O naufrágio do “Santa Maria da Rosa”
Esclarecimento
Não há criança que não se
fascine com um modelo de uma nau ou caravela, daquelas que a partir de 1432
começaram a navegar ao longo da costa africana, cada vez mais para sul. São
velas, cordames, mastros, roldanas, madeira, que levavam a aventura para mares
que jamais se tinham navegado. Muitas naus e caravelas foram construídas das
quais não se lembram os nomes, e são as que sofreram naufrágio as mais
conhecidas porque deixaram “saudades”. As saudades é que escrevem livros. Neste
texto, conta-se a história da “Santa Maria da Rosa”, uma fragata, vulgarmente
conhecida como Santa Rosa construída em 1715, naufragada em 6 de setembro de
1726. Os dados foram pesquisados conforme links e a ambientação e hipóteses aqui aventadas levam as "pinceladas" deste autor.
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Pelo
ano de 1715
No ano de 1715 apareceu o
primeiro jornal oficial português, o “Gazeta de Lisboa”.
Tal como hoje, publicava
notícias, anúncios mas nada de política porque reinava D. João V, 24º rei de
Portugal, sem oposição. Em destaque o acompanhamento da construção naval para
garantir a navegação das frotas mercantes portuguesas em mares infestados de
piratas, e garantir o território e as colônias. Nessa época, Inglaterra e
França disputavam os mares e dividiam o mundo entre si. Havia que ter cuidado
não só com as nações, como com a pirataria cujo período áureo se iniciara em
1690 e se estenderia até 1730. Nesse período havia entre 1.000 e 2.000 piratas
em sua maioria britânicos, infestando os mares. Mais de 2.400 naus e caravelas
foram atacadas e capturadas. Ao pirata Bartholomew Roberts se atribuem 400
dessas baixas.
Atuavam principalmente no
Atlântico sul em demanda dos galeões espanhóis que vinham de Cartagena de
Índias na atual Colômbia, e dos portugueses do Brasil. Holandeses também
atacavam as naus e comboios portugueses. O comandante de uma delas, a “Nossa
Senhora do Rosário”, em 1648 vendo-se perdido em combate com a nau “Utrecht”,
holandesa, esperou que os holandeses iniciassem a abordagem para por fogo no
paiol. As duas naus foram para o fundo. Dos 700 homens a bordo da “N.S.
Rosário”, sete foram recolhidos no dia seguinte. Não se esperava igual sorte
para a fragata S.M. da Rosa que, na Ribeira das Naus em Lisboa, estava acabando
de ser construída. Era um portento dos mares com seus 56 metros de comprimento,
1.100 toneladas, três mastros, armada com 70 canhões. Mas voltemos no tempo e
vamos até a Ribeira das Naus...
A Ribeira das Naus e a partida da Nossa Senhora da
Rosa
A Ribeira das Naus não é uma Ribeira. É um cais à beira do rio Tejo onde se construíam galeões e caravelas que percorriam os mares. O que nos chama a atenção é a imponência da fragata: Um portento dos mares com seus 56 metros de comprimento, 1.100 toneladas, três mastros, armada com 70 canhões, elevando-se, já com as velas enroladas, sobre o nível do cais. Depois eram os cheiros do cais. Suores curtidos de semanas e meses sem banho, misturados a cravo e canela que chegavam do Brasil, sacas de café, azeites, limões e laranjas para evitar o escorbuto, sardinhas salgadas em barricas, charque, vinhos e aguardentes que vazavam de um ou outro barril mal manuseado, a vozearia dos mestres e capatazes apressados, as imprecações, o cadenciado marchar dos destacamentos de fuzileiros experientes que chegavam com jovens arrebanhados á força, nas ruas de Lisboa, arrancados de suas famílias, para servir na marinha. Muitos pais somente saberiam que tinham sido engajados depois que a nau partisse. Muitos pais os empurravam para as ruas, nessa época, para que fossem escolhidos e pudessem ter uma vida digna. O balir de cabras e ovelhas embarcadas para garantir o leite dos oficiais, cheiro de bacalhau, de couro das fardas, o chiar de vergas com o vento, o trote de mulas e burros de carga. E a vozearia marcando o ritmo da pressa.
