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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Nós e o Lindy Hop

Nós e o Lindy Hop

Estou em vias de concluir um quadro pintado com tinta acrílica sobre tela para minha filha, com o Lindy Hop como tema. Para melhor ambientação deste texto, recomendo que escute as músicas de Lindy Hop indicadas ao final do texto, enquanto efetua a leitura.

O tema escolhido de comum acordo, em outubro de 2013, foi o Lindy Hop. Eu não conhecia este tipo de dança e nasci em 1945. Como não a conhecia? Devo ter estado muito ocupado todo este tempo, desde que nasci. Em 1942, quando os EUA entraram na segunda guerra mundial, era dançada em salões de baile famosos como o Savoy de N. York, e centenas de filmes foram feitos nas décadas de 30 e 40 sobre esse tema. Helizapopping é talvez o filme mais famoso protagonizado pelos Whitey’s, dos quais fazia parte Frankie Manning. Eles visitaram o Brasil por essa época. Eram muito famosos. Era a dança nacional dos EUA por esse tempo. Surgira nas ruas americanas impulsionada por gente negra. Antes de iniciar o quadro fiz uma pesquisa para me situar, e no meu blog “Bar do Chopp Grátis”, iniciei uma página com fotos do quadro, fase por fase, desde os primeiros traços até o final da pintura. A intenção, embora não seja um grande pintor e muito menos famoso, é levar o conhecimento a quem deseja arriscar os primeiros traços de pintura a produzir a sua obra prima: A primeira!


Nasci em 1945, em setembro, logo após o término da Segunda Guerra Mundial que acontecera um mês antes, em agosto. Lembro-me que por volta dos seis anos fui a um dentista e sobre a mesa havia revistas com fotos da guerra. Pensei em meu pai que se livrara dela, mas não de seus efeitos. Meses antes emigrara para o Brasil. Eu ficara. Podemos imaginar quantas coisas me terão passado pela mente, mas algumas são perfeitamente compreensíveis: Meu pai voltaria? Eu iria viver com ele? Quando? E se houvesse uma nova guerra? E se meu pai morresse? Minha mãe viria a falecer quando eu tinha meus dez anos. Ela tinha pouco mais de 30. 


Este meu texto é na verdade uma homenagem a pessoas como Frankie Manning [1], Cynthia Millman, Dean Collins, Jewel Mcgowan, Norma Milller, Hal Takier, Lennie Smith, Irene Thomas e outros, que emocionaram o mundo com sua interpretação do Lindy Hop, nascido nas ruas do Harlem, N. York, no final da década de 20. Para pintar meu quadro eu precisava saber sobre a história dessa dança, e quem eram os seus mais famosos dançarinos. Alguns são brancos, outros negros, outros morenos, mas naquela época ainda não aparecera Martin Luther King, e os EUA viviam numa sociedade de “apartheid”.  Se não aparecer alguém que fale sobre eles, regularmente, décadas depois, ficam no esquecimento. Não podemos ter tudo presente em nossas lembranças e muito menos em nosso conhecimento, e de forma consciente, presente, é totalmente impossível. Nosso cérebro tem suas limitações.  Frankie Manning ainda é vivo [2]. Deixara a dança e foi trabalhar nos correios. Repórteres o descobriram e editaram uma reportagem que publicaram no Youtube.


O mundo, isto é, a humanidade, desenvolve-se a um ritmo que ela mesma determina. É como se ela fosse um enorme animal constituído por, em nossos dias, cerca de sete bilhões e meio de pequenos animaizinhos a que damos o nome de “seres humanos”. Analisados sob o ponto de vista morfológico, não somos muito diferentes dos demais animais, nem podemos ser tão diferentes dos animais de outros planetas habitáveis: Temos cabeça, tronco, membros, visão, olfato, tato, sentimentos. Somos feitos de carne e ossos e de certa forma nos alimentamos uns dos outros. Nossa espécie, a humana, descobriu uma forma de não nos comermos uns aos outros: O trabalho. Trocamos nossas vidas pelo trabalho que produzimos, gerando sociedades que dependem do nosso trabalho do qual nós próprios também dependemos. Para viver precisamos trabalhar. Aqueles dias do Lindy Hop eram dominados por sindicatos, por bandidos como Al Capone, por leis que não eram cumpridas, fruto da corrupção. Os EUA tinham entrado na guerra em 1942, e se já era assim em 1943, ficou pior em 1945 quando a guerra terminou, os soldados voltaram para casa e não encontraram trabalho, até porque a indústria bélica entrava em aparente recessão. Era preciso desenvolver o comércio, a indústria. A guerra proporcionara a ocupação das populações num trabalho que antes faltara devido à crise de 1929, a grande depressão. Em 1945, com o seu fim, voltava a faltar trabalho para os que retornavam dela. Então surgiu a guerra fria, isto é, uma preparação constante para a guerra, a fim de manter a industria americana a pleno vapor. Se alguém achar que a guerra fria era ideológica, pode esquecer. Todas as guerras, até as virtuais, são por comércio, que gera trabalho e mantém as populações ocupadas.


