Navegando com os vinhos
Quando as primeiras naus navegaram para os mares do Sul,
descobriram o Brasil, outras depois, terras cisplatinas, e em pouco tempo
tinham dobrado o Cabo Horn o ponto mais extremo do Chile. Assim como os vikings
levaram videiras para plantar em sua colônia na América, a Vinland (onde é hoje
a Terra Nova, no Canadá) também as naus, cerca de mil e quinhentos anos depois,
começaram a carregar videiras nas viagens posteriores, agora para a América do
Norte e também do Sul. Os colonos não podiam prescindir do bom vinho, nem os
marinheiros. Todas as naus carregavam tonéis de bom vinho. Sem ele as
tripulações se revoltavam.
No entanto, embora a carga de vinho fosse limitada por ter
que ser proporcional às das demais necessidades, nem sempre o vinho acabava
durante as longas viagens de ida e volta. Em Portugal chamavam a esse vinho
“vinho de Travessia”. Talvez pela exposição do vinho a diferentes temperaturas,
ele ficava com paladar diferente, mais encorpado, “diferente”, e por incrível que
pareça, passou a ser disputadíssimo pelos melhores apreciadores do bom vinho.
Por volta de 1850 navios provindos da América do Norte
chegam á Europa com uma novidade: A Filoxera, um afídio (inseto sugador alado
parecido com mosca) que a partir de 1863 devastou uma imensa parte das videiras
européias, e quase que completamente as videiras francesas. Franceses guardam
com todo o cuidado os seus monumentos, seus aspectos culturais, e no caso da
vinha, sua cultura vinícola. Por isso, sempre atentos, foi-lhes fácil concluir
que o melhor lugar para preservar as suas mudas matrizes seria levá-las para o
Chile, o único país fora do Mediterrâneo, que possui zonas de clima
mediterrânico, onde florescem vinhas, nogueiras, oliveiras, frutas adaptadas ou
autóctones do mediterrâneo.
E os anos passaram entre viagens em embarcações á vela, a
vapor, até que alguém se lembrou de pesquisar sobre a grande praga que assolara
os vinhedos da França em 1850 e o desenrolar das conseqüências. Na França
faltava uma espécie de uva: Carmenére. Onde poderia estar ainda preservada
alguma matriz? Evidentemente que no Chile. Foi encontrada, e hoje temos vinhos
Carmenére (que lembram o Cabernet Sauvignon) nas prateleiras dos supermercados. Em Portugal, que me lembre, ninguém se lembrou dos vinhos das travessias
oceânicas... Mas no Chile alguém deu à sua produção de vinhos Carmenére, e de outras castas o nome de Travessia. Este em especial é produzido no Valle Central. E
isto nos leva a refletir.
Nesta vida temos muito a agradecer, geneticamente, a nossos
ancestrais. Por vezes pensamos que somos um “ser único”, mas nossos genes nos
desmentem descaradamente. Olhamo-nos, vemos que temos "uma cor", e nem notamos
que temos sangue índio, negro, viking, medo, persa, judeu, vândalo, suevo, oriental,
de cromagnon... Todos nos são desconhecidos porque não nos deixaram
fotografias, só genes e algumas tradições, muitas mal ou bem perdidas. Assim também estamos vivos porque os soldados, tantos,
desconhecidos, nos garantiram com a dádiva de suas vidas a garantia das nossas.
Não sabemos também quem foi o primeiro a provar o vinho das travessias e a
espalhar a notícia de que era um “espetáculo” e não poderíamos esquecer quem se
dedicou a pesquisar onde estava guardada uma das últimas mudas do Carmenére. Por isso, quando tomar um vinho Travessia, Carmenére, feche
os olhos, e enquanto se delicia com o seu sabor, ao outro sabor, o das ondas, agradeça mentalmente a toda
essa multidão de humanos que palmilharam e navegaram a Terra não só para
descobrir, explorar, mas também para cultivar, dividir descobertas, criar senão
uma nova espécie de Sapiens, um Sapiens mais humano ainda.
Quanto a mim, agradeço também ao Chile, uma terra encantada,
cheia de história e cultura, de bons vinhos que não só não envergonham os
vinhos franceses como até deixam muitos deles envergonhados.
Içar as velas para mais uma Travessia de garrafa, viajando a
bordo com portugueses, franceses, vikings, brasileiros, chilenos... Vivam os
mortos !
Caravelas do Peró, 01-11-2014
® Rui Rodrigues
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