Passou-se mais de meia hora, os queijos e as torradas estavam no fim e a garrafa com uns dois dedos de vinho esperando no fundo para serem despejados, quando vimos uma mulher deslumbrante caminhar na sua direção. Aparentava ter menos de cinquenta anos. Adivinhou-se que era a "mulher esperada" porque ele levantou a mão chamando minha bela secretária Anita Castro, e pediu mais uma garrafa e uma tábua de queijos, rodando a mão sobre a mesa com o dedo indicador apontando para baixo, as sobrancelhas esticadas ao máximo, pipocando por cima do aro dos óculos. A beleza das duas mulheres e a jovialidade do senhor chamaram a atenção dos clientes e em breve se formou uma roda de conversa. O senhor manuseava algumas fotos mostrando cavalos. A qualquer momento se esperava que lhes fizesse menção.
- Acabo de chegar de Orenburg, na Russia. Fui ver uns cavalos selvagens, que têm 64 cromossomos em vez dos 64 que todos os cavalos têm.
- E o que isso quer dizer?
- Quer dizer que são cavalos pre-históricos. Estavam extintos na natureza e havia uns poucos em zoológicos. Na França conseguiram que se reproduzissem e recentemente foram levados para seu habitat natural, nas estepes russas, para Orenburg. Estive lá e eles me deram um sentido da vida.
- Não entendi como!
- Vejam essa foto dos cavalos gozando de um momento de prazer, relaxados, curtindo a vida em grupo sobre a neve. São chamados de cavalos de Przwalski, o nome de um coronel russo que descobriu um crânio e um couro dessa espécie na China. O mesmo tipo de cavalo que foi desenhado nas cavernas de Lascaux há cerca de 15.000 anos.
- Mas como lhe deu um sentido da vida, senhor?!...
- Nogueira...Meu nome é Nogueira!
- O que percebeu no sentido da vida, senhor Nogueira?
- Reparem bem... Esses cavalos da foto gozam de um bom momento da vida, relaxados, e tanto quanto sabemos não percebem que existem, porque não possuem cérebro desenvolvido capaz de "idealizar" o amanhã. Apenas nós, humanos, temos essa percepção que nos torna inteligentes.
- Sim... Mas... E então?
- Então que de repente, naquele frio das estepes, ao olhar aqueles cavalos pré-históricos de espécie recuperada, imaginei um futuro em que a humanidade se possa sentir assim, ao final de longa jornada de milhões de anos de existência. Uma história que não serviria para nada por estarmos em extinção, um presente melancólico por falta de continuidade no futuro e um futuro que não valeria a pena viver pelo sofrimento de sentir todos os sonhos mortos. Assim como se nossa existência não tivesse valido a pena, como se nunca tivéssemos existido.
- Então acha que o que vale mesmo é o presente, não é?
- Sim...E o que se faz com ele visando o futuro. Nos divertimos mais em grupo do que a sós. Tirando a diversão, o resto é o sofrimento da sobrevivência.
- Mas, senhor Nogueira... Se nos preocuparmos apenas com o presente, como podemos garantir o nosso futuro?
- Divertindo-nos em estudarmos e pesquisarmos para o futuro.Nossa salvação como espécie está neste planeta e fora dele. precisamos sair daqui. Não temos quem nos salve como salvaram o cavalo-de-przewalski.
- E rezando ao Salvador?
- Nem a Buda, nem a D`Us, nem Alah, nem a Vishnu...Dizem que, da ultima vez que um Deus se intrometeu diretamente na existência da humanidade e no planeta Terra, foi para mandar um diluvio que nos deixou quase na extinção, tal como os cavalos...
- Numa situação dessas, como ficaria nossa economia, com todo mundo voltado para a exploração, colonização ou expansão espacial? De onde viriam os "lucros" se nos outros planetas não há vida para explorar economicamente?
- Há recursos minerais e ninguém que os reclame. Alguns aqui na Terra já estão escassos. Nosso lixo e terras contaminadas poderiam ser levadas para lá.
- E porque ainda não viram isso e estamos tão atrasados na pesquisa espacial?
- Por que gastamos nossas verbas em guerras. Falta inteligência aos que elegemos para presidentes e reis. São muito "imediatistas". As industrias voltam-se para o consumo populista da propaganda e da guerra e perdem-se no que deveria ser mais importante.
- O imediatismo pode trancar-nos definitivamente numa caverna para todo o sempre sem que haja alguém que lhe desvende as pinturas ou nos classifique os ossos.
O tempo lá fora do Bar, agora já pela noite, tornou-se sombrio e tempestuoso. Começou a chover. Da rua vinham os sons de pneus rolando sobre água, ouviram-se trovões, raios riscaram os céus trazendo novos fregueses. Alguns clientes são sempre surpresas especiais,
® Rui Rodrigues