Os três mundos paralelos em que vivemos
Costumamos viver nossa vida
seguindo como que lendo sempre o mesmo capítulo de vasto livro em que cada
capítulo é um tema, um assunto. Temos uma certa tendência a olhar apenas para o
mais imediato, o mesmo grupo de amigos, percorrer as mesmas ruas, o mesmo
bairro, cercados por nossas preferências que se transformam em hábitos,
padrões. Passamos sem ver, sem sentir, muitas vezes sem saber o que se passa
fora desse capitulo do livro da vida, de nosso “círculo” pessoal. Em passeios
ao exterior do Estado, da nação ou do continente vemos a paisagem, apreciamos as
comidas, as bebidas, e isso basta porque que coisa outra poderia interessar
nesse momento de deslumbramento?
E o mundo que vemos desta
forma, não é o mundo real. É apenas uma parte sem a mínima importância para o
universo, o mundo, a nação, o clube, o partido político, a igreja, a empresa, e
muitas vezes a própria família ou grupo de amigos. Ver o mundo total completo
significa sofrimento, perda do prazer, incomoda, entristece, dói. Mostra-nos
nossa impotência e incompetência para mudar o que se consolidou ao longo de
milhões de anos, sempre em evolução, mas sempre também com os mesmos problemas. Quando desejamos que nosso prazer continue, algo acontece que o interrompe de
forma temporária ou definitiva mas, quando pensamos desconsolados que
precisamos do prazer, ou o buscamos e encontramos, ele vem de surpresa ao
nosso encontro. E nem sempre! O mundo total, completo, só faz sentido se visto em seu conjunto:
O mundo da luz, o da consciência e o das trevas. Os três correm em paralelo,
exceto quando se encontram de forma definitiva, quase sempre de forma abrupta,
de repente.
O mundo da luz
É iluminado, deslumbrado,
vê-se a cada minuto, mas nem todos nele podem caminhar, o que é motivo de
contemplação dos que podem, por se acharem privilegiados. Só o vê quem está bem
consigo mesmo, seja rico ou pobre, e isto depende da ambição de cada ser. Há
alegria neste mundo, as pessoas sorriem, nada parece ameaçar a continuidade da alegria,
do sentimento de bem estar, nem mesmo guerras, falecimentos, perdas de qualquer
tipo, porque o futuro parece não existir ou estar muito, demasiadamente longe. É
o chamado “estado de graça”. Dão-se conselhos aos que sofrem, aos necessitados,
sem, contudo, nos vermos na própria pele dos sofredores e necessitados, e
costumamos dizer que “somos abençoados por Deus” e amamos ainda mais a religião
que professamos, porque seria através dela que conseguiríamos alcançar esse
estado de graça. Distribuem-se roupas velhas pelos necessitados reciclando lixo
que já incomoda, mas não se vai a um shopping comprar-lhes roupas novas. Dão
esmolas de centavos, mas pagam dízimos a igrejas. Não deixam entrar pobres nos
templos porque lhes deteriora a imagem. O
perfume e cheiro de lençóis de linho passados conforta o dormir e o despertar,
ainda mais se o pijama for de seda. Filhos lindos e sossegados, fazendo-lhes a
vontade, educados e formados, são bálsamos no mundo da luz. O mundo da luz
desfila em carros por ruas entupidas, faz demoradas compras em shoppings, tem
motorista, porteiro e empregada subserviente como patrícios tinham escravos
fiéis e confidentes. Há nuvens de escuridão de dia e de noite, mas não são
suficientes para ofuscar a luz. A consciência diz que amanhã se resolve, que
amanhã se repara, que amanhã é outro dia. Há comida farta na geladeira e se não
trocar de carro neste ano, no próximo terá um novo. Mendigo na rua é um
problema do Estado e graças ao seu deus particular, não precisa pedir esmolas,
mas é o que faria um dia, porque mendigos recebem muitas esmolas e não precisam
da sua. Continuará votando nos candidatos do mesmo partido, sem questionar seus
atos, porque é graças a eles que tem trabalho, e dos motivos que a maioria
reclama não conhece o que isso seja. Por vezes sabe porque já teve algum desses
problemas, mas já esqueceu para não sofrer e os benefícios compensam. Quem
precisar que aja do mesmo modo. Nada precisa ser mudado no mundo da luz, talvez
apenas alguns pequenos ajustes para melhorar a sua vida particular. Não
diferencia um lá de um mi, não reconhece um compositor de outro, mas escuta
músicas clássicas e vai ao teatro assiste a uma peça ou outra pela propaganda,
porque quando lhe perguntarem se já a assistiu, dirá que sim e dirá até o que
fez antes e depois da peça: Foi comer uma sopa naquele restaurante famoso. Acreditamos
nas verdades que nos interessam.
