um pouco de cola de sapateiro para aliviar a barra. Passaria a noite
no centro. Lá havia comida.
Mais para o centro da cidade, onde os prédios eram mais antigos, quase caindo, e as lojas eram mais pobres e remediadas, de trânsito congestionado durante o dia, àquela hora da noite estava vazio, as ruas ainda cobertas de lixo dos transeuntes. Mendigos dormiam pelas ruas embrulhados em papel de jornal, cobertores velhos, depois de comerem os restos da comida dos restaurantes e bares que encontraram nas lixeiras. Já não havia transeuntes, as portas das lojas estavam fechadas. A cidade estava morta. Aqueles “pontos” eram disputados de forma até violenta entre os mendigos. Suas mortes não costumam sair nos jornais nem o móbil do crime. A não ser quando se tratava de violência de não mendigos contra eles. Um deles jazia aparentemente adormecido, um olho para fora do cobertor, atento ao movimento. Sabia que havia quem estivesse interessado em eliminá-los. Já assistira de longe a um assassino desse tipo e o conhecia de vista. Quando um mês atrás dois indivíduos trocaram tiros e um deles caiu morto, acercou-se, recolheu a sua arma e as balas que encontrou nos bolsos, e guardou-a.
Cerca de uma hora depois,
apareceu um motoqueiro com capacete e uma bolsa a tiracolo. Parou a moto,
encostou-a no meio fio. Desceu. Olhou à volta. Não viu ninguém de pé, apenas
sombras humanas adormecidas nas soleiras de portas de lojas, normalmente sob
marquises para se protegerem da chuva. Escolheu um deles e caminhou em sua
direção. A uma distância de mais ou menos uns quatro passos, parou, abriu a
bolsa e sacou uma arma. Apontou-a na direção do mendigo mas não teve tempo de
atirar. Um lampejo brilhante como o sol, emanado do corpo do mendigo cegou-lhe
a visão e seu corpo sentiu um impacto que o fez cambalear. Sua pressão baixou a
tal ponto que não tinha forças nem para se levantar, mas estava ainda
consciente quando uma sombra se interpôs na sua frente, lhe tirou o revólver
que nem tinha forças para segurar e lhe arrancou o capacete deixando ver seu
rosto. Ouviu inerte mas consciente, os olhos começando a turvar-se:
- Escuta, filho da puta...
Estás morrendo quando pensavas que ias matar. Deves estar frustrado, fodido. O
cara que ias matar era eu. Agora que me conheces, não precisarás de olhos para
onde vais.
E com aqueles dedos ainda
sujos de comida, enfiou-os nas órbitas do moribundo e arrancou-lhe os olhos.
Depois se levantou e seguiu seu caminho de volta para casa. Iria de metrô. Tirou
uma muda de roupa e trocou-se ali mesmo, numa esquina escura, mudando a
aparência.
Eram umas dez horas da
manhã. A chuva parara. A cidade sorria. Quem tinha saúde caminhava pelas ruas,
dirigia veículos, abria lojas, trabalhava. Quem não tinha estava em casa ou em
hospitais. Muita gente estava morrendo, sofrendo, mas o mundo nunca sabe desses.
As notícias são sempre dos outros, os que estão vivos ou acabaram de morrer. De
passagem por uma banca de jornal, o mendigo olhou as manchetes. “Homem armado
morre no centro da cidade vítima de bala. Olhos arrancados. Vingança?”. Era um
incentivo a permanecer no anonimato. Como poderia provar que agira em legítima
defesa? Qualquer advogado, por pior que fosse, o incriminaria se fosse
descoberto. Seguiu seu caminho em direção ao centro da cidade. Ao passar em
frente à igreja do bairro, quase sempre fechada, viu sair um garoto de seus
nove anos, chorando sufocado. Tentou parar o garoto para conversar com ele,
ajudá-lo, mas ele fugiu. Correu atrás dele e alcançou-o no quarteirão seguinte.
Perguntou-lhe o que tinha acontecido. Então o garoto contou em detalhes, a voz
entrecortada pelo choro. Há poucos instantes tinha sido abusado pelo padre. Ele
tentara de outras vezes, mas sem ser objetivo e a criança não entendera muito
bem. Mas hoje o padre perdera o controle e o obrigara a praticar o ato.
Envergonhada, a criança fugira. Logo em seguida, o garoto saiu correndo
novamente. Deveria estar arrependido de ter contado a sua triste história. O
mendigo deixou que fosse. Voltou para trás e bateu na porta dos fundos da
igreja. Um acólito muito jovem atendeu. Disse que a igreja estava fechada e que
o padre não estava. O dia da sopa era aos sábados antes da missa. O mendigo
enfiou o pé na porta e impediu que fosse fechada. Disse ao acólito:
- O padre te ensinou a
mentir, meu filho? Que mais sabes e não podes contar? – E mostrou-lhe um
distintivo falso da polícia federal. Ouviu perfeitamente os sons saindo do
traseiro do garoto e o cheiro logo se espalhou pelo ambiente. Fez-lhe um sinal
para que saísse da igreja. O acólito saiu correndo. Então entrou. Encontrou o
padre na sacristia. Quando o viu, o padre arregalou os olhos. Na mão do mendigo
havia uma pistola engatilhada.
- Vim para saber do menino,
padre, aquele que foi abusado pelo senhor hoje pela manhã, alguns instantes
atrás. Tem alguma coisa a dizer?
- Não me mate. Deus não lhe
perdoaria e você iria para o inferno, meu filho. Não sei do que está falando,
mas juro que é mentira. Crianças não sabem o que dizem.
O padre não pode dizer mais
nada. O tiro partira inesperadamente á queima-roupa, atravessando-lhe um pulmão.
O segundo atingiu-lhe o baixo ventre. Já no chão, o padre ainda conseguiu ver o
brilho de uma navalha riscando o ar contra a luz filtrada dos vitrais da
igreja. Depois viu um prepúcio e dois colhões em frente a seus olhos. Morreu
sufocado por seus próprios órgãos sexuais ensangüentados.
Rui Rodrigues.
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