Australopithecus Afarensis
Imagine-se numa imensa savana cheia de feras imensas e terríveis, nenhuma aldeia, cidade, instrumento, escrita, tipo de agricultura, roupas, casas, nada. Seus companheiros falavam com estalidos da língua, auxiliados com sinais feitos com o corpo, cabeça e braços. Apenas o fogo tinha sido descoberto cerca de 200.000 anos antes. O progresso da inteligência humana se fazia, naqueles tempos, a uma velocidade muito lenta digamos, por exemplo, de um quilômetro por ano. Hoje evoluímos a uns duzentos quilômetros por hora e cada vez mais rapidamente.
Fiquemos então neste cenário de savana, em África, fazendo parte de um pequeno grupo humano que se movimentava sempre para norte em busca de temperaturas mais frias devastando as frutas e raízes de árvores que iam encontrando, uma ou outra caça ainda fresca que tivessem encontrado ou abatido. A cada geração um novo e pequeno avanço. Imagine-se como fazendo parte de um grupo de uns vinte indivíduos, observando, pura e simplesmente, o que se passa ao seu redor durante uma semana...O que poderia ter visto?
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(Chegada a Novo Lugar)
Homo Ergaster
O pequeno grupo havia caminhado durante todo o dia sem encontrar lugar onde existissem árvores de fruto suficientes para lhes garantir um pequeno descanso, uma pequena estadia de pelo menos uma semana, antes que se vissem obrigados a caminhar incansavelmente em busca de nova fonte de alimentação. Toda a sua vida tinha sido assim, nem se lembravam mais de onde tinham vindo, nem há quantas luas. Pelo entardecer chegaram às margens de um pequeno rio. Mergulharam o rosto na água sorvendo-a gole a gole, enquanto olhavam ao redor e escutavam os sons que vinham da mata fechada tentando identificar algum predador. Tudo o que carregavam eram pedras de sílex talhadas para formar instrumentos para bater e para cortar, e uns varapaus de madeira seca ao fogo, terminando em ponta que usavam para espetar. Um dos do grupo carregava uma pequena bolsa feita de couro, com areia no fundo, e no interior brasas de carvão que ele cuidava sempre de atiçar quando sentia que se iriam apagar. Essa prática evitava ter que acender o fogo todos os dias, esfregando madeira contra madeira até prenderem fogo, ou sílex contra sílex jogando fagulhas sobre musgo seco, tarefa que expunha o grupo ao perigo por ser muito demorada.
Por ser tarde, o grupo fez uma fogueira perto de uma árvore, e o restante subiu pelos troncos de outras mais próximas, para as copas. No dia seguinte fariam um lar provisório. Sempre provisório. Seu tempo de estadia dependia dos alimentos disponíveis naquela região. Naquela noite dormiriam com um olho aberto e outro fechado. Quando a fogueira esmaecia, um deles descia, colocava mais galhos secos para queimar e voltava para a copa das árvores. Então, aquela voz fantástica com força de mil gargantas, lançou seus raios ferozes sobre a floresta lançando a lei imperativa do silêncio. Nem o líder com alguns pêlos já brancos e horrorosas cicatrizes, ousava grunhir para a tempestade misturando-lhe estalos da língua e urros, sua forma de se comunicar.
Noite Primeira
A lei do Silêncio
Quando alguém do grupo familiar - os vinte indivíduos pertenciam a uma mesma família - queria impor sua vontade, gritava, e se não fosse suficiente o grito, mordia, pegava em seu espeto de galho, ou ainda de forma mais ameaçadora, seu sílex batedor ou o cortante. Mas apenas o chefe do grupo tinha uma voz de trovão. Muitos achavam que era um emissário daquela entidade maior que agora elevava sua voz e lançava raios. Talvez essa entidade os houvesse "feito". Ela tinha também o poder de chorar depois dos gritos e dos raios como de arrependimento, e a chuva costumava cair em seguida, quando a entidade se apaziguasse. A chuva eram as lágrimas da entidade...Mas até o chefe agora, e sempre nessas horas se calava, agarrava os joelhos com as mãos, colocava a cabeça entre os joelhos, emudecia, aquietava-se e por vezes tremia. Foi assim que ele ficou por longo tempo enquanto os trovões ribombavam pelos céus, os raios riscavam o negrume da noite, e quatro crianças do grupo choravam. Nessas horas qualquer fera se calava e recolhia a suas tocas. Sob esse aspecto, não temiam as feras. Acordaram com os primeiros alvores da manhã.
Dia dois
O encontro
Acordaram em silêncio, como sempre, para não chamar a atenção dos animais selvagens do lugar que andassem por perto. A tempestade havia passado. Ouviram um choro. Com toda a prudência e através de sinais, os homens desceram silenciosamente das copas munidos de suas armas e caminharam lentamente, camuflando-se com a vegetação, pela margem do rio. Encontraram uma jovem ao lado do corpo de um homem que jazia no chão, imóvel. Aproximaram-se e viram que estava morto por causa de uma picada de cobra. Seu pé apresentava uma grande área necrosada que lhe subia pela perna. Houve um começo de confusão, porque uma parte do grupo queria que a jovem também morresse para não consumir os alimentos daquele lugar. Um dos jovens queria a mulher para si, e o chefe do grupo deu ordens claras para que deixassem os dois a sós. Ali mesmo, rodeados pela tribo, ele a colheu por detrás e fizeram sexo em silêncio. Quando os dois urraram de prazer não havia mais inimizades. Haviam sorrisos.