No mundo da luz, dinheiro só
é problema porque sente necessidade de gastar mais e por isso precisa ganhar
mais, numa corrida sem limites, com pequenas metas pelo caminho até chegar nem
sabe onde, mas certamente até onde puder. No mundo da luz perdem-se amigos, mas
novos surgem entre almoços, jantares, encontros, conivências, identidades de
momento. Os que ficam pelo caminho de certo modo se perderam e já não lhes
merecem a amizade. Frases e promessas tiveram seus motivos para serem
esquecidas, são relevadas para o fundo dos arquivos do esquecimento. Tudo o que
é bom se louva e não se faz, porque geraria sofrimentos e provações que de
momento, com tanta luz, seria até idiotice perder tempo com isso. As dores dos
amigos merecem uma visita ao hospital, uma atenção, mas coitados, tinham sua
hora marcada com a vida e a viúva e os filhos certamente encontrarão uma forma
de sobreviver. Não há muitas dores no mundo da luz que durem mais do que uma
volta da terra em torno de si mesma. Um tempo que se pode controlar neste mundo
de luz. A luz ofusca e não deixa ver.
O mundo das trevas
Neste mundo paralelo apenas
se vislumbra a luz por breves instantes, quando há a necessidade do atrevimento
em atravessar o mundo da consciência para chegar até o mundo da luz. Alguns já
nasceram nesse mundo de trevas, mas a maioria caiu nele, de repente. Uns dizem
que seu deus os desamparou, outros que a vida é assim, outros ainda não têm
consciência do que aconteceu. Alguns se atribuem a culpa pelas ações ou
omissões em sua vida, mas são raros estes e já não há tempo para a recuperação,
salvo casos isolados.
Não há luz neste mundo, nem
é visto pelos do da luz. Fica oculto em hospitais, em asilos, em camas não
compartidas, em valas e abrigos invadidos por exércitos, em casebres com esgoto
a céu aberto e sem água potável, em prisões sem controle de direitos humanos
onde se promove a promiscuidade como pena adicional, em lares onde se discute o
dia inteiro buscando motivos para a discussão do dia seguinte, em escolas onde
se persegue como forma de afirmação com costumes arcaicos que não se abandonam
porque pensam fazer parte da seleção natural física e não de inteligência. Não
há luz no mundo das trevas cercado de dor, sofrimento, emplastros de sangue que
lavaram do corpo as feridas que não fecham, que não se curam, num mundo de
gritos sufocados por poderosas anestesias que não impedem a consciência de que
algo chega ao fim sem visitas, sem acompanhantes, melhor que nem aparecessem
quando chegam com palavras que deveriam ter sido antes, quando ainda estavam no
mundo da luz, sem nunca, nunca, dizerem as verdades que deveriam ter sido
ditas. Deste mundo fogem porque incomoda e ofusca o prazer de viver na luz, de
forma despreocupada, porque já são muitas as preocupações para viver suas
próprias vidas.
