Quando
eu era uma criança
Quando eu
era criança, tinha uma perfeita noção de que eu era “eu”, uma coisa muito
simples, que tinha vida e uma tremenda vontade de fazer “coisas”. Até planejava
o futuro, como eu gostaria que fosse. E foi mais ou menos como imaginei quando
era criança. Depois cresci e li muitos, muitos, muitos livros. Num deles li que
somos seres humanos. E assim passei décadas dizendo para mim mesmo que eu era
um ser humano. Quando li um livro de Isaac Azimov onde ele dizia que somos “unidades
de carbono”, comecei a ter uma percepção um pouco diferente do que era ser um “ser
humano”. Claro que já tinha lido sobre Freud e suas teorias, a Bíblia, Kafka, Nietzsche, Hawking, uma montanha de livros...
Tenho formação acadêmica. Mas agora eu já não era simplesmente um ser humano:
Eu passara a ser um “ser humano Orgânico de carbono e água”, quer porque somos
em média 80% constituídos de água quer porque o carbono é a base dos compostos
orgânicos. Comecei a complicar a minha vida na medida em que minha existência
se complexificava[i].
Quando eu
era criança ninguém pensava em ir à Lua. Só o Júlio Verne tinha imaginado isso
há muitas décadas atrás, mandando um sujeito para lá dentro de uma bala de
canhão. Com a segunda guerra mundial mais um louco teve essa ideia. Chamava-se
Von Braun, era alemão, fugira do nazismo e agora chefiava um departamento na
NASA, um organismo destinado a pensar grande, para fora de um planeta muito
pequeno, onde pensamos muito pequeno, chamado Terra. É nele que ainda vivo, e
já não sou nenhuma criança. Sei perfeitamente que o que mais tem nele é água grátis,
mas todos têm que pagar água. Entre o final da segunda grande guerra e o
trabalho de Braun na NASA, passaram-se pouco mais de 15 anos e passamos a ver a
Terra de longe, acabando ao vivo e a cores com o mito de que a Terra era plana
e suportada por tartarugas gigantes, e que era o Sol que girava à volta da
Terra.
Quando eu
era criança via o mundo dividido em duas partes: A minha família e os outros.
Esses tais outros se dividiam também em duas partes: Os que eram bons e os que
eram maus. Minha família era toda boa. Eu não tinha a menor dúvida até levar o
primeiro tapa que, diga-se de passagem, achei tremendamente injusto. Relevei
porque fiquei em dúvida entre a ação que cometi e a ordem para não a fazer. A
ordem era não fazer, e a ação ir com as outras crianças da aldeia cantar no dia
de reis à porta do povo de minha aldeia natal. Cantávamos e recebíamos doces caseiros.
Tenho certeza que meu pai, se a cena se passasse nos dias de hoje, ele iria
comigo. Não nasci em tempo errado, não. Meu pai é que nasceu e me fez muito
cedo, e minha mãe concordou em me parir.
Então cheguei
á minha fase adulta. Não estamos numa grande guerra de armas, mas estamos numa
grande guerra de sobrevivência pacífica. Numa analogia com a guerra fria dos
anos cinquenta, poderíamos dizer que estamos numa “sobrevivência fria”... Somos
todos politicamente corretos, queremos sempre tirar vantagem politicamente e
abominamos a violência quando alguém descobre que os queremos enganar tirando
vantagem deles. Quando os amigos não nos dão vantagens, costumamos descarta-los,
ou então somos amigos até o dia em que nos vêm pedir um favor. Nesse dia, a
amizade esfria até cair granizo. Mas sempre há boas e raras exceções.
Quando eu
era criança penicilina era uma descoberta recente, e a poliomielite fazia
muitas vítimas. Hoje progredimos muito nesse aspecto e já podemos até ter
membros e órgãos artificiais, fazer transplantes. Isso é muito bom para quem
tem acesso a esse tipo de medicina e tecnologia. Meu avô teve de vender quase
todas as terras para curar uma pleurisia líquida. Morreu disso. Hoje, se
sofresse de um câncer, teria que vender tudo do mesmo jeito. O progresso não é
para todos. Para a maioria é apenas uma propaganda de governos e de mercado. É
a guerra fria da sobrevivência. Nosso mundo divide-se em séculos. Hoje, 60%
vive nos finais do século IXX, 30% no século XX e 10% no século XXI.
Hoje vi a
cidade do alto de um prédio. Gente minúscula passando lá embaixo como se fosse
teleguiada individualmente, carros passando para lá e para cá, Ônibus, aviões,
e barcos ao longe. Parece que todos têm algo para fazer. Andam muito depressa
movidos pela pressa de quem tem pressa. Quem tem pressa quer lucro, e por isso
não pagam adequadamente. Mas não foi isto que me impressionou. O que me
impressionou, foi imaginar que um Deus teria que ter um cérebro do tamanho do
Universo para controlar os movimentos de todos os seres humanos em todo o
mundo, além de memorizar todo o passado de cada um de forma a lhe dar um
presente ao final de sua vida, ou manda-lo para o limbo por ter ido cantar no
dia de reis para ganhar doces caseiros. Quando escutei pela primeira vez: Deus
pode ser tão grande que possa criar uma pedra tão grande que ele mesmo não
possa carregar, me perguntei, do alto do edifício, olhando tudo se movimentando
lá embaixo, se Deus para controlar tudo pode ter um cérebro maior do que ele
mesmo possa ser.
Mas então,
o que nos move de forma tão controlada, tão integrada, tão ordenada, que
parecemos movidos por computador? Parece que são as ordens, tal como aquela que
meu pai me deu: - Não vais cantar com as outras crianças no dia de Reis, porque
eu não quero. Assim os exércitos vão para as guerras, nós vamos para as
consultas médicas, ao supermercado, apanhamos taxis ou ônibus ou aviões, os aviões
decolam e aterrissam, os barcos atracam ou soltam as amarras. Quando há uma
falha, alguém se machuca, alguém morre, alguém fica prejudicado. Além das “ordens”
tem que haver algo mais: A responsabilidade compartida, dividida, de forma a
não prejudicarmos os inocentes, os que não estão momentaneamente ligados ao “sistema”
do momento, como quem, pensativo, atravessa uma rua sem olhar se o sinal está
verde ou vermelho. Sinais também nos dão ordens.
Somos “unidades autônomas de vida”, constituídas de carbono e água, dirigidas
por ordens, a maioria delas emitidas por livros e papéis, e outras unidades não
autônomas animadas ou não, como sinais de trânsito e placas de proibido
estacionar.
Que mais
liberdades podemos querer, além de bater um papo com os amigos e tomar umas
cervejas geladas enquanto não nas proíbem as autoridades ou o nosso médico
popular? Muitas! Mas não podemos. Há ordens para não podermos sequer pedir liberdade
para certas coisas. Um exemplo? Quem não gostaria de poder retirar o voto dado
a um candidato que se mostrou incompetente, desonesto, ou que simplesmente não
nos agrada? Dizem que o voto é de confiança. Pois se é, e se perdemos a
confiança no candidato, teríamos de ter o direito de retirá-lo [ii] porque perdemos essa
confiança, e sem necessidade de julgamento.
®Rui
Rodrigues
[i] Complexificar
não existe na língua portuguesa o que é lamentável. É muito melhor do que dizer
“minha vida se tornava mais complexa”. São muitas palavras para transmitir uma
ideia que se pode simplificar com uma palavra nova, um neologismo:
Complexificar. O que sugere que nos devemos descomplexificar (este termo existe
na nossa língua). Complexar lembra mais ter um “complexo”, uma síndrome...