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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Rio, dois mil e quarenta e cinco.

Rio, dois mil e quarenta e cinco[1].

 Nascera em 1945, cem anos atrás. Quando se avaliava a si mesmo, a sua vida e se fazia perguntas, respondendo-as em voz alta para melhor as compreender, sempre era lento porque seu pensamento era muito rápido. Sempre fora. Estava agora com cem anos e duvidava que muitos tivessem a mesma rica experiência de vida desde que a humanidade se criara de forma consciente há mais de 120.000 anos atrás. Quando nascera há havia aviões a jato e bombas atômicas, mas eram tão recentes que a primeira tinha sido lançada um mês antes de seu nascimento, em setembro de 1945. Depois disso viu tanta coisa, teve de adaptar-se a tantas delas, que por vezes se achava um herói. Mas herói de quê exatamente? De ter sido um bom homem, humano, se adaptado aos computadores, aos celulares, aos automóveis voadores, aos milhões de proibições da lei, evitando multas? Isso não se pode considerar como heroísmo, mas associado á sobrevivência tem seu mérito. Enquanto olhava a paisagem, lembrou-se daqueles velhos telefones pretos, de grosso fone de ouvido que ficava pendente num pedestal. Rodava-se uma manivela e esperava-se que do outro lado se ouvisse uma voz feminina. Então se dizia: Operadora? Por favor, me ligue para o numero 237... Os telefones eram ainda muito poucos, Agora os dígitos numéricos eram associados a letras e já andavam pela casa dos 20 dígitos. Depois vieram os celulares, todos tinham automóveis, menos os pobres. Os pobres nunca tiveram helicópteros, aviões, automóveis, carroças ou sequer cavalos ou mulas e muitos nem sapatos tinham. As fábricas se tinham encarregado de fabricar uma parafernália de bugigangas consumíveis de uso temporário e descartável, a maior parte delas fabricadas com pontos frágeis para obrigar á compra de mais uma unidade. Só mais tarde, ao colocar as compras no lixo nos dávamos conta de que poderíamos perfeitamente ter passado sem aquilo, como fornos de micro ondas. Os fornos eram o reduto da preguiça e da falta de controle. Não havia nada melhor do que passar uma hora na cozinha, cozinhando apenas o necessário para não sobrar e consumir com a família e os amigos. Ainda se economizava na energia da geladeira que não precisava ser tão grande. Europeus sempre tomaram cerveja morna que tem mais sabor e se sente mais o álcool. Em países de alta temperatura (nem queria se lembrar disso) as geladeiras sempre ficavam atoladas de latas e garrafas de cerveja para ficarem “estupidamente” geladas. O que se bebia era algo quase gelado, entorpecendo o sabor, que ficava apenas nos lábios molhados de cada gole. O que ia para dentro não tinha nenhum.




