12 – O ser humano e a humanidade
Hoje não fui à praia. Estava
chovendo e resolvi ficar em casa. Pensava como é costume, no modo como as
sociedades se relacionam entre si, buscando respostas para a conturbada
história da humanidade. Tal como todo mundo que se preocupa com a própria
existência e das sociedades em que vive. Filósofos, paleontólogos, sociólogos,
escritores, poetas, parece que todos vivemos em torno destas questões. Como
sempre, se Deus não me der as respostas eu mesmo não serei capaz de encontrá-las.
Com o barulho da chuva no piso exterior á casa e nas folhas das árvores
balançadas pelo vento, comecei a escrever.
A humanidade, conjunto de
todos os seres humanos, li em vários livros de ciências e em livros religiosos,
começou há milhões de anos, e segundo as mais recentes estimativas científicas,
há cerca de 4,2 milhões de anos mais exatamente. Os livros sagrados dizem isso
também, não com a mesma exatidão, nem com a mesma riqueza científica de
detalhes, porque seus textos foram escritos há muitos séculos e nada se
conhecia da verdade, no que pese a afirmação de que os livros foram escritos
sob inspiração divina. A ser assim, Deus não poderia enganar-se nos detalhes.
Provavelmente os que começaram a tradição oral que deu origem aos livros se equivocaram,
e muito, quanto á origem da humanidade, quer na forma como se iniciou, quer nos
métodos e detalhes em que evoluiu. Sintomático de que não entenderam a
inspiração divina reside no fato de que cada sociedade entendeu o Criador de
forma diferente, levando nações a guerras sangrentas, algumas das quais ainda
não acabaram, estando apenas ligeiramente adormecidas e latentes. Cada nação
afirma que seu Deus é mais poderoso e melhor do que o Deus das demais. Sendo
único, ou nenhuma entendeu Deus, e então Deus será um tanto ou quanto diferente
de como O imaginam, ou trata-se de algo difícil de adjetivar sem pecar pelo
politicamente correto.
A ter Deus criado o homem –
e a mulher – à Sua natureza, teríamos um Deus realmente muito complicado,
porque é assim que se apresenta a humanidade na forma como tem agido ao longo
desses milhões de anos. Parece ser mais eficiente e verdadeiro pensar que o
homem, e a mulher são fruto de uma natureza criada por Deus que lhe deu um
impulso inicial permitindo a vida e a evolução, de tal forma que um planeta
“Gaia” como a Terra, se auto-sustenta não importando que espécie herde a sua
superfície, os mares e os ares. Assim, homem e mulher, fruto de uma evolução
permitida pelo Criador, são autônomos e independentes para escolherem os seus
próprios caminhos.
Basicamente a humanidade
vive num relativo equilíbrio dividida em nações, cada uma com suas próprias
características idiossincráticas, perpetuadas por séculos de tradições,
crenças, costumes, características genéticas.
Cada nação, por sua vez, pode apresentar várias etnias, ou sociedades
diferenciadas em função da evolução regional. De modo geral cada nação se
divide em sub-regiões com seu próprio governo mais ou menos autônomo, governado
o conjunto por um governo central. As leis regionais e as gerais mantêm um
nível de ordem que se destina não só a atender as exigências do governo central
e regional, como a promover o bem estar social geral.
Mas de modo geral, vemos que
ao longo da história têm sido muitas as divergências entre as sociedades e os
governos, e entre as nações entre si mesmas. São muitas as causas de tais
divergências nas particularidades, mas sempre fundamentadas na religiosidade, na
economia, ou na pressão governamental sobre as populações. Uns atribuem a culpa
aos governos, outros às sociedades. Aos governos porque tomam decisões
equivocadas, ás sociedades porque não escolhem bem os seus governos ou a eles
se submetem sem reclamar. As religiões que raramente falam da vida no planeta,
preparando os fieis para a vida do além, influenciam as respectivas sociedades
impelindo-as para a guerra quando acham conveniente. Fazem-no sempre em nome do
seu Deus.
Qual então o papel que não é
bem desempenhado pelos seres humanos de forma a tornar as sociedades e a própria
humanidade numa espécie que seja auto sustentável num planeta que se auto
sustenta? Vivendo em revoluções e guerras como vem acontecendo há milhões de
anos sem nunca mais acabar? Deve haver um outro caminho.
E então ouvi a resposta.
