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sexta-feira, 21 de março de 2014

Sonho da ultima noite de Verão

Sonho da ultima noite de Verão



Olhei a humanidade e a vi desde o alto. Pastores sem cajados tocavam seus rebanhos de humanos, segundo sua vontade. Todos os pastores eram lobos e não pastoreavam. Uns se vestiam de sacerdotes e construíam estábulos onde os humanos iam consolar suas esperanças, chorar suas dores, pagar seus dízimos. Outros se vestiam de doutores e cobradores de impostos e os arrecadavam e suas casas eram ricas. Outros eram donos dos exércitos e mandavam em todos usando de palavras, porretes ou armas letais. Todos mandavam nos rebanhos e os tocavam pelas ruas das cidades, pelas pradarias, pelas matas. Só não lhes cobravam ainda o ar que respiravam, mas havia nações de pastores, profetas, doutores e mandantes que pagavam cotas pela poluição que provocavam. Um dia o ar faltaria a todos. Até aos mandantes. Então elevei o meu olhar ao Pai, peguei um avião e parti para Jerusalém.




Percorri toda a “Via Crucis”, caminhei pela cidade e vi a fé grupal, aquela em que alguns do rebanho fazem tudo o que se lhes sugere para mostrar que a religião lhes faz bem, que pertencem a ela, mas não vi nas suas atitudes, por mais que fossem comedidas e introspectivas, que houvesse muitos justos por lá. Eram turistas comedidos. Muçulmanos vão a Meca com a mesma devoção. Havia tão poucos quantos nas demais cidades do mundo, e eu já tinha viajado por quase todas elas. O mundo não me é estranho. Até pelo deserto já andei e nele vivi. Mordem mais os mandantes e os sacerdotes do que as víboras mais peçonhentas. E como se disfarçam. Então parei no Gólgota e perguntei sem obter resposta, enquanto o céu se fechava, escurecia, pesadas nuvens se formaram e uma chuva torrencial se abateu sobre a cidade:



- Pai!... Porque o abandonaste?

E sem resposta ao diálogo perdido no tempo, dirigi-me, já noite, ao monte das oliveiras. Ainda lá estão. Os romanos derrubaram o Templo, mas não as oliveiras. Olhei para uma em especial, a mais retorcida, a mais velha, de casca mais áspera, e nela apus minhas mãos. Senti que tremia, meu rosto se encheu de suor de lágrimas, senti medo. Medo de consumação da vida, medo de nada poder fazer porque as escrituras da vida assim são: Um dia ela acaba e o que dá medo é a forma como acontecerá esse fim. Pelo amanhecer fui até o deserto. Parece impossível que nele haja vida, mas há e muita. Há pastores de ovelhas que cuidam dos seus rebanhos, mas são ovelhas e nada pedem, não falam, balem sem significados especiais. Não pagam tributos porque os tributos são elas mesmas e o que produzem. Não sabem reclamar que o leite da cria seja usado pelos pastores, as tosquias são favores, e depois de mortas que lhes importa a carne? O que as assusta é a forma como morrem, e balem porque percebem, mas os balidos parecem todos iguais e não impressionam os pastores algozes. A passagem é apenas um momento ruim da vida que logo passa. E anoiteceu no deserto. Então olhei para o céu estrelado. Do céu do deserto se vêm as estrelas que não se vêm em qualquer lugar. E mais uma vez olhei o céu e chamei meu Pai. Disse-lhe:




- Faça-se em mim a Tua vontade!... Ressuscita a Cristo em mim e manda-me para Jerusalém, para qualquer lugar deste mundo, para que seja crucificado, receba injeção letal, morra em manifestação, seja fuzilado, enforcado, esquartejado, mas que veja toda a Tua Glória e este mundo tome jeito...

E me prostrei nas frias areias noturnas do deserto esperando uma resposta que como de costume jamais viria. Mas veio do céu uma voz que assustou meu camelo e o fez fugir a galope desenfreado, enchendo a noite de roucos e nervosos gritos.




- Filho... Porque és tão ignorante? Acaso não sabes que se aparecesses por aí fazendo milagres, coisa que mágicos fazem parecer tão bem, os sacerdotes, esses mesmos que falam em meu nome, te mandariam de Anás para Caifás, os mandantes, e te prenderiam numa prisão de meliantes ou de loucos e te anulariam como fizeram com ele? E que perguntariam ao povo: Querem este ou Barrabás? E que o povaréu gritaria em uníssono que preferiam soltar Barrabás e não a ti? E além do mais, que pensas tu que eu sou? Um tonto que insista em salvar um mundo que tem preguiça de se salvar a si mesmo, sendo composto de tantos bilhões de ovelhas tapadas, ignorantes como uma porta que beijam os pés dos mandantes aos quais pagam exorbitantes impostos, pagam dízimos aos sacerdotes e cultuam a aparência dos que os exploram, dizendo-lhes: Este é o justo?

- Não, meu filho... Não vou ressuscitar ninguém. E nem desamparei ninguém porque não amparo. O mundo é de vocês, virem-se... E tu, o que farias quando alcançasses – se alcançasses- o poder? Serias como eles, te juntarias a eles? Ou as ovelhas te escorraçariam? Então volta para tua terra, e aguarda. O mundo é imprevisível a cada instante. É o mundo quântico, em que uma andorinha só não faz verão, mas pode trazer alguma chuva ou secar um pouco os campos, mas nada para sempre. Não são apenas os mandantes e a natureza que fazem o mundo. Ovelhas também! E, além disso, que pensais? Ireis sofrer por séculos sem saberdes sequer se tenho a intenção de ressuscitar o Cristo, e muito menos quando, se por acaso essa for a minha opção? Pacientes tendes sido...



Peguei meu avião de volta, aterrissei no Pontal do Peró, e fui tomar um banho. Esse mundo é como é, e a história de Jesus caso não tivesse sido crucificado, ainda não se escreveu. Quem sabe teria sido eleito Sumo Sacerdote do Templo de Salomão, governador da Judeia... Um mandante diferente? 


® Rui Rodrigues 

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