No mundo das trevas pairam
as pesadas e negras nuvens do esquecimento, entre sons escutados como se de
longe atestando que não há forma de voltar no tempo, evitar as trevas, curar-se
dos males das trevas. Dante e seu inferno, enquanto no mundo da luz a vida
corre entre expectativas de um resultado de um jogo de futebol, de um novo
desfile de modas, uma nova canção, as férias que se aproximam, o carro novo na
garagem, comprar vinhos e queijos no supermercado para convidar os amigos para
um bate papo, uns goles de alegria e esperança no amanhã. A enfermeira tem uma
cruz vermelha no peito e isso é sinal de que se foi atingido por bala inimiga, e
das que não têm cruz vermelha nem verde nem azul, sinal de que o mundo da luz
se afastou ou foi afastado sem garantia de voltar a ele ou, ainda, de que na
prisão a revolta por maus tratos gorou, houve luta e o mundo das trevas ficou
definitivamente negro. Há quem viva no mundo da luz, vendo a luz e não podendo
ter-lhe acesso. Drogam-se para esquecer que há luz, ali ao alcance da mão, mas
que lhes é impossível alcançar. Outros enganam seus estômagos dia após dia,
envoltos em sombras, até que desfaleçam e sejam esquecidos em hospitais onde há
outras prioridades para serem atendidas. No mundo das trevas o individuo é um
ser, como outra vida qualquer, por cujo mundo de luz se reza no mundo que a
tem, entre benzeres, cânticos, promessas, que não se cumprem porque sem estas
necessidades de pedir pelos outros, mesmo a deus, não se redimiriam as omissões
do mundo da luz. Este, deixa que exista o mundo das trevas, de forma
proposital, para que possa ter a oportunidade de rezar, benzer-se, pedir a deus
pela salvação do mundo das trevas e assim se considerar uma pessoa boa,
religiosa, credível, que terá um lugar no Xeol, no céu, no paraíso ou á direita
de deus. No mundo das trevas não há esperança de que se faça algo para mudar,
para abrir um caminho entre os dois mundos passando pelo mundo da consciência. O
mundo da consciência é mais doloroso do que propriamente o mundo das trevas,
porque põe a nu as nossas indecências, as nossas fraquezas, os nossos erros.
Faz-nos sentir excrescências, nadas que em nada de útil contribuíram para unir
todos estes três mundos e dar-lhes novo futuro.
No mundo das trevas, a vida
está por um fio ou por uma corda, mas bambos, indecisos, sem futuro de
esperança e que se podem romper a qualquer instante. Nada mais se pode fazer,
nem há condições para isso. O relógio do tempo está à beira de parar. Neste
mundo as esperanças ficaram no outro, o da luz, e no mundo da luz, só há
esperanças de milagre porque não se pode perder tempo para mudar nada que está
tão conveniente. No mundo da consciência sabe que existem dois mundos: o da luz
e o das trevas, o primeiro ao qual se dedica a existência, o segundo do qual
não se quer saber para que não se jogue sombra sobre o que se vive em meio a
raios de luz que iluminam quem está vivo, anda pelas ruas, se mostra em telas
de celulares e aparelhos de TV... A vida continua. A escuridão ofusca e não nos
desperta a vontade para ver.
O mundo da consciência
É o mundo da sabedoria. Um
mundo maravilhoso, um laboratório de soluções. Não é um mundo político, sequer
religioso ou de algum time de futebol. É a ponte entre o mundo das trevas e o
mundo da luz. É preciso muita coragem, determinação para entrar neste mundo, no
qual não se entra levianamente do dia para a noite. É preciso uma preparação
que pode durar anos, uma vida inteira. Neste mundo nada assusta. Nem o que vem
do mundo da luz, nem o que vem do mundo das trevas. É um mundo sem
subterfúgios, sem desculpas, de análise. Se tiver coragem, vontade e
determinação, entre nele, e estude a essência das coisas que vemos, sentimos.
Leia tudo, saiba sobre tudo. Terá que deixar o mundo das aparências e dos
sorrisos treinados para agradar... Não há professores no mundo das trevas nem
do mundo da luz que possam abrir o mundo da consciência a alunos que não
queiram entrar nele. Do mundo da consciência, uma vez que se entra, nunca mais
se sai, a não ser para breves incursões num e noutro, enquanto houver esperança
de ver e a esperança ainda fizer a vida. Aqui, no mundo da consciência se faz a
verdadeira vida, sem concursos públicos, sem exames, sem indicação de gente
influente. Tudo depende do que se aprende no mundo da luz.
Rui Rodrigues