A Natureza do Pontal do Peró.
A natureza é bela porque é a
expressão da beleza natural, e está sempre desprevenida. Se ela se vestisse,
perderia a beleza. Só o fato de escondermos a beleza com roupas maquiadas,
disfarçantes, já nos indica que há algo errado conosco. Dizem que nos vestimos
por causa da moral e da ética. Precisamos informar isso á natureza porque ela
não tem a mínima condescendência com a vestimenta e moral e ética é algo que
parece desconhecer tal como a entendemos nós. Uma rosa é sempre uma rosa, e é
sempre bela, e nem a cor indica mais ou menos beleza de umas em relação às
outras rosas. A natureza só não se apresenta desprevenida à noite, exatamente o
contrário do que fazemos nós, que nos julgamos apreciadores do que é belo:
Vestimo-nos de dia e nos despimos à noite, e é mais um sinal de que há algo
errado conosco. No entanto não é sempre que a natureza se descobre
completamente, ficando nua de corpo e alma. A natureza tem alma. O que vemos é
apenas o corpo. Para vermos também a alma da natureza temos que apanhá-la ainda
mais desprevenida do que de costume, de preferência ao nascer ou por do sol,
mas sempre – e isto é absolutamente necessário – quando não houver mais ninguém
por perto. È necessário mostrar nossa nudez à natureza para que ela se desiniba
e nos mostre toda a sua nudez do corpo e da alma. Com sorte ainda se pode
travar algum tipo de monólogo com ela.
Naquela madrugada, ainda
noite escura com o barulho das ondas batendo na areia, apanhei minha câmara e fui
até o Pontal do Peró. Fica perto de minha casa, que nem mais de cento e
cinqüenta metros são de distância. No meio do caminho, uma estrada descuidada
das prefeituras há mais de doze anos, parei para deixar passar uma cobra cipó
que também parara para saber se eu iria passar primeiro. Estava com o corpo
assente no chão, parada, ereta, pronta para atravessar o caminho, com a cabeça
pontuda a uns quarenta centímetros do piso fazendo um “s”. Admirei-lhe a
cortesia e esperei que passasse. Após breves segundos de hesitação, ela resolveu
passar primeiro e calmamente saiu rastejando para o lado contrário ao das
dunas. A natureza cooperava despindo-se das roupas superficiais como a vemos
vestida e me mostrava a alma, o espírito, que eu tinha que entender,
compreender, afagar, como a mulher carente apenas de nós e que dorme nos nossos
braços, nos mostra a alma. Breve cheguei na praia, ainda noite escura. Não se
pode chegar na praia com hora marcada, como quem vai para um evento
apressadamente. A natureza gosta que seja admirada, que estejamos disponíveis,
cheguemos antes do tempo e partamos depois que já se escondeu. Não se pode
entender uma mulher sem entender a natureza nem esta sem conhecer aquela. Vivem
juntas e são unha e carne. No entanto, diferentemente de qualquer mulher, a
natureza sofre de amnésia diária. Esquece tudo do dia anterior e nasce todo o
dia para abraçar o Sol como se o ontem nunca tivesse existido. Sua paixão por
ele é transcendental, algo inimaginável.
Fica ruborizada logo que o vê, e adquire tons de rosa, laranja, vermelho
fogo, tanto quando ele nasce tanto quando se vai para só voltar no dia
seguinte. Contagia nuvens, a atmosfera inteira e tudo se ruboriza. Em dias em
que a névoa sopra do mar ela perde a cabeça e até os sons do mar são abafados.
Compartilha conosco essa paixão dando-nos, com o silêncio e seus rubores uma
parte desse amor selvagem, natural, como em confidência de amantes sussurros. Dizem
que são muitas as naturezas, cada uma diferente, e é verdade. Já amei a
natureza dos vinhedos sobraçando rios em encostas íngremes, cumes num longe tão
perto cobertos de neve, e até as naturezas dos desertos, que cada um tem a sua,
e amei a todas como qualquer coração humano. Mas esta do Peró, do Pontal, é
brasileira, de estirpe índia, tratada por negros que a amam, habitada por
brancos, orientais, caucasianos, semitas, gentes de todos os credos, raças e
preferências. Mesmo não sendo uma natureza eminentemente mística é certamente
mista e diversa.