O mesmo cais a veria partir
para a batalha do Cabo de Matapã (atualmente cabo Tenaro na Grécia) em Abril de 1717. Ela fez parte da
frota portuguesa de sete embarcações enviada pelo rei D. João V para, em
conjunto com Malta, Veneza e outros estados, defender os interesses da Igreja
católica contra os turcos que a ameaçavam. Veria ainda esta nau chegar e partir
muitas vezes, agora protegendo os comboios anuais que iam para o Brasil com
carregamentos da metrópole e voltavam carregados de couros, açúcar vendido a
peso de ouro, fumo, ouro em pó, ouro em lingotes e pedras preciosas. Um bom
carregamento poderia dar como paga a cada marinheiro, o equivalente a 36 anos
de trabalho. A comida a bordo era sempre racionada e não raro os oficiais
vendiam aos tripulantes, em mercado negro, a preciosa comida que lhes rendia um
faturamento extra. Quem não podia ou pensava em economizar, caçava ratos e
baratas na imundície que eram as naus daquela época, com água racionada usada
apenas para cozinhar e beber. Poderiam levar mais água, mas havia que dar
espaço para carga. A vida dos tripulantes era grátis. A carga, não.
Sempre que partia, uma
multidão no cais entre lágrimas, soluços, acenava com seus lenços brancos como
numa última despedida recheada de esperança numa volta proveitosa. Viram as
velas diminuir lentamente, na medida em que a nau se afastava levada pelo
vento, rumo ao estuário do Tejo demandando o alto mar. Mas conheciam os
números. Dos que partiam, em média só pouco mais da metade voltava. Em 1726, só
três voltaram da Santa Maria da Rosa. A fragata, essa não. Levava a bordo além
da tripulação de marinheiros, uma força de fuzileiros para defesa e ataque no
abalroamento por nau inimiga ou para abalroá-la.
A volta - Partida do cais do Rio de Janeiro – Praça
Mauá.
No dia 20 de março de 1726, o
capitão
Bartholomeu Freire comandando a NS Rosa,
e a fragata NS da Nazaré
partem para Salvador comboiando 18 naus mercantes numa viagem que duraria dois
meses e quatro dias. Ficaram em Salvador mais dois meses e meio em operações de
carga e descarga, e nesse ínterim, outras 37 embarcações se foram juntando à frota
aguardando a partida na segurança das duas naus de guerra. No dia 24 de Agosto de 1726 a frota partiu
carregando cerca de 27 mil rolos de tabaco, 13 caixas de açúcar, 20 mil couros,
milhares de cocos e um grande número de arcas e baús de jacarandá. Nestes baús
e arcas, cerca de 10 toneladas de moedas de ouro, além de ouro em pó e barras alem
de diamantes e pedras semipreciosas, divididas entre as duas embarcações de
guerra, cabendo à Santa Rosa 6,5 toneladas que faziam parte do quinto da Coroa
Portuguesa. As moedas de ouro, de 22 quilates, eram cunhadas no Brasil e
marcadas com “M” se cunhadas em Minas Gerais, “R” no Rio de Janeiro, “B” na
Bahia. No paiol da Santa Rosa, mais de 200 barris de pólvora para municiar os 70 canhões.
A tripulação dizia adeus ao
Brasil, entre sorrisos e saudades das mulheres cheirosas que tomavam banho
todos os dias, perfumadas, chiando tanto no falar como nas ruas do Chiado em
Lisboa, que exatamente por isso tem este nome. Não veriam mulheres até chegarem
a Lisboa, tantos meses depois. Por falta de mulheres, uns se divertiam com
outros, afeminados, num regime espartano: Os comandantes sabiam disto, todos
sabiam, mas quem fosse apanhado praticando o ato sofria punição.
