Quem já assistiu a filmes sem
som, ainda que modernos, sabe o que sinto. As folhas das árvores balançam ao
sabor do vento, a água das cascatas despenham-se nos rios, os automóveis passam
levantando poeira, mas falta o som que dá vida ao filme. Falta-me também o som
às minhas lembranças do Douro dourado, de ouro. Foi lá que nasci. Saí aos
quatro anos para Lisboa e depois voltei por três vezes quando estava de férias,
aos sete anos, aos 11 e aos 12. Depois somente quando já estava com 38 anos
para visitar meu pai que passava mais umas férias por lá. Depois nunca mais
voltei. A vida se faz onde se pode e como se pode. O quando é onde for. O onde
é onde for melhor.
Para quem não conhece o
Douro, ficará difícil mostrá-lo em palavras e meia dúzia de fotos, e
dificilmente conseguirei fazer sentir o que se sente por lá. Mas tentarei
descrevendo momentos associados a paisagens.
Primeiro é o caminhar em
terras do Douro, pelos socalcos onde se cultivam as uvas, pelos caminhos
abertos pelo palmilhar ao longo dos anos. Os pés se adaptam ás pedras do
caminho e há que cuidar de passo que não seja firme. Todos os músculos se
movem. É solo xistoso de pedras com arestas, como se tivessem sido recém
lascadas. Pedras redondas só à beira dos rios. A paisagem é de castanheiros,
nogueiras, pereiras, marmeleiros, cerejeiras, macieiras, pessegueiros,
abronheiros, freixos, carvalhos, oliveiras e vinhas. Muitas vinhas. Vinhas que
celtas já cultivaram antes de serem chamados de lusitanos, romanos, visigodos,
judeus, árabes. A paisagem já assistiu a um desfile de modas, de tipos de
carros de bois, já incorporou casas de todos os tipos, com todos os tipos de
imagens de santos ou pequenos deuses, já acoitou muitos amores e muitos desejos
satisfeitos. O Douro sempre viveu em guerras, a maior parte delas sem o apoio
dos governos centrais, a começar pelo de D. Afonso Henriques, que alegava ser a
área muito insegura pelos constantes ataques dos árabes. Terra de muito
trabalho, desenvolvida mais pelas suas gentes do que por amparo de políticos. Talvez
por isto a célebre frase que “para lá do Marão, mandam os que lá estão”.
As ruas já foram de terra, de pedras escorregadias de basalto, e a modernidade trouxe o asfalto que dá um melhor caminhar quando os cestos carregados de uvas chegam aos lagares. Evidentemente que sou pelo progresso, pela evolução, e isso está patente em meus textos. Mas a saudade, aquela que fica morna no coração, permeando nossos momentos de repouso, são aquelas do “nosso” tempo, aquele tempo em que fazíamos realmente parte da terra, como se fossemos árvores ambulantes que caminhavam com as raízes. Raízes da terra onde tivessem pingado umas gotas de azeite, outras de vinho, permeadas de migalhas de broa de milho, fumeiros, castanhas, queijo de cabra. Sem faltar é claro, os mugidos das vacas barrosã que passavam resfolegando com seu olhar meigo e conformado os chiados das rodas dos carros de bois de trabalhadas cangas. E ainda se vêem crianças subindo no estrado desses carros para apanharem uma boléia até onde desse.
Podem agora se ouvir sons no filme da saudade. Saudade não é sinônimo de falta ou de ausência. Saudade é muito mais do que isso. Saudade é o sentimento da falta quando se pressente que difícil ou impossivelmente se voltará a ter no futuro exatamente, e tal como, o que tanto amamos no passado.
A saudade que tenho é a dos
meus amigos que enriqueceram a minha curta infância por lá, como o meu padrinho
Faustino, a minha prima Neli, o amigo Mário, o primo Otílio, a tia Candidinha,
a prima Dina, e tantos outros e outras cujas imagens continuam em minhas
recordações, mas que cujas letras dos nomes o tempo já borrou. O tempo!
É o tempo que parece trazer
a saudade, mas mais uma vez nos enganamos. Não é o tempo. É a certeza de que o
passado não pode ser redimido, não pode ser trazido para o presente, que o que
passou já passou, e só viverá na memória dos vivos e nem de todos. Há os que
não se lembram de nada. Mas não posso esquecer o lagar de azeite quando na
época da prensa das azeitonas, lá no alto da rua, no Largo do Senhor, as portas
se abriam e as crianças como eu já faziam fila com seus pedaços de broa para
molhar no azeite quente que comiam deliciadas. Era falta de educação levar uma
broa inteira e o pedaço de broa que levávamos nos parecia ridiculamente
minúsculo para tanto azeite que ainda se via no lagar, no que pesasse a bondade
do produtor. Olhos de criança são sempre muito grandes. Só de crianças? Cremos
todos que não.
Como esquecer as corridas de
carros de madeira pela estrada nova, sem capacete, sem joelheiras, sem
cotoveleiras, todos se julgando um Fangio, Stirling Moss, os grandes heróis das
corridas de automóveis e que pouco mais equipamentos de segurança tinham do que
nós? Eles morriam. Nós só nos escalavrávamos nas pedras, nos ralávamos na terra
poeirenta da estrada, e que se saiba ninguém caiu da ponte no rio.
Nas minhas o Marão está sempre com neve, todos estão vivos e caminham pelas ruas úmidas de inverno, cobertas de neve, ou abanam-se com abanicos nos verões quentes e secos, quando se abrem os alçapões na sala, cobertos com tapetes e se descem as escadas até chegar ao frio da adega, onde entre uma conversa e outra se toma um bom copo de vinho bem acompanhado de uma chouriça, umas castanhas defumadas, queijo, pão acabado de sair do forno. A saudade vem do aconchego, da amizade, dos abraços, que não se podem repetir porque a vida não é eterna, a paisagem muda, a convivência foi interrompida e o rio do tempo corre inexoravelmente na mesma direção, sempre em frente. Quem estuda Física sabe que o tempo não é uma linha contínua, mas vai sempre numa direção... Em frente.
Foi assim em 1983 quando
voltei à “minha” terra, Fornelos. Fornelos já não era a minha terra. Era a
terra dos que lá viviam, e por mais que me dissessem ou digam que é minha já
não é. É a terra amada onde nasci. Linda, com gente que amo, e onde a amizade,
por mais forte que seja, já não é a mesma daquela que provém da convivência.
Amizade hoje é uma cortesia agradável. Fornelos já não me pertence. A não ser
no passado, aquele que passou e jamais se poderá alterar.
Mas... Alterar para
quê? Porque vivenciar duas vezes a mesma
coisa? Não teria sentido. É melhor, por melhor que tenha sido o passado, que
haja a saudade, aquela que nos lembra que o passado não volta.
A Fornelos de Santa Marta de Penaguião, terra do Douro, com muita, muita saudade!
Rui Rodrigues
Fotos pela ordem:
Fornelos
Rio douro
Rio douro
Vitral de Peso da Régua
Lagar de azeite
Amoras silvestres
Dançando enquanto se pisam as uvas para fazer vinho
Corridas de carros de madeira
Serra do Marão com neve
Fotos pela ordem:
Fornelos
Rio douro
Rio douro
Vitral de Peso da Régua
Lagar de azeite
Amoras silvestres
Dançando enquanto se pisam as uvas para fazer vinho
Corridas de carros de madeira
Serra do Marão com neve
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