Passaram o dia usando sílex para cortar ramos de árvores e folhas grandes. Quando o sol se pôs uma tenda grande estava já pronta, com lareira na entrada. Assaram uns roedores que outra parte do grupo caçara durante o dia. Foi então que repararam na jovem recém chegada. Era mais alta que eles, até mais que o chefe. Começaram a tocá-la, e a admirá-la. Daria bons filhos,altos e fortes. Nessa noite, deitou-se com o chefe da tribo, de voz de trovão. Ele era o mais forte, o que comia o que queria, tanto quanto houvesse, desde que não faltasse pelo menos uma mordida para os outros. A criança que nascer pertencerá a todos do grupo, parte da família.
Dia três
O Mamute
Dia Quatro
Carne para todos
Do alto das copas mais altas das árvores choveram pedras quando o mamute passou perto. Todas lhe visavam a cabeça. O animal ficou estonteado. Então os chuços foram lançados, espetando-se na pele que começou a sangrar. Quando o mamute se abateu sobre os joelhos, o grupo inteiro lhe caiu em cima. Alguns do grupo cortaram-lhe a pele, e retiraram, esfomeados, nacos enormes que mastigaram avidamente. Não tinham como guardar os restos que atrairiam imediatamente as feras carnívoras do lugar. Carregando pedaços de carne nas mãos, abandonaram imediatamente o lugar levando suas armas e a bolsa de couro, com areia no fundo, onde repousavam algumas brasas. Alguém olhou para trás e grunhiu para o resto do grupo que o Mamute ainda respirava.
Dia Cinco
A Caverna
Dia seis, Surge
Uma Nova Arma
Quando o dia nasceu os homens tinham saído para caçar. O máximo que se poderiam permitir era ficar dois dias sem caçar, desde que tivessem frutas ou raízes comestíveis. A carne deteriorava-se muito rapidamente, as frutas duravam um pouco mais. Ficaram na caverna as crianças, as mulheres e três homens de guarda. A nova mulher no grupo, que perdera o companheiro mordido por uma cobra, tinha algo de diferente dos demais. Não era apenas mais alta. Seu nariz, o crânio, a quantidade de pelos. Sutilmente, era diferente. Naquele par de dias tinha apanhado as peles de mamute e as secara ao pé das brasas da lareira. Pacientemente cortara as peles em tiras e as trançara, dando-lhes nós nas pontas. Fizera duas cordas muito resistentes. Uma, dera ao encarregado de manter o fogo para que pendurasse o reservatório pelo ombro. Na outra a esticara num ramo seco de árvore e lhe fizera dois nós, um em cada extremidade do galho que ficara duro e levemente curvo. Pacientemente escolhera pedaços de pequenos e finos galhos, tirara-lhes a casca, e os raspara com afiados pedaços de sílex. Finalmente colocou uma lasca das que sobraram em cada uma das fendas que abrira na ponta das varetas. Quando os caçadores voltaram da caça com algumas pequenas peças, repararam que a estrangeira tinha agora duas varas com corda e mais algumas varetas com sílex na ponta. O grupo nunca se questionara para que servia aquilo. Pensaram que era um pau de apoio para quem está cansado ou não pode caminhar por estar ferido no pé.
Na verdade eram iguais aos que usavam para acender o fogo, mas bem maiores, quase da altura de um homem. Questionaram-na entre grunhidos. Queriam saber o que era aquilo. Ela então ofereceu uma ao chefe, e deu-lhe duas das varetas com ponta de sílex. Afastaram-se um pouco do grupo e ela o ensinou a usar pela primeira vez um arco e flecha. A primeira flecha que ela atirou ficou cravada no tronco de uma árvore a uns 20 metros de distância. Naquela noite, quando lhes pareceu ouvir um chamado fraco vindo dos lados do rio, não deram importância. Ninguém estava faltando no grupo. Sua contagem se fazia pela forma dos rostos e pelas linhas e silhuetas dos corpos. Deviam ter escutado mal naquela floresta cheia de sons.
Dia Sete
Uma Nova Vida
Pela manhã, antes de saírem para caçar, o chefe determinou as tarefas. Mulheres fariam a coleta de frutos, folhas e raízes, e preparariam arcos e flechas, os homens saíram para caçar perto do rio levando os dois arcos e algumas flechas. Pelo caminho voltaram a ouvir um grunhido fraco vindo da mesma direção. Encontraram jazendo na margem o menino perdido durante a travessia. Estava fraco, uma perna quebrada. Conseguiu sorrir quando viu sua gente por perto. Havia um clima de otimismo no grupo. Aos 12 anos já eram adultos, aos 35 provavelmente estariam mortos. O arco e a flecha, pensavam, lhes traria mais anos de vida,mais tempos de descanso, mais fartura de comida.
Rui Rodrigues
PS- Há décadas que mergulho nos assuntos ligados a antropologia, paleontologia, arqueologia e ciências afins. Este conto, ou crônica (me vi por lá junto com os Australopitecos Afarensis e o Homo Ergaster) é fruto disso.
vídeo recomendado: A origem do Homem - Discovery Channel
https://www.youtube.com/watch?v=w8Pp6KmIMu0