As cerejeiras de meu pai.
Quando eu tinha meus quatro
anos acompanhava meu pai em seus tempos livres em que cuidava de sua horta, de
seu pomar, do outro lado da rua, ribanceira abaixo cheia de castanheiros, rumo
ao rio por onde por ali não se chegava. Era isto em Fornelos, minha terra
natal. Lembro-me de sua plantação de morangos, das abelhas e de uma em especial
que me mordeu na perna. Foi ao Abílio que uma outra deixou com o beiço inferior
do tamanho de uma abóbora. Havia ali uma cerejeira cujos frutos eram grandes,
carnudos, de cor vermelha escura. Bem escura quase como sangue seco. Uma vez o
vi subir nos galhos para colher os primeiros frutos a ficarem bem vermelhos. De
cima dela me atirava algumas dividindo entre nós o fruto do trabalho. Lembro-me
que temia por sua segurança. Queria subir também, mas só anos depois entendi
que realmente ele não me poderia ter deixado subir. Isso eu fiz três anos
depois quando ele já tinha emigrado para o Brasil e eu fui de férias á minha
terra com a minha prima Fernanda.
Conversas de aldeia, por aqueles tempos, versavam invariavelmente sobre a época de colher os frutos, troca de batatas por outro produto da terra, as despesas, notícias de emigrantes, umas da Austrália, outras do Brasil, da França e Alemanha... A diáspora portuguesa desde que os governantes descobriram que emigrantes não produzem custos ao Estado e enviavam todo o seu dinheiro para a Caixa Geral de Depósitos para que um dia pudessem regressar e construir a sua casinha, viver bem de aposentadorias. Se a intenção é apenas lucros, os governos portugueses podem orgulhar-se de seu passado e presente: São empresas altamente lucrativas para quem governa e contrata obras e serviços, mas não para quem fica na terrinha, se não fizer parte esses que governam ou não tiver uma “cunha”. Falava-se do tempo, das colheitas, das festas promovidas pelo senhor abade às expensas da fé dos bons cristãos, tudo florido pelas senhoras que freqüentavam a sacristia e que de tudo o que tinham para contar algumas coisas não contavam (do que viam) porque ninguém acreditaria. Mas nem todos os abades eram assim, e por essas indiscrições, lá se foi um par de dois ou três abades que deixaram admiração. A religiosidade era tanta por aquelas terras de montanhas, que com quatro anos eu já me preocupava, junto com meus colegas de mesma idade, que pecado eu teria que confessar ao abade para que ele tivesse fé em mim, porque como todos confessavam pecados, se eu não contasse nenhum, ele acharia que eu estava mentindo e me recomendaria mal ao pai. Não ao meu pai, mas ao pai dele. Só muito mais tarde eu li sobre a Síndrome de Estocolmo, e entendi porque razão a aldeia não comentava à boca larga e escancarada as mazelas quando as havia lá para os lados do Adro da Igreja. Pensavam por aqueles tempos que criança não presta atenção no que dizem, mas há crianças que prestam atenção em tudo e ficam caladas para não perceberem que entenderam.
Aquela cerejeira era muito linda, mas apenas dava frutos uma vez por ano. Meu pai a amava. Não me lembro de ter comido cerejas, dela, com dois ou três anos, mas apenas aos quatro. De todas as vezes que voltei a minha terra não foi em época de florada nem de frutificação. Mas a vi, cada vez maior, mais frondosa. Mas isto foi em 1949. Quando me encontrei com meu pai em Fornelos em 1983, ele me mostrou uma nova cerejeira que plantara, nada mais que uma haste de pouco mais e um metro e meio de altura, mas já com flores. Tiramos uma foto que está guardada num baú, o olhar embevecido de meu pai como se fosse um olhar para um filho amado. Não sei se ela ainda existe, mas provavelmente sim. O pessoal de minha terra é conservador, evita desperdícios e, sobretudo, adora cerejas. Eu também. Meu pai já faleceu. Um dia recebi de meu tio Miguel, seu irmão, uma foto de meu pai sobre uma cerejeira. Não me admiraria se fosse essa que ele plantou em 1983. Nunca perguntei. Prefiro pensar que sim, mas amo tanto este planeta, que gostaria de passear com alguém pelos campos para que me contasse a história de cada árvore, quando foi plantada, quem a plantou, a história do lugar, suas floradas, sua generosidade nos frutos. È que eu também gosto de árvores que dêem frutos, de cuidar do que se tem, sejam filhos ou árvores. Tenho algumas... Ou será que elas me têm a mim?
® Rui Rodrigues