Meu encontro com Agatha Christie
Eram os olhos oblongos, bem protegidos por saudáveis pálpebras que me atraiam por Agatha jovem, além, é claro, de um corpo macio e confortável, mas nunca me declarei para ela. Morávamos muito longe um do outro, eu era muito novo e ela já avançava para os finalmentes. Li todos os livros dela, depois faleceu.
Com o caos estabelecido no Brasil e o aumento de crimes por facilidades de justiça, as instituições começaram a perder o controle e os crimes sem solução começaram a aumentar e a dar dor de cabeça a muita gente. Pensei em Agatha, porque ela tinha o dom de resolver crimes tão bem ou melhor que Sherlock Holmes ou 007 que nem era detetive. Ela era contemporânea de James Bond, portanto moderna.
Para contactá-la tinha que consultar uma dessas videntes que conseguem ver falecidos, o passado e o futuro sem sair do presente. Nunca acreditei nessas pessoas, mas resolvi arriscar. Encontrei uma em Esteio num rodeio no Rio Grande do Sul que dizia ser cigana do Uruguay, tinha um brinco só em argola, e bebia bem. Bastante. Era famosa na cidade. Entrei na tenda dela. Disse-lhe que precisava contactar uma pessoa morta: Agatha Christie. Ela disse que era muito difícil, por ser inglesa, mas que tentaria. Combinamos o preço. Então ela me disse:
- Espere um pouco. Não me desperte nem toque em mim haja o que houver. Agatha vai aparecer por aquela cortina. Apontou para uma cortina preta na sua pequena sala circular. Logo em seguida apoiou a cabeça entre o braço dobrado em cima da mesa, na minha frente, e ali ficou imóvel.
Havia uma atmosfera. Estava quase escuro, como se alguém tivesse reduzido a potência da luz através de um reostato. Quase escuro, beirando o crepúsculo da passagem para o além.
Ela não disse uma só palavra mais. Fiquei olhando uns dois minutos ao redor, três, quatro, não sei... Já estava pensando em ir embora quando Agatha apareceu pela cortina e se sentou numa cadeira junto à cortina. Uma luz diáfana incidia no rosto da aparição. Disse-me naquele inglês londrino, lembrando um pouco, muito pouco, o entrecortado do cockney das docas de Londres, porém impecável:
- Olá...Vamos direto ao assunto. O que o trás aqui é a morte de Marielle Franco...
- Bem... Não exatamente, mas também me interessa. Quem a matou? - Uma mistura de política e tráfico. O tráfico lava dinheiro com políticos, cada facção apoia um candidato. Sabe como é na máfia? O chefão abana a cabeça ao falar de um sujeito e diz claramente em respeito a ele:
- Um dia esse aí ainda vai ter uma indigestão!... E o sujeito aparece morto, esquartejado, com uma pedra no estômago. Se você se interessa por máfias, volte aqui que eu tentarei descobrir pra você...
- Não, não.. Pode deixar. Tenho outro caso mais importante: Um político foi esfaqueado em Juiz de Fora, Minas Gerais...
- Ah! Sei... Falou-se muito nisso lá em cima! (e apontou o dedo para o alto). Não vou resolver esse caso porque você vai ganhar alguma coisa com isso e eu não vou ganhar nada... Mas...
Eu tive que interromper:
-Mas eu pago a ela... (E apontei para a vidente aparentemente dormindo sobre o braço apoiado dobrado em cima da mesa)
- Ela ???!!! ... (e apontou para a vidente aparentemente dormindo sobre o braço apoiado dobrado em cima da mesa)...
- Sim! Ela mesma...
- Mas eu não tenho nenhuma sociedade com ela. Escute e siga meu raciocínio. Se eu for muito depressa, avise: Estava todo mundo olhando para o candidato lá no alto. Então deram-lhe uma facada em meio a uma multidão. Pegaram o sujeito agressor ali mesmo e levaram para a delegacia. Certo?
- Certo!- Respondi reforçando com um acenar de cabeça.
- Repare que todos os crimes são premeditados. Ninguém anda com uma faca no meio da rua a não ser que a tenha comprado naquele momento, que a leve para amolar, ou que faça parte de um esquema de assassinato. Acompanhou?
- Perfeitamente! Então foi um esquema, porque o sujeito não tinha saído do supermercado nem estava com o talão da compra, e a faca estava tão bem afiada que rompeu as tripas de forma bem profunda...
- Certo! (ela era maravilhosa)
- Passados dias, todo mundo em Juiz de Fora de olhos atentos... Permita-me um à parte: Há quanto tempo Juiz de Fora não era "notícia importante" nos jornais?