O
naufrágio
Logo no dia seguinte, 25 de
agosto, a frota enfrentou uma forte tempestade em alto mar que durou alguns
dias. Tão forte que o comboio se separa em duas partes. Uma, em torno da NS da
Nazaré, que ruma a 6 léguas da costa tentando recuperar o rumo programado para
a volta a Lisboa, e a outra acompanhando a NS da Rosa. No dia 6 de setembro, ao
largo de Recife, depois das ave-marias, o que deve ter acontecido pouco depois
das 18:00, na nau mercante “Vila Real”[1]
que acompanhava a NS da Rosa, que carregara vinhos, azeite e peças de linho
branco para o Brasil e agora carregava cocos, a tripulação estava em sua hora
de descanso e recreio, recuperando-se do árduo trabalho a bordo e preparando-se
para dormir nas incomodas redes amontoadas no convés e no tombadilho. Os
grumetes, crianças entre os 7 e os 16 anos, aprendizes de marinheiro e que
constituíam uma considerável parte da tripulação, dormia no convés. Foram os
primeiros a ver uma grande explosão iluminando o anoitecer. O céu ficou
iluminado. Podiam ver-se os rostos, as velas tingidas pelo alaranjado da
explosão apesar da distância. Uma explosão dessas só poderia ser devida a
pólvora, e a embarcação que carregava tamanha quantidade que provocasse uma
explosão dessas somente poderia ser a NS da Rosa. Primeiro pensaram que se
tratasse de ataque pirata e a ordem dos oficiais foi de reduzir o pano das
velas e mandar a tripulação dos canhões para seus postos. Depois as ordens se
alteraram porque não havia vela inimiga por perto. Com o mar ainda encapelado,
rumaram para o local da explosão onde se viam os destroços. Chegando perto,
botes foram lançados ao mar com dificuldade. Quando chegaram ao local, cerca de
uma hora depois, já noite escura, não havia sinal da embarcação. Afundara quase
que instantaneamente completamente desfeita. Corpos boiavam na água ondulando
ao sabor. Movimentos na água indicavam a
presença de tubarões atraídos pelo sangue. Gritos chegaram de dois lugares.
Sete homens agarravam-se aos escombros. Quatro estavam feridos. Recolhidos a
bordo, contaram que houvera uma grande discussão entre o capitão Bartholomeu
Freire de Araújo e o comandante dos fuzileiros. Nunca se soube ao certo sobre
os motivos da discussão, nem quem desceu ao paiol para atear fogo à pólvora ou,
por descuido, lançar chama ou faísca. Se foi discussão, e por causa dela alguém
se suicidou assassinando todo o resto da tripulação, ou estava bêbado ou foi em
desespero de causa, e pode entender-se se o desespero de causa estiver ligado
aos lucros particulares ou á honra.
Dos sete sobreviventes somente
três chegaram a Lisboa.
A
“Gazeta de Lisboa” não publica o naufrágio
A partida e a rota das frotas
mercantes eram sempre sigilosas. Com a França, a Inglaterra e a Holanda com
piratas soltos no mar, enfraquecendo nações, minando-lhes os recursos, era
conveniente o sigilo. Espiões eram mantidos nas principais cidades do Brasil,
da Colômbia e do México para que os piratas pudessem ser avisados e isso tinha
que ser feito com bastante antecedência. No caso da frota capitaneada pela NS
da Rosa, havia um interesse maior: Ninguém poderia saber do naufrágio, porque o
dinheiro e as riquezas que levava serviriam para o rei pagar os seus
compromissos. Sem esse dinheiro teria que pedir emprestado a banqueiros e os
juros subiriam astronomicamente. Era e é assim que ainda funciona o mercado. Outro
motivo para o sigilo era a própria rota que, uma vez descoberta se tornaria
vulnerável a futuro.
O valor total da carga em ouro,
moedas, barras, pedras semipreciosas, está hoje avaliado em cerca de 2 bilhões
de reais
A Gazeta de Lisboa só publicou o
naufrágio no ano seguinte. Famílias das tropas e tripulantes angustiaram um
longo e tenebroso ano. No Rio de Janeiro e Salvador, as namoradas esperaram em
vão pela volta do NS da Rosa.
Rui Rodrigues
Leia mais em:
http://domjoaoquinto.blogspot.com.br/2007/11/acontecimentos-no-ano-de-1715.html
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/GazetadeLisboa/GazetadeLisboa.htm
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/GazetadeLisboa/GazetadeLisboa.htm
[1] Sem a
relação das 55 embarcações que compunham a frota, adotei este nome fictício
para dar uma visão da cena apreciada por alguém que estivesse fora da NS da
Rosa. Talvez até existisse alguma embarcação com este nome.