As sociedades e os mecanismos de fuga
Impossível deixar de pensar
em Sigmund Freud quando se fala em sociedades e mecanismos de fuga. Admiro o
povo judeu: Já passou por muitas vicissitudes, por algumas diásporas, pelo
holocausto, e aí está, firme em suas convicções, trilhando um caminho ao longo
da história que sem dúvida é de admirar. Não entendo como se pode ser contra
este povo, a não ser por ciúmes, inveja. Alguns povos querem ver o povo de
Israel como perseguidor, pintando-o com terríveis cores. Ou não sabem ou não
querem ver como foram perseguidos. São sobreviventes da humanidade cega, aquela
que não quer ver nem ouvir nem sentir, porque estão alienados da verdade a
braços com seus interesses, ou até mesmo sem interesse algum. A verdade está na
história, e o povo de Israel nunca se alienou de suas convicções.
Neste artigo, que nem sequer
se pode chamar de ensaio, será impossível navegar pelas sociedades e pelos
mecanismos de fuga de forma científica, completa, de tal forma que não fiquem
dúvidas. As dúvidas persistem sempre ou por falta de conhecimento, ou por medo
de abandonar uma perspectiva confortável, ou até mesmo para não perder amigos
num grupo que se identifica por partilhar essas mesmas perspectivas. Isto acontece em qualquer roda de amigos, em
qualquer sociedade, seja ela política, militar, comercial, religiosa ou
qualquer outra. Indivíduos que abandonam os princípios ou as perspectivas de um
grupo acabam por se verem obrigados a abandonar essa sociedade ou grupo, ou
este as expulsa de forma induzida ou explícita.
De um conjunto de regras de
uma sociedade há sempre uma ou outra com a qual não se concorda. Somos todos
diferentes, não há nunca uma unanimidade, ainda que as aparências digam que sim,
para não se perder a “aceitação” implícita no grupo. Porém, no íntimo de cada
um, umas regras agradam, outras se suportam, outras são insuportáveis. Quando
as regras afetam de tal modo o nosso íntimo, saímos da sociedade ou tentamos
modificá-la, e esta última opção é sempre a mais difícil, quase sempre
impossível. São precisos muitos e muitas que discordem para que a sociedade se
modifique. Uma andorinha só não faz um verão. Nem meia dúzia delas, exceto numa sociedade a dois - ou a três, o famoso triângulo amoroso. Mas existem quadriláteros amorosos e até pentágonos e hexágonos.
A menor sociedade que se
conhece é a do casal com ou sem filhos. A grande verdade é que neste tipo de
sociedade restrita não há regras. E mesmo quando se explicitam regras ao longo
da convivência, elas vêm a ser alteradas de comum acordo ou de comum aceitação,
sempre dentro das “regras” que norteiam qualquer sociedade: umas agradam,
outras se aceitam e outras são quase insuportáveis. É hora de lembrar um ditado
muito popular: “Cada cabeça, cada sentença”. Sociedades formam-se,
desenvolvem-se e a não ser quando há uma bandeira e o envolvimento é muito
grande, como no caso das nações, normalmente acabam ao longo do tempo. Não há
sucesso nem vida eterna para as sociedades, qualquer uma, e mesmo as religiosas
têm um triste exemplo histórico: Religiões é uma questão de milênios, porque
novas verdades se descobrem sobre a existência humana que as tornam obsoletas. O
que não nos permite atentar para este fato histórico, é o nosso bloqueio
próprio: Como aceitar que o nosso mundo, agora tão estável, venha a desmoronar
porque nos abateram as verdades e o desconhecido passa a governar nossos
sentimentos e nosso futuro? Cremos que nestes casos, o melhor caminho é a
alienação. Buscamos mecanismos de fuga. Reforçamos nossas convicções e morremos
convictos. São as novas gerações que, livres das pressões de nós, os convictos,
que mudam tudo neste mundo, mas convenhamos que, à velocidade de gerações, demoramos
milênios para mudar.
