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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Amor vida e sexo em 2.327


Amor vida e sexo em 2.327


Zirca!... (primeiro foi um guincho horrendo... Depois a voz amaciou ecoando por todo o imenso apartamento de 20 metros quadradinhos do casal)...Meu bem... Você conseguiu encontrar aquela porca sextavada de neoprene para o meu joelho?

Uma porca de neoprene voou pelos ares na direção do velho companheiro que a agarrou em pleno ar, demonstrando que tinha reflexos perfeitos. Porca e mão caíram a seus pés, ficando inertes.

Borco, meu bem... (Disse a senhora idosa). Você não está se cuidando. Sua mão caiu outra vez. Não está apertando corretamente os parafusos. Quer que eu selecione um canal de demonstração, específico de seu modelo? Eles são muito bons nisso. Têm programa para tudo. Nem podemos reclamar...

Borco proferiu alguns impropérios, apanhou uma chave Philips, recolheu a porca de neoprene e o parafuso e atarraxou devidamente os componentes da mão. Depois cuidou do joelho que voltou a funcionar. Levantou-se e saiu do apartamento. Estava inteiraço, na verdadeira acepção da palavra. Ele era o que existia de mais moderno, quase todo de aço inoxidável recoberto por uma pele artificial que pareceria desapercebida dois séculos atrás.  Zirca ficou meditando em sua cadeira, olhando uma tela em três dimensões onde passava um programa sobre a vida no século XXI. Como tudo mudara. Para economizar dinheiro em hospitais, para tornar a vida mais fácil, e em busca da eternidade, os seres humanos de posses agora eram robotizados por completo, exceto o cérebro que ainda era original. Isso acabara com a necessidade de hospitais, operações, transfusão de sangue, infecções hospitalares, transplante de órgãos e até havia reduzido o tamanho dos cemitérios porque cérebros não ocupam grande espaço para serem enterrados. E a arquitetura? Um apartamento com vinte metros quadrados era um palácio, porque cérebro não defeca, e por isso não existiam banheiros. Para lavar a pele artificial bastava um pano úmido. Como a manutenção do cérebro era feita através de pequenas ampolas de nutrientes, as cozinhas tinham sido eliminadas. E para quê escovar dentes se não se comia? Realmente a vida se simplificara muito e sobrava tempo. Tempo era o bem mais disputado. Doenças respiratórias, asma? Isso era coisa do passado, porque para oxigenar um cérebro não era preciso muita coisa: só um pequeno cérebro-pulmão artificial, uma pequena válvula dentro do corpo mecânico.


O espaço no corpo agora sobrava e servia para carregar “coisas”. Borco usava para carregar o seu “laparoto”, um telefone, agenda, computador, que comandava quase toda a sua vida, e uma arma para desmonte de outros seres humanos com cérebro mais violento e que costumavam assaltar nas ruas para obter peças de reposição. Zirca usava o enorme espaço interior sobrante de seu corpo para guardar suas pinturas, pincéis, cílios postiços, mas nada de cremes. Cremes provocavam muita sujeira. Ambos carregavam uma camisa, um short ele, Ela uma curta saia, ambos um tênis extra, que serviam apenas para manter a aparência “humana”... Logo que Borco saiu do apartamento, ela saiu também. Sabia onde ele estaria. Foi encontrá-lo no bar do Play. Estava lá com a turma de amigos do condomínio, de frente para uma enorme TV assistindo a um jogo da Copa do Mundo. A algazarra de vozes mecânicas era estridente... Uma nuvem de fumaça pairava sobre a cabeça do grupo. Estavam “numa boa”.  As peles dos corpos tinham todas as cores. Umas eram amarelas, outras azuis, outras negras, outras brancas, verdes... As mulheres preferiam a cor rosa. O câncer acabara naturalmente. 

Belc, um húngaro bem humorado abriu espaço para Zirca que se sentou entre ele e Borco.
- Estamos ganhando de dois a zero, disse Belc laconicamente.
- Nós quem? (perguntou Zirca).
- Nós, Brasil... Sou Húngaro mas sou daqui... A Hungria já foi eliminada.
- Ah!... Acho que vocês estão fumando muito. Depois que perdemos os pulmões, e os narizes já não funcionam, agora ninguém reclama do fumo. E depois que liberaram a maconha, vocês vivem nas nuvens. (Ouviu-se uma gargalhada geral).
-Zirca, você está de mau humor hoje... (disse uma boazuda ruiva, certamente irlandesa)... Há quanto tempo vocês dois não transam? (os olhares voltaram-se para o casal denotando admiração)
- Ora, Vanidia... (Zirca sorria)... Fazemos isso todos os dias. Agora que ficou tão fácil fazer. É só apertar o botão do prazer, encostar minha mão na do Borco e já está... Podemos passar horas assim. O botãozinho injeta no cérebro aqueles hormônios fantásticos que nos dão muito mais prazer do que se fosse ao vivo e a cores... (E riu às gargalhadas)... Ás vezes digo-lhe que estou com dores de cabeça e ele fica danado da vida... É um sexo tranqüilo e não é como antigamente. Agora não há medo de pegar doença, fazemos sem camisinha, sem ter que tomar banho depois... Sexo limpo.

Gol do Brasil!!!!!!!!  Gol!!!!!!!!!

A turma levantou-se gritando esganiçada e alegremente, abraçando-se... Faltava um minuto para acabar o jogo e o Brasil vencia agora por 4 a 1. Era impossível perder. Foi então que alguém teve a triste idéia de comentar:

- Pelé foi o melhor jogador de todos os tempos!... O futebol já não é como antigamente. Agora é tudo controlado...
- Não!.. Pelé não... Fue Maradona!
- Messi...
- Neymar...

Todos se levantaram de repente, voaram porcas, parafusos, molas, chips, pedaços de pele artificial, cabelos de todas as cores, peitos postiços, alguns olhos e muitos dedos. Felizmente nenhum cérebro tinha sido ofendido seriamente. A equipe de manutenção do condomínio apareceu logo, com máquinas e caixotes. Ali mesmo começaram os reparos robóticos, e em questão de uma hora, estavam todos de pé, comentando alegremente a grande batalha de uma hora atrás, envoltos numa nuvem de fumaça. O garçom trouxe um bolo de carne cheio de velas que foram apagadas com o cérebro-pulmão artificial e foi dado aos cachorros de estimação. Para comemorar o aniversário do mais novo do grupo, um chinês com cento e quarenta anos. Cachorros, esses ainda comiam comida normal, mas já havia muitos com próteses mecânicas. Os humanóides não. Depois “tomaram” a saideira: Um fumacê de maconha, que para obter mais eficiência, os presentes facilitaram a admissão, abrindo uma pequena portinhola no cérebro que começou a pulsar alegremente.

Foi então que repararam que Borco e Zirca jaziam na grama, agarrados um ao outro, uma mão na outra, o botão do prazer ligado, tremelicando como se não houvesse amanhã, completamente alheios a tudo, perdidos no tempo e no espaço, entregues ao gozo...

A eternidade tem um preço. Pode sair barato ou caro. Mas que é possível, é... Mas até lá, aproveite bem! Porém, não temos um mundo como o de amanhã, porque sem necessidade de “comer” a natureza rejuvenescerá e haverá vida selvagem por toda a terra. Nada se cultivará então e sobrará muito espaço para a natureza que será reinventada.

Nietzsche estava certo. Somos pequenos deuses em potencial. 

Rui Rodrigues

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