Andou aí pelo mundo doando o corpo em troca de
carinhos...
(crônica de uma alma em
qualquer lugar do vetor tempo e espaço, independente de gênero).
... Lavando-se e
perfumando-se para atrair, para lavar o cheiro e o sabor dos dias já passados,
como se assim toda a alma ficasse lavada. Carência de companhia, carência de
amor mesmo que só desejo, sem nunca ter encontrado respostas para o mundo em
que viveu. Teve muito tempo de sobra em sua vida, mas nunca desejou o
conhecimento com os calafrios do suor do estudo porque o imediato era-lhe muito
mais importante e premente. Ajudou as outras almas certamente, e há até
testemunhas, mas sempre o fez ora para apaziguar a sua moral que lhe apontava
um rol de erros irreparáveis com os quais não podia conviver, ora para que lhe
dissessem, até pelas costas, que ali estava uma boa alma. Chegou até a ajudar
almas para lhes conquistar a admiração, e até por compensação de seus desvarios
anteriores. No dia de seu funeral seu corpo saiu inerte e duro de uma cama de
hospital para a laje também fria do chão do necrotério, ali colocado
displicentemente por funcionário apressado que não encontrou outro lugar
enquanto aguardava o rabecão. Um mar de gente em passos comedidos e lentos
acompanharam o féretro murmurando de olhos postos no chão que aquele corpo,
agora sem vida, tinha sido uma grande alma.
Tinha vivido - na pobreza e na riqueza - sob a capa de
uma pele genética que diziam ser linda na cor, na textura e na forma, apenas
uma capa ilusória de um corpo interior sanguinolento da ponta dos pés ao mais interior
de seu cérebro, preso com músculos moventes a um esqueleto ósseo. Quem via o
corpo o admirava. Quem lhe via a alma se dividia: uns a amavam, outros a
detestavam. Mas viveu a vida intensamente apreciando flores pelo cheiro e pela
aparência, olhando o firmamento sem saber como se sustenta sem cair,
trabalhando com a firme convicção que seu salário serve apenas para se
sustentar e seu trabalho para compensar o favor de lhe terem dado essa
oportunidade de trabalhar. Os impostos eram um bem necessário não importava
como fossem usados. Não era seu atributo julgar o que não podia entender. E se soubesse, se tivesse todo o conhecimento
do mundo, que diferença lhe faria? Sempre achara que o que justificava a vida
eram os bons momentos, a alegria, o conforto, a segurança, o prazer e para isso
era necessário ter dinheiro. Como consegui-lo tinha que parecer honesto aos
olhos de duas entidades: A justiça e o conceito dos amigos e conhecidos. Se aos
olhos de alguma destas entidades seus atos não parecessem honestos, poderia
perder a liberdade ou o convívio. Sua vida passou então a ser dependente de sua
esperteza em apregoar seu lado bom, esconder seus males e suas maldades na
vida. Quem via essa alma escondida num corpo coberto por uma pele bem dotada
geneticamente, jamais poderia perceber o rio negro que lhe inundava o dia a
dia. O mundo era de aparências, de sorrisos, de mostrar sentimentos treinados
em família, nas escolas, em sociedades, também escondidos em família, nas
escolas e para as sociedades. A teatralidade não como expressão para divertir,
mas como expressão para sobreviver o melhor que pudesse. Tinha sido assim a sua
vida, sempre caminhando ao longo de um corredor cheio de portas fechadas,
outras abertas, algumas fechadas que pôde abrir, algumas abertas que não
escolheu para entrar.