- Xi!... Há décadas, acho...
- Mas então fique atento porque ainda é notícia... Duas semanas depois, eu acho, Aparecida Maria da Costa que era a dona da pensão onde Adélio, o esfaqueador, se hospedara duas semanas antes do esfaqueamento, morre. Ela tinha dado um depoimento e não poderá mais confirmar, modificar, acrescentar, nem servir de testemunha. Estava doente de câncer terminal sim, mas há remédios sutis que podem apressar a morte. Está acompanhando, não?
- Sim, estou... Pode continuar...
O ambiente esfriara ou eu estava com febre. O ambiente ficara mais escuro.
Agatha disse-me:
Pode levantar-se, mas não toque em Alzira...
- Quem é Alzira?
- Ora... Essa aí, dormindo em cima da mesa, a sua vidente...
- Mas porque me levantaria eu?
- Para apanhar um cálice de vinho do Porto, ou whisky para aquecer, que está sobre a mesinha bem atrás de você.
Agatha, tal como os ingleses em geral, são apaixonados pelo vinho do Porto. Levantei-me. Apanhei um cálice que enchi de Porto, e logo em seguida dois copos desses bojudos que enchi com glenfiddich. Degluti o Porto de vira-vira e levei os dois copos com whisky para a mesa. Dei o primeiro gole no meu, puro, e ainda com a boca doce do porto, senti aquele malte muito bem tratado ir descendo garganta abaixo... Enquanto eu preparava as bebidas ela ia dizendo:
- Já ouviu falar em Rogério Inácio Villas?
- Não... Nunca...
- Ele morreu também na mesma pensão, uma torre de Babel, com gente de muitas nacionalidades. Era usuário de drogas.
- Bem... Minha querida Agatha Christie... Estou meio confuso... Não sei como relacionar tudo isso. Adélio, o esfaqueador, também tinha um passado de drogas...
- Sim, tinha. - Disse Agatha condescendente. Mas espere para ficar mais confuso... Ouça.
- Sim, estou escutando...
- Esta semana, policiais de S.Paulo foram a Juiz de fora para acompanhar a troca de 15 milhões de dólares. Foram encontrar-se com policiais de Minas Gerais que intermediavam a troca do dinheiro, representando outro empresário... Mas a maior parte dos dólares era falso, e começou o tiroteio, um policial foi morto, outros feridos, os empresários negam os dólares...
- Incrível isso... Polícia contra polícia...
- Policiais que trabalhavam em horas "vagas" pra fazer "bico"...
- Mas que troca foi essa? Trocaram exatamente o quê?
- Brilhante meu caro... Brilhante pergunta...
- Grato, Agatha... Grato... Mas eu vejo isso como um pagamento!
- E certamente foi. Um pagamento por serviços prestados. Já acha que pode juntar as peças ?
- Preciso de um tempo pra pensar. Bastante tempo. Você se importa de me adiantar o final, isto é, a trama?
- Não pretendo tirar-lhe esse prazer, o suspense. Só lhe vou dar uma linha de raciocínio se não se importar...
- Diga...
- Adélio recebe instruções ali mesmo, na pensão em Juiz de Fora de uma organização criminosa. Note que a dona da pensão e o drogado morreram depois que Adelio foi preso. possivelmente a senhora escutou algo, e o drogado sabia de algo. Não há coincidências para mortes tão cadenciadas a curto prazo de duas pessoas que viviam na mesma pensão. Adelio vivia acima das posses, tinha computador, celulares, pagou 400 reais adiantados pra pagar a pensão.
- Faz sentido. Poderia ser....
- Sim... E agora vamos ao caso dos dois "empresários" que negam os dólares... Porque pagar com dólares falsos, já que não era uma compra dessas notas? Isso era então um escárnio, uma provocação?
- Talvez porque Adelio tenha falhado!
Tomei meu whisky de uma vez só, quase me engasguei e como Alzira não tinha ainda acordado, tomei o dela que eu deixara sobre a mesa para quando acordasse. Então levantei-me, virei-me de costas, e me servi de mais um Whisky puro.
Quando me voltei para continuar a conversa, Agatha havia desaparecido e Alzira estava sentada na mesa, completamente desperta, a sala estava iluminada e fazia um calor dos diabos. Acho que cheguei a vislumbrar um vulto por detrás da cortina, mas foi impressão minha. Vou voltar lá logo que possa. Ainda fiquei com algumas dúvidas.
Rui Rodrigues