O menino e os gibis.
Antevira o futuro, agora já
presente, pela nuvem que costumava pairar em dias negros de sua infância, de
sua juventude. O pai emigrara para um estrangeiro muito longe e a tia histérica
que cuidava dele batia-lhe todos os dias com cinto, chinelo, o que tivesse à
mão. Não raro lhe davam ataques que a deixavam contorcendo-se no chão por
breves instantes. Depois ela levantava-se e tudo voltava ao normal. Freud teria
certamente uma boa conversa com ela que a faria terminar com as divergências
entre o seu alter-ego e o seu ego, mas naqueles tempos ainda se limpavam
chaminés, os tempos eram difíceis e não tinham dinheiro para consultas. Ela só
melhorou quando casou com um homem bom, gordo, calado, bonachão. Depois,
passado pouco tempo, ela, que sempre vivera sozinha, começou a irritar-se com o
marido, e novamente o garoto se viu mergulhado em dias negros, quando então se
recolhia a sua nuvem. A nuvem podia ser interpretada porque falava através de
sua própria linguagem. Falava através de livros de história em quadrinhos. O
futuro estava todo lá, contado de forma acessível a qualquer um. O que a
criança não sabia muito bem era se as histórias faziam o caminho para o futuro,
ou se o futuro simplesmente se revelava nos livrinhos de histórias.
Sua personalidade foi sempre
construída entre escolhas, dia a dia, reagindo a cada atitude do mundo, boa ou
hostil, por reação contrária ou por adoção do comportamento, da idéia, da
situação. Procuraria jamais bater em crianças, defenderia os fracos, teria que
ser um forte até mesmo na determinação. Hoje, muitas décadas passadas, olha
para o passado de vez em quando e vê, relembra, revê o que sempre lhe foi
óbvio: Todas as histórias infantis eram tristes ou tinham seu lado triste. Até
nas canções infantis. Talvez o futuro viesse a ser triste. Não o seu próprio
futuro, mas o futuro da humanidade.
Quando assistiu ao filme
“Pinóquio”, um livro de histórias em quadrinhos contado em movimento,
preocupou-o mais a raposa que desviava o boneco vivo de madeira do que propriamente
as suas mentiras, porque estas por vezes eram necessárias para fugir do furor
crônico da tia, enquanto o ser desviado de seu caminho por pessoas
interesseiras e que não estariam verdadeiramente interessadas nele, era muito
mais importante. Notou que Pinóquio só tinha um pai. Ele não tinha mãe nem
madrasta. Ele tinha uma tia que dizia cuidar dele, mas que era como se fosse
uma madrasta. Talvez um dia o mundo não tivesse mais mães desse tipo, talvez os
homens não casassem, talvez só nascessem filhos amados, desejados, que não
fossem largados. Quem escreveu esta história não gostava muito de mulheres.
Assistiu ao filme “João e
Maria”, e percebeu um mundo hostil às crianças, em que uma madrasta aconselha o
pai delas a largá-los na floresta porque não tinham o que comer. O pai
concordara e elas vão parar na casa de uma bruxa cega que tinha construído uma
casa de doces e chocolates para atrair as crianças que engordava para depois as
comer. O pai e a madrasta perdem tudo. Joãozinho mostrava sempre um osso de um
dedo á bruxa, para mostrar que estava magro. Livres da bruxa que Maria consegue
matar reencontram o pai que os recebe de braços abertos porque lhe trouxeram os
tesouros da bruxa.
O menino aprendeu com esta
história que tinha de fugir das bruxas, das madrastas, e que teria que ser
independente para não depender de pai cativado por elas. Quem escrevera esta
história não gostava muito de mulheres.
Folheou livros e livros de
histórias em quadrinhos de super heróis: Batman, O Fantasma, Superman, Homem
Aranha, Tarzan, todos muito poderosos beirando o endeusamento, mas nenhum era
casado, nenhum tinha filhos ou filhas. Tinham dinheiro mas não se sabia de onde
vinha. Tarzan preferia viver com uma macaca, mas soube-se depois que era na
verdade um macaco. Os que escreveram estas histórias não gostavam muito de
mulheres.