Teve que passar por cima de
muitos conceitos e muita gente durante sua breve vida. Primeiro começou a
transgredir em pequenas coisas, como roubar um brinquedo de outra criança ou
comer biscoitos sem autorização. Aprendeu que as pessoas cuidam muito desse
tipo de bens materiais e se cuidam muito para não serem roubadas. Não valiam o
risco de tentativas de furto que poderiam ser detectadas e causar-lhe um enorme
dano irreversível a seu conceito na sociedade em que vivia, mas aos poucos foi
aprendendo que só havia dois meios de lesar os outros sem que percebessem: Ou
tendo poder para amedrontar fazendo calar a vitima e impor sua vontade, ou
agindo sobre a ignorância alheia, quando só muito tarde as vítimas percebiam
que tinham sido logradas, sem provas para apelarem junto à justiça, ou contarem
a verdade para a sociedade à sua volta. As vítimas geralmente escondiam os
fatos para não passarem por perdedoras, perderem seu conceito na vizinhança e
serem confundidas com pessoas menos dotadas de inteligência. Nenhuma alma
vivente gosta de ser considerada menos inteligente, menos esperta ou
perdedora. Percebeu também que o mundo
em que vivia era construído em grande parte sobre uma forte base conceitual de
amor próprio. Forte por ser difícil de amenizar, mas fraca porque são apenas
conceitos de um tipo de bem que se deseja e não que se possua realmente: As
pessoas em geral não vivem neste mundo o que são, mas o que gostariam de
ser.
O momento em que mais foi
comentada aquela alma, em toda a sua vida, tinha sido no dia de seu funeral.
Depois, a cada dia que se passava, menos de seus conhecidos lhe comentava a
existência, até que apenas foi lembrada por algumas de suas vítimas, em suados
pesadelos noturnos, porque nunca conseguiram superar as suas perdas. Vista a
humanidade como um enorme conjunto de corpos ambulantes que se movem por uma
química molecular reprodutível, nada precisa ser explicado ou ter uma
explicação intrínseca, porque a reprodução e a manutenção da espécie justificam
mais do que o individuo por si mesmo.
Porém, visto o indivíduo como a parte que se reproduz, com ou sem alma,
com ou sem moral, se justifica do mesmo modo: Há que se reproduzir e adaptar
para a espécie não perecer nos vetores de tempo e espaço. As aparências
genéticas, os perfumes e os banhos são a parte de apresentação para o fim da
sobrevivência, as roupas parte de um figurino que deve estar sempre limpo e
atualizado. Nossas filtragens de quem nos acompanham na vida se fazem
considerando essas aparências e o aprendizado em separar o “bem” do “mal”, sem
considerarmos, porque nos é impossível, que o bem de um é o mal de outro e
vice-versa, num emaranhado de situações que nos escapam quase por completo: Não
podemos saber de tudo, e muito menos de um estado de espírito guardado num
corpo e que pouco se revela para o mundo tal como realmente é.
Não nos admiremos, pois, que
pessoas aparentemente intocáveis em sua moral e ética e nas quais acreditávamos,
venham a trair nossa imaginação em maior ou menor grau do que aparentavam ser.
Nós mesmos somos capazes de destruir a moral de um ser por um ato isolado que
nos interessava – desprezando todos os outros de moralidade irretocável -
exatamente para que possamos destruir a reputação desse ser que no fundo
queremos ver destruído? São muitos os matizes e as tessituras de nossa forma de
pensar, e para cada erro nosso conseguimos sempre lhe dar uma explicação
plausível que nos desculpa perante nós mesmos e os outros.
Andou por aí, como todos nós realmente andamos, doando o corpo em troca de carinhos ou guardando o corpo por falta deles como castigo ou autopunição, dando-nos “beijinho no ombro” como parte de um teatro da vida cuja função é a perenidade da espécie e não do indivíduo. E enquanto nos preocupamos com o nosso interior, é ele mesmo que é ambicionado por empresas, governos, que buscam conhecer-nos nos mínimos detalhes, quer para nos vender e estabelecerem preços de produtos em função de nosso perfil pessoal, quer para conseguir votos ou saber até que ponto uma população pode suportar o sufoco do governo sobre nossas vidas. Finalmente a humanidade se volta para dentro de si mesma, mas há que duvidar das intenções. Alguém já disse: - “Conhece-te a ti mesmo para poderes julgar os outros”, e sua intenção era exatamente essa. Três mil anos depois a frase começa a acontecer de fato, mas sem ninguém se importar em se conhecer realmente a si mesmo. O amor começa a ser decomposto em suas partes essenciais que antes pensávamos não existirem. Sempre pensamos que o amor era a parte mais nobre, pura e indivisível do sentimento, assim como se pensava sobre o átomo, até descobrirmos que o átomo é uma composição de partículas. A humanidade quer conhecer o indivíduo.
® Rui Rodrigues