Em 1943 [3]meu pai conheceu a minha mãe.  Dançava-se o Lindy Hop. Na aldeia de Fornelos onde meu pai vivia, nunca se passou verdadeiramente o que se conhece por “fome”. Todos os habitantes tinham seu pedaço de terra. Produziam batatas, cebolas, milho, hortaliças e todos tinham suas galinhas, porcos, bois e vacas, e embora não pudessem produzir todo o necessário, havia sempre trabalho para ganhar alguns trocados e comprar pelo menos o absolutamente necessário. Vinho e aguardente todos produziam o seu, e o lagar de azeite era comunitário. Se alguém quisesse comprar um carro tinha que trabalhar muito, sair da aldeia, trabalhar fora, mas patrões são iguais em todas as partes do mundo: Dão trabalho e pagam por isso, sempre abaixo do que pensamos que valemos, ou do que necessitamos para termos o “mínimo” que julgamos razoável. As exceções são raras. Meu pai tinha uma profissão e sabia ler, escrever, fazer contas. Saiu primeiro para Lisboa, depois para o Brasil. Ganhava bem, mas o “bem” era realmente pouco. Sempre é, se temos alguma ambição. Nunca tive muita. Sempre quis viver o máximo possível com a família, poder dar-lhe pelo menos o suficiente, e mesmo assim, trabalhando duro, virando noites no trabalho, tendo que me ausentar de minha família por períodos que sempre tentei encurtar o máximo possível.


A vida é dura, a dança alivia, uma garrafa de vinho tomada com moderação liberta a alma. A vida é dura, mas é boa. Se a vida fosse mole não teria tanto interesse. O bom são os desafios. Quantos mais enfrentarmos melhor. Crescemos com eles, nosso ego se inflama cada vez que os vencemos. Contornar as situações para evitar os problemas é como dormir durante um ataque do exército inimigo.  Uma comparação entre os anos de 1943 e os de hoje, sem considerarmos o intervalo de tempo, é como pular do primeiro degrau ao nível da rua e pularmos para o primeiro degrau do décimo andar. Um salto enorme que a humanidade deu, em seu ritmo, dado passo a passo, vários em cada dia, sem que tenhamos percebido como isso aconteceu. Hoje podemos ir á Lua quantas vezes quisermos, e preparamos uma ida tripulada a Marte. Se não o fizemos ainda é porque a economia mundial ainda não o permitiu. Nosso sistema econômico, a nível mundial ainda é antigo. Não é como na aldeia em que nasci, em que crise após crise, quem não tem muita ambição pode viver uma vida inteira em relativa paz. É assim em todas as aldeias do mundo, mas todos querem ir para as grandes cidades. Neste período não demos nenhum pulo na economia como demos no nosso desenvolvimento tecnológico e nos demais campos da ciência. As guerras continuam, localizadas, as guerras diárias pela manutenção do emprego e do padrão de vida não param, e esta guerra da sobrevivência, do dia a dia, é uma “guerra surda e muda”. Quem vemos na net ou nas ruas, faz parte da “ vida “ e temos a impressão que tudo vai bem, que não há sofrimentos. Doentes em hospitais, pessoas em prisões, noites de tiroteio, atos de vandalismo e terrorismo, lidos ou contados, dão-nos a falsa sensação de segurança pelo simples fato de que não aconteceu conosco ou com nossos familiares. A humanidade vai ficando insensível.


Então, quando combinei a pintura do quadro com minha filha, começou um período de aprendizado e diversão para mim. Mas também de sofrimento e tristeza. Viajei com a pintura de meu quadro, lembrei-me de orquestras que tocavam – também – o Lindy Hop, como as de Glenn Miller e Duke Ellington, vi submarinos alemães afundando navios cargueiros no Atlântico, gente morrendo enquanto se dançava Lindy hop como se a guerra não existisse. Vi gangsteres de N. York, carros da época, vi filmes  Ocorreram-me cenas do filme “Verão de 42”, o rapaz partindo para a guerra para nunca mais voltar. Sua linda esposa vivia numa casa de madeira à beira mar. Um dos garotos de um grupo das cercanias se enamorou dela, seu primeiro amor. Um amor platônico até que ela recebeu a carta notificando-a de sua viuvez. O garoto teve a sua primeira vez com ela que finalmente partiu dali. Imaginei-me partindo de Lisboa a caminho do Brasil após 11 longos anos de separação de meu pai. Devo ter ouvido musicas de Lindy Hop, certamente, mas quando comecei a dançar, com meus doze anos, em 1957, já não era moda.

Minha neta nasceu ao som do “rap”. Não é uma dança alegre, as letras não são alegres. Os tempos mudaram, o samba já não é o mesmo, não há salões de dança em Hotéis e boates são perigosas. Não creio que tenhamos mudado para melhor. Apenas mudamos. Minha filha me deu a oportunidade de pensar em algo específico, de viajar no tempo, para trás, contrariando – apenas aparentemente – as leis da física quântica.


E minha neta, muito provavelmente, e tal como eu, quando tiver minha idade não se lembrará de ter dançado “rap”. É o sutil, o indelével, a substância humana que não muda, mas que muda o mundo, a seu passo lento mas inexorável. E nem poderia ser de outro modo. 

© Rui Rodrigues.

PS – Para melhor ambientação, consultar também os seguintes links (e escutar as músicas enquanto lê o texto)








[1] Frankie Manning, no balroom do Hotel Savoy, em 1935, ganhou uma competição de Lindy Hop ao vencer Shorty George. Sua façanha foi ter feito pela primeira vez o ‘passe aéreo”, retratado em meu quadro. O mundo veio abaixo e o Lindy Hop estourou de vez e se internacionalizou. 
[2] Manning esteve no Brasil como parte do grupo Withey’s, em 1941. Vieram para ficar por duas semanas, mas como os submarinos alemães estavam afundando navios nas rotas do Atlântico perto das costas brasileiras, o grupo se viu impossibilitado de voltar aos EUA e ficaram por aqui dez meses.
[3] Ver os principais eventos de 1943 no site http://www.historyorb.com/events/date/1943

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