“Vinde a mim as
criancinhas...” ou traduzindo-lhe as palavras, vinde a mim os que não estão ainda instruídos, amestrados pelos
velhos conceitos e crenças, porque estão livres para aprender. É a juventude
que tem a iniciativa de mudar, porque está menos compromissada com os velhos
conceitos. O convívio com o inaceitável se faz, normalmente, quando é
impossível desprender-se dessas sociedades, através da alienação ou de forma
menos drástica, através de mecanismos de fuga. É a nossa relutância em nos mantermos dentro dos "princípios" que nos tornam obsoletos, velhos, descompassados do mundo mais jovem que se cria a cada ano novo.
A mulher – ou o homem – que querem
impor a sua vontade ou o seu modo de vida ao parceiro ou parceira, o fazem de
vários modos e em vários graus de dificuldade de aceitação. Quando a pressão é
muito grande, e a parte pressionada se vê encurralada, sem contudo desejar sair
da sociedade, busca um outro companheiro ou companheira que lhe “alivie” essa
pressão. Pode ou não envolver sexo, mas a “fraqueza”, a debilidade, a
frustração, são tão grandes na sociedade "oficial", que normalmente o sexo estará envolvido. O bloqueio da constatação das verdades, a
alienação e os mecanismos de fuga fazem parte da vivência humana. Viver de
outra forma seria um sofrimento tal que seria realmente insuportável. Não raro
o grau de insuportabilidade de uma relação é tão alta, que bloqueamos a verdade
de sermos insuportáveis para a parceira ou parceiro, alienamo-nos dos
compromissos e buscamos os mecanismos de fuga: Uma nova igreja, uma outra
mulher ou homem, uma nova emissora de radio ou TV, uma nova pátria, uma nova
cidade, um novo partido político, uma nova empresa. Não nos movemos sem que
estejamos indelevelmente amarrados a decisões particulares tomadas com ou sem
sentido, por motivos que sequer conhecemos, mas que desejamos por esperança ou
crédito de que será ”conveniente” para nós mesmos. Por isso trocamos seis por
meia dúzia, ou tudo por quase nada, ou , com muito sucesso, o que era
imprestável por altos lucros morais, intelectuais, financeiros, vivenciais ou
de qualquer outro tipo. Depois refletimos e decidimos o que faremos a futuro.
Cremos piamente que não
podemos viver sem algumas coisas que obtivemos da vida, e quanto mais coisas
conseguimos obter da vida, outras mais queremos, porque nos dão prazer. É assim
que detestamos a rotina num casamento, e quando nada mais há para inovar a
“rotina” se instala. É como brincar a vida toda com o mesmo “brinquedo”. Seria
insuportável para qualquer criança. Assim também neste mundo cheio de
oportunidades, desprezar uma mulher com perfume diferente, com rosto diferente,
com lábios diferentes, com práticas sexuais diferentes, é sempre duro de
desprezar, e isto tanto se aplica a homens quanto a mulheres.
Quando a vida, de modo
geral, se torna quase insuportável, tamanhas são as dificuldades para uns, e
para outros não, que as drogas invadem o quotidiano como mecanismo de fuga. Drogas
alienam, entorpecem, fazem esquecer as dificuldades da vida. Sexo pode ser
considerado como droga, porque provoca prazer através de endorfinas jogadas no
nosso cérebro e que nos geram prazer. Sexo faz-nos sentir prazer até o delírio. Por uma mulher – ou
homem - que satisfaça sobremodo, somos capazes de abandonar a família, trair
todos os nossos conceitos. Dizemos eufemisticamente que estamos “apaixonados”.
Na verdade, em fuga do que já não suportamos, ou em busca de endorfinas.
Mas não nos recriminemos. Jamais.
Arquemos com as conseqüências e vivamos. Não deixemos que a vida nos construa, mas
construamos a vida como desejamos. Não pode ser a vida que caminhe sobre nós, empurrando-nos como barco em tempestade, mas sejamos nós que caminhemos sobre o caminho da vida que construímos dia a dia. Sem reclamar, sem nos vingarmos nos outros, mesmo que os outros sejamos “nós”!
Por outro lado, os governos
tripudiam das populações tornando-lhes a vida cada vez mais difícil a cada dia.
Os governos têm que pensar no que é suportável e no que é insuportável pelas
sociedades. As sociedades estão a ponto de se alienarem do sistema de governo..
Rui Rodrigues
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