E entregue a meus
pensamentos e ansiedade em ver a natureza mais uma vez, cada vez uma surpresa,
ela me surpreendeu naquele dia. Estava maravilhosamente nua, entregue aos
amores com seu Sol adorado, dependente, e sem se lembrar que o dia anterior
tinha sido chuvoso e nem o vira, desabrochou suas flores, mostrou seu corpo
envolto em bruma e espuma do mar e me olhou nos olhos. Naquele dia eu era o seu
Sol, e bati a foto nesse momento exato, quando nascia. Ensinava-me também a
bater fotos, que tal como tudo há que ter paciência e saber esperar. Ali fiquei
com ela dizendo-lhe frases no ouvido, em pé, de braços em cruz, a cabeça
ligeiramente levantada, os olhos semicerrados na direção do pequeno sol que
começava a brilhar e sentindo por sua distância crescente em relação à linha do
horizonte como a mãe Terra se movia girando devagar para trás de mim.
Certamente a Natureza me ouviria porque a bruma abafava qualquer outro ruído e
até as ondas do mar mareciam mais brandas, marulhentas. Coisa não rara entre os
seres humanos, também o velho pescador de tarrafa a amava naquele amanhecer. Vi-o
quando emergiu da bruma, o olhar nas ondas de tainha, a tarrafa no ombro, o
passo lateral alongado e compassado, sempre pronto para correr e lançar a rede.
Dirigi-me a ele e falamos da natureza. Contou-me dos tempos em que, ainda pela
mão do pai, caminhavam desde Cabo Frio até o Pontal do Peró para pescar. As
terras para dentro do mar, naquela época não estavam ainda tão assoreadas como
agora, e havia um pequeno córrego junto às pedras. As onças vinham do lado de
Búzios para beber água. Já vira uma onça e o filhote, e muitas pegadas que já
não se vêem. Eram outros tempos em que além das tainhas cada um pescava cerca
de dez anchovas grandes por dia com linha grossa de mão. Hoje se pescar uma ou
duas é muito.
Não sei se o Calunga ainda monta
a sua barraca na praia em dias de feriados prolongados, onde vendia cerveja e
quitutes para acompanhar. Não importa. Políticos adoram dar seus nomes à
natureza e Calunga não é um nome natural e ele nem é político. Muito mais
bonito é tratar a natureza pelo seu nome condizente: Pontal do Peró. É um
Pontal e fica no Peró, na Baía Formosa. Não se pode ofender a mulher a quem
amamos dizendo-lhe no leito de amor o nome de outra. E quando voltei para casa
com a minha foto da amada natureza do Pontal do Peró, levei muito mais do que a
foto: O sabor das suas lágrimas de amor, espalhadas em espuma que respingava a
cada onda que marulhava nas areias da praia onde siris assustados se
alimentavam, procriavam. E trouxe o perfume de iodo que emanava daquele mar de
lágrimas de prazer da Natureza viva.
Rui Rodrigues.
PS - Receita de espaguete “furadinho”
com siris ao Pontal do Peró (Para duas pessoas)
- Pegue uns dez siris acabados de apanhar na praia
do Pontal. Lave-os. Ponha-os para cozinhar em pouca água, suficiente apenas
para cobri-los na panela. Reserve a água. Tire-lhes a carapaça e as patas
que não servem. Limpe-os sem perder o conteúdo. Pegue o corpo de cada um e
divida-o ao meio. Reserve também as garras.
- Numa frigideira funda ou numa panela coloque
azeite (ou manteiga), três dentes grandes de alho cortados em fatias, meia
cebola pequena e refogue ligeiramente com pimenta do reino ou com pimenta rosa
disponível na área, apanhada à mão. Junte os siris cortados e as garras. Adicione um pouco
de água do cozimento dos siris para não deixar secar. Adicione algumas
folhas de coentro. Mexa de vez em quando. (se desejar pode refogar também
com tomate cortado). O refogado fica pronto em cinco minutos.
- Enquanto refoga os siris, use o caldo que sobrou
do cozimento para cozinhar o espaguete “furadinho”, que absorve mais o
caldo do cozimento (ou caneloni, ou pene, o tipo de massa que desejar).
Quando o espaguete estiver cozido, retire o excesso de água (que deverá
ser muito pouca) e junte-lhe os siris refogados.
- Sirva com queijo ralado a gosto e acompanhe com
vinho branco seco.
- E não tenha vergonha de comer os siris com a mão
se necessário. A Natureza é sem vergonha mesmo. Se gostar, me convide!
Sobremesa: Mousse de Maracujá.
(preparada com uma a duas horas de antecedência)
Junte no liquidificador duas
latas pequenas de doce de leite e uma garrafa de suco concentrado de maracujá.
Bata durante um minuto, despeje o conteúdo em recipiente para levar ao freezer
e deixe pelo tempo necessário para que esfrie sem solidificar. Está pronta para
servir.