Branca de Neve divertia-se
com os sete anões, demonstrando uma juventude promiscua. Os anões eram
trabalhadores e extremamente ciumentos, cercando-a de todo o conforto. A
madrasta dela era linda também, mas transforma-se numa bruxa velha e caquética
para matá-la com um sono eterno produzido por um veneno contido numa maçã. Traidora e ingrata, Branca de Neve acaba por
apaixonar-se por um príncipe que herdaria a riqueza dos pais. Afinal, os sete
anões eram apenas trabalhadores de minas que produziam qualquer coisa que não
os fazia enriquecer nunca. Quem escreveu esta história não gostava muito de
trabalhadores nem de mulheres.
Ali Babá não era casado e
rouba uma caverna de ladrões cheia de riquezas mas não as devolve aos que foram
roubados. Estes ficaram sem as suas economias. Casa-se com uma empregada que
nem se sabe se era bonita ou feia, mas que tinha moral e ética, por avisar Ali
Babá que os ladrões estavam escondidos em grandes ânforas de barro para matá-lo
e ao irmão ambicioso que tinha ido sozinho na gruta também para roubar.
Salvou-o Ali Babá, e por isso os outros ladrões os procuravam para se vingarem.
Quem escreveu esta história achava que se pode roubar impunemente sem devolver
o dinheiro roubado a seus donos. Não se vê outra coisa neste maravilhoso mundo
novo.
A Gata Borralheira é uma
irmã perseguida que sofre bullyng por parte das irmãs e da madrasta. Havendo um
baile e impedida de ir, A Gata Borralheira recebe ajuda de uma fada “irreal” e
vai á festa perdendo um sapato na pressa de voltar para casa. A madrasta e as
irmãs são reais, a expressão do mal, mas a fada, que expressa o bem, é de
mentirinha e usa uma vara para fazer milagres. O príncipe, inveterado pedólogo,
apreciador de pés femininos pequenos, irá torrar toda a grana do pai casando-se
com a dona do sapatinho perdido. Quem escreveu esta história deixou patente que
uma em cada cinco mulheres é terrível, ruim. Não gostava de mulheres
certamente.
O pato Donald tinha três
sobrinhos e não era casado. Vivia amando uma garota, a Margarida, que tinha um
amante chamado Gastão e era rico. Os três porquinhos viviam sozinhos numa casa
instável porque o Lobo Mau as derrubava para comê-los. Mickey tinha uma
namorada, a Minnie, mas não viviam juntos. Ele vestindo uma cueca e ela uma
minissaia curtíssima. Ambos viviam sós. Amavam-se mas jamais se casaram. O
casamento não era recomendável para quem escreveu estas histórias. Bom mesmo
era a eterna namorada sem compromissos com quem se pode dar uma rapidinha e até
passear de vez em quando.
Na história do chapeuzinho
vermelho, a mãe e o pai não aparecem, a avó vive sozinha e o lobo mau quer
transar com as duas. O gato Tom não tem uma amiguinha chamada Gerry. Gerry é um
rato macho que o Tom quer comer de qualquer modo.
O menino da nuvem lidou com
tudo isto pensando nas razões que levavam os autores a escrever histórias
tristes para crianças, que dentro de um quadro imaginário incluíam mensagens
subliminares esclarecedoras de suas próprias experiências infantis. Ou tinham
tido uma madrasta das brabas, ou sofrido bullyng, ou eram gays por opção ou
natureza. Decididamente o mundo era muito parecido com as histórias em
quadrinhos, e, ou apontavam para um comportamento futuro, ou faziam o futuro do
comportamento.
O menino já não vê nuvens em
sua vida. Casou cedo, teve seus filhos, suas mulheres, não foi príncipe nem
pobre, enfrentou ondas e vendavais. Não está na idade do lobo mas não é mau e
gosta das mulheres. Teve a sorte de perceber que o mundo nada mais é do que uma
história em quadrinhos contada de forma real todos os dias, mas já se abstém de
ler essas histórias. Há novas edições e novas histórias no mercado. Calvin tem
um amigo confidente de pelúcia, um tigre, mas é ainda muito criança. Tem pais ainda
casados e só detesta a professora. Já é um progresso. Mas bom mesmo era a literatura de cordel.
Rui Rodrigues