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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Quando eu era uma criança

Quando eu era uma criança



Quando eu era criança, tinha uma perfeita noção de que eu era “eu”, uma coisa muito simples, que tinha vida e uma tremenda vontade de fazer “coisas”. Até planejava o futuro, como eu gostaria que fosse. E foi mais ou menos como imaginei quando era criança. Depois cresci e li muitos, muitos, muitos livros. Num deles li que somos seres humanos. E assim passei décadas dizendo para mim mesmo que eu era um ser humano. Quando li um livro de Isaac Azimov onde ele dizia que somos “unidades de carbono”, comecei a ter uma percepção um pouco diferente do que era ser um “ser humano”. Claro que já tinha lido sobre Freud e suas teorias, a Bíblia, Kafka, Nietzsche, Hawking, uma montanha de livros... Tenho formação acadêmica. Mas agora eu já não era simplesmente um ser humano: Eu passara a ser um “ser humano Orgânico de carbono e água”, quer porque somos em média 80% constituídos de água quer porque o carbono é a base dos compostos orgânicos. Comecei a complicar a minha vida na medida em que minha existência se complexificava[i].

Quando eu era criança ninguém pensava em ir à Lua. Só o Júlio Verne tinha imaginado isso há muitas décadas atrás, mandando um sujeito para lá dentro de uma bala de canhão. Com a segunda guerra mundial mais um louco teve essa ideia. Chamava-se Von Braun, era alemão, fugira do nazismo e agora chefiava um departamento na NASA, um organismo destinado a pensar grande, para fora de um planeta muito pequeno, onde pensamos muito pequeno, chamado Terra. É nele que ainda vivo, e já não sou nenhuma criança. Sei perfeitamente que o que mais tem nele é água grátis, mas todos têm que pagar água. Entre o final da segunda grande guerra e o trabalho de Braun na NASA, passaram-se pouco mais de 15 anos e passamos a ver a Terra de longe, acabando ao vivo e a cores com o mito de que a Terra era plana e suportada por tartarugas gigantes, e que era o Sol que girava à volta da Terra.


Quando eu era criança via o mundo dividido em duas partes: A minha família e os outros. Esses tais outros se dividiam também em duas partes: Os que eram bons e os que eram maus. Minha família era toda boa. Eu não tinha a menor dúvida até levar o primeiro tapa que, diga-se de passagem, achei tremendamente injusto. Relevei porque fiquei em dúvida entre a ação que cometi e a ordem para não a fazer. A ordem era não fazer, e a ação ir com as outras crianças da aldeia cantar no dia de reis à porta do povo de minha aldeia natal. Cantávamos e recebíamos doces caseiros. Tenho certeza que meu pai, se a cena se passasse nos dias de hoje, ele iria comigo. Não nasci em tempo errado, não. Meu pai é que nasceu e me fez muito cedo, e minha mãe concordou em me parir.

Então cheguei á minha fase adulta. Não estamos numa grande guerra de armas, mas estamos numa grande guerra de sobrevivência pacífica. Numa analogia com a guerra fria dos anos cinquenta, poderíamos dizer que estamos numa “sobrevivência fria”... Somos todos politicamente corretos, queremos sempre tirar vantagem politicamente e abominamos a violência quando alguém descobre que os queremos enganar tirando vantagem deles. Quando os amigos não nos dão vantagens, costumamos descarta-los, ou então somos amigos até o dia em que nos vêm pedir um favor. Nesse dia, a amizade esfria até cair granizo. Mas sempre há boas e raras exceções. 

Quando eu era criança penicilina era uma descoberta recente, e a poliomielite fazia muitas vítimas. Hoje progredimos muito nesse aspecto e já podemos até ter membros e órgãos artificiais, fazer transplantes. Isso é muito bom para quem tem acesso a esse tipo de medicina e tecnologia. Meu avô teve de vender quase todas as terras para curar uma pleurisia líquida. Morreu disso. Hoje, se sofresse de um câncer, teria que vender tudo do mesmo jeito. O progresso não é para todos. Para a maioria é apenas uma propaganda de governos e de mercado. É a guerra fria da sobrevivência. Nosso mundo divide-se em séculos. Hoje, 60% vive nos finais do século IXX, 30% no século XX e 10% no século XXI.



Hoje vi a cidade do alto de um prédio. Gente minúscula passando lá embaixo como se fosse teleguiada individualmente, carros passando para lá e para cá, Ônibus, aviões, e barcos ao longe. Parece que todos têm algo para fazer. Andam muito depressa movidos pela pressa de quem tem pressa. Quem tem pressa quer lucro, e por isso não pagam adequadamente. Mas não foi isto que me impressionou. O que me impressionou, foi imaginar que um Deus teria que ter um cérebro do tamanho do Universo para controlar os movimentos de todos os seres humanos em todo o mundo, além de memorizar todo o passado de cada um de forma a lhe dar um presente ao final de sua vida, ou manda-lo para o limbo por ter ido cantar no dia de reis para ganhar doces caseiros. Quando escutei pela primeira vez: Deus pode ser tão grande que possa criar uma pedra tão grande que ele mesmo não possa carregar, me perguntei, do alto do edifício, olhando tudo se movimentando lá embaixo, se Deus para controlar tudo pode ter um cérebro maior do que ele mesmo possa ser.

Mas então, o que nos move de forma tão controlada, tão integrada, tão ordenada, que parecemos movidos por computador? Parece que são as ordens, tal como aquela que meu pai me deu: - Não vais cantar com as outras crianças no dia de Reis, porque eu não quero. Assim os exércitos vão para as guerras, nós vamos para as consultas médicas, ao supermercado, apanhamos taxis ou ônibus ou aviões, os aviões decolam e aterrissam, os barcos atracam ou soltam as amarras. Quando há uma falha, alguém se machuca, alguém morre, alguém fica prejudicado. Além das “ordens” tem que haver algo mais: A responsabilidade compartida, dividida, de forma a não prejudicarmos os inocentes, os que não estão momentaneamente ligados ao “sistema” do momento, como quem, pensativo, atravessa uma rua sem olhar se o sinal está verde ou vermelho. Sinais também nos dão ordens.

Somos “unidades autônomas de vida”, constituídas de carbono e água, dirigidas por ordens, a maioria delas emitidas por livros e papéis, e outras unidades não autônomas animadas ou não, como sinais de trânsito e placas de proibido estacionar.

Que mais liberdades podemos querer, além de bater um papo com os amigos e tomar umas cervejas geladas enquanto não nas proíbem as autoridades ou o nosso médico popular? Muitas! Mas não podemos. Há ordens para não podermos sequer pedir liberdade para certas coisas. Um exemplo? Quem não gostaria de poder retirar o voto dado a um candidato que se mostrou incompetente, desonesto, ou que simplesmente não nos agrada? Dizem que o voto é de confiança. Pois se é, e se perdemos a confiança no candidato, teríamos de ter o direito de retirá-lo [ii] porque perdemos essa confiança, e sem necessidade de julgamento.


®Rui Rodrigues

















[i] Complexificar não existe na língua portuguesa o que é lamentável. É muito melhor do que dizer “minha vida se tornava mais complexa”. São muitas palavras para transmitir uma ideia que se pode simplificar com uma palavra nova, um neologismo: Complexificar. O que sugere que nos devemos descomplexificar (este termo existe na nossa língua). Complexar lembra mais ter um “complexo”, uma síndrome...
[ii]  Ver como se pode retirar o voto dado a um candidato por perda de confiança. http://conscienciademocrata.no.comunidades.net/

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