Não tirava os olhos da paisagem à sua frente enquanto meditava sobre o passado, os poucos cabelos ainda negros esvoaçando ao vento que lhe trazia odores de mato seco. Suas narinas estavam há muito com irritações pela secura do ar. Normalmente usava um pano úmido envolvendo-lhe o rosto, um lenço grande que já pertencera a uma namorada, e que periodicamente umedecia com água que sempre trazia a tiracolo num cantil. Não saía de casa. Só raramente, uma vez por semana quando muito. O calor era imenso, o ar seco, as ruas muito perigosas de noite ou de dia. Parecia que um manto estranho tivesse coberto a cidade do Rio de Janeiro. Um manto que a transformara da noite para o dia desde 2014. Já nem se podia chamar de uma cidade, na verdade. Os prédios estavam vazios, não havia quase nada para vender, não havia quem vendesse, tudo se trocava, roubava. Lembrou-se de vários filmes a que tinha assistido em sua vida sobre situações apocalíptica, mas nenhum deles havia retratado o que agora estava vivendo, ali mesmo, em frente aos seus olhos. Não adiantava beliscar-se. Já fizera isso e até fechara os olhos, mas quando os abria após cada beliscão, via sempre a mesma paisagem. Se a humanidade fosse um exército, algum general lhe daria ordens e todos obedeceriam. Mas uma humanidade amorfa como a nossa, era impossível que todos obedecessem. Havia sempre os que forçavam a barra para fugir das leis. Quando os avisos começaram a chegar já era tarde: A produção industrial teria que parar. Reduzi-la não provocaria nenhum efeito. Teria de ser levada a zero, mas isso significaria não ter energia, não fabricar bugigangas, não produzir nem consumir nenhum tipo de energia que não fosse de origem eólica, solar. Terra, ar e mares estavam “aquecidos” pelo consumo exagerado de energia por tantos seres humanos. Por volta de 2014 eram cerca de sete bilhões e meio. Agora não deveria haver mais de um bilhão e todos eles com sérios problemas de sobrevivência. As espécies de seres vivos tinham-se reduzido praticamente a insetos, poucos vegetais, aves, mas aumentara o numero de répteis. A Terra estava doente, preparando-se para mais um ciclo de reconstituição de novas espécies de vida adaptáveis ao novo ambiente. A história da humanidade chegaria ao fim em pouco tempo mais, talvez uma década. Por falta de fundos, vontade, dinheiro, condições, as ruas se tinham enchido de terra, poeira e eram agora cultivadas em forma comunitária pelos poucos habitantes de cada bairro. O homem voltava às origens em sua forma de vida, mas desta vez não para viver, mas para sobreviver.



Estava ali, em pleno centro da cidade onde sempre vivera, ma rua Alexandre Mackenzie, perto do cais da marinha do antigo Loyd. Caminhara alguns quarteirões e agora estava de frente para a Baía de Guanabara. Ou o que fora dela... Havia barcos encalhados de todos os tipos e todas as épocas. Ia-se dali a pé até o outro lado da Baía já em Niterói. Havia um ou outro barraco, uma ou outra plantação de sobrevivência naquela baía seca. O mar nem se ouvia. Tinha recuado muito para lá de Copacabana, Leblon, e não havia peixes por aquelas bandas. Se houvesse estariam protegidos, porque sem combustíveis, aquela meia dúzia de pescadores que se arriscava o fazia em barcos a remos. Pescavam apenas para si, a família, protegidos por armas. Em breve não haveria mais balas por já não haver quem as fabricasse. Cada um sobrevivia como podia ora em cidades, ora nos poucos restos de selva. O rio Amazonas era agora um córrego quase seco. A ilha de Marajó se decidira finalmente a juntar-se ao continente. De muito longe chegaram notícias de que se podia atravessar a pé da Ásia para a América do Norte porque o estreito de Bering já não existia.

Então o velho chorou. Ali a seu lado, sobre as brasas de uma fogueira que fizera, jaziam os restos mortais assados de seu mais fiel companheiro: Estrela, seu cachorro de estimação. Não havia nada mais para comer... Um dia teria que cortar uma perna para assar e continuar vivendo por mais alguns dias. Ou não valeria a pena?Viver? Sem história? Quem iria se preocupar em escrever a história da humanidade a partir daquele ponto se já não havia nem energia para os computadores e nem papel por que as fábricas já haviam encerrado suas portas? Humanidade moribunda esperando pela morte...



Então, finalmente, entendeu porque Deus não interferia nas leis que Ele mesmo criara para a existência deste planeta, da vida, do Universo...Deus escreve direito por linhas realmente muito e exageradamente tortas, mortais. Afinal, não fora Ele que criara a vida sujeita à inevitabilidade da morte, lei válida para todos os mortais? Que diferença fazia se era um a um que morria, ou todos de uma vez?

® Rui Rodrigues

[1] Vale a pena assistir a este vídeo https://www.youtube.com/watch?v=teG3fZLIXuU&app=desktop... 

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