- Cada ser humano possui uma
carga genética quase imperceptível que o diferencia de outro ser humano. Este
fator aliado à educação que sofre no lar e de grupos em que participa, aceitando
ou rejeitando a influência, tornam-no um ser único com opinião própria, ainda
que a opinião seja a de seguir a opinião de outros por falta de conhecimentos,
por submissão ou por preguiça de pensar. Assim é a humanidade que escolhe os
seus caminhos todos os dias, a todo o segundo que passa.
E continuou:
- Cada ser humano dá também
a sua contribuição todos os dias, a todo segundo que passa, mas prevalece algo
que é indefinível a cada momento: o caminho próprio da humanidade como
resultante de todos os atos dos seres humanos que a compõem. É como se cada ser
humano fosse um vetor, e o vetor resultante fosse o caminho da humanidade.
Assim, quando aparece algum ser humano que lidere um movimento que a maioria
ache importante, a humanidade começa a mover-se no sentido dessa liderança,
seja ela de arte, de moda, de política, filosofia ou qualquer outra
manifestação. Os seres humanos tendem a identificarem-se uns com os outros,
numa clara demonstração de humanidade, mas é mais do que isso, porque inclui o
receio de uma exclusão do meio se não seguir a “onda”. Por isso muitos vão aos
templos mas não são religiosos. Por isso muitos dizem sim até mesmo quando não
têm opinião, e muitos votam num candidato porque lhe disseram os mais próximos
que nele iriam votar. A moda das saias
curtas não poderia ter aparecido antes de Mary Quant. Mary Quant lançou a moda
depois da invenção da pílula que libertaria sexualmente a mulher. O movimento
de libertação da mulher, vilipendiada, denegrida e ignorada nos livros
bíblicos, depois da invenção da pílula nunca mais parou. Ou seja, a própria
humanidade conserta o que está equivocado. A humanidade faz parte da natureza e
esta é auto-suficiente: repara os próprios erros ao longo do tempo. Assim como
a natureza parece não ter pressa numa escala do tempo, assim à humanidade lhe
parece também não haver pressa em mudanças radicais. E não tem pressa, mesmo
que algum líder lhe tente mudar os rumos. Uma parte dela pode segui-lo enquanto
a outra espera os efeitos. Depois decide.
E finalizou:
- Cada um expressa a sua
opinião mesmo em regimes, seitas ou grupos em que lhe proíbem a sua
manifestação. O resultado da troca de informações seja qual for, não pode ser
tomada como definitiva, porque em decorrência da opinião geral são tomadas
ações que na prática comprovarão o interesse ou desinteresse por determinada
opinião ou filosofia política, econômica ou religiosa. O tempo resolve tudo, e
muitas vezes podem ver o retorno a velhas idéias, filosofias, ou a evolução das
que foram seguidas. De qualquer forma, nenhuma “verdade” é perene. Tudo evolui
e somente duas manifestações da humanidade se têm mostrado quase que
estagnadas: as filosofias religiosas e políticas. Se a humanidade não tomar
cuidados, cada ser humano de per si, o resultado poderá ser catastrófico, e
certamente o desastre virá da vontade que alguns seres humanos têm de que sua
opinião prevaleça. Essa vontade vem da vaidade ou da ganância, ambição. A maior
“virada” na evolução da humanidade virá quando os velhos modos de governar
mudarem radicalmente. Os seres humanos devem escolher o seu presente e o seu
futuro vigiando os que governam e dizendo-lhes pelo voto como querem ser
governados. Fica fácil entender o que digo, se pensarem que um presidente ou
primeiro ministro têm o poder de declarar guerra ou lançar bombas atômicas sem
consultar as suas populações. Não só para isto, mas para tudo, é a nação que
deve dizer o que quer aos governos e não estes a ela. As religiões têm que
evoluir para acompanhar, porque nos últimos seis mil anos ninguém se atreveu a
dizer que eu falei algo para alguém ou apareci em alguma sarça ardente.
Acordei no dia seguinte. A
chuva tinha parado. A partir daquele dia, comecei a entender a humanidade como
algo independente que segue o seu caminho, muito mais importante do que o
caminho de cada um de nós. Eu já me sentia um quase nada comparado ao tamanho
do Universo. Menos até do que quase nada me sentia agora, porque por mais
importância que me pudesse dar, a da humanidade é muito maior. Sete bilhões e
meio de vezes maior...
Era o décimo segundo dia e a décima segunda vez que me acontecia.
Rui Rodrigues e a "